Um dos grandes problemas que sempre permeou a sociedade é a questão da geração de energia. Assim como os alquimistas buscavam a pedra filosofal, que transformaria metais em ouro, diversos modelos mecânicos que sugeriam uma fonte infindável de energia, e que resultariam em um movimento perpétuo da geringonça, foram desenhados por filósofos da antiguidade. Esses projetos podem hoje ser encontrados na internet. Uma busca, por exemplo, pelos termos "moto contínuo" ou "moto perpétuo" retorna diversos brinquedos que, apesar de curiosos, não cumprem aquilo que prometem.
O motivo desses objetos não serem uma panaceia energética, movimentando-se infinitamente, é um só: a natureza. Ela tem regras que sempre são obedecidas, a despeito da opinião das pessoas. No caso das engenhocas de movimento perpétuo, elas violam uma série de leis da física muito bem estabelecidas. Por exemplo, a conservação de energia.
Imagine que você solte uma bola de uma certa altura e, após bater no chão, ela retorne exatamente ao ponto de partida (ou, eventualmente , a um ponto mais alto, como sugerem alguns equipamentos). Se isso parece um absurdo, é exatamente o que alguns desses equipamentos oferecem. Mas o que toda essa introdução tem a ver com a questão da fusão a frio?
Em 2019, o anúncio da fusão a frio feita pelos químicos Fleischmann e Pons completa 30 anos (M. Fleischmann; S. Pons, "Electrochemically induced nuclear fusion of deuterium.", J. Electroanalytical Chemistry 261, 301–308 (1989)). No artigo, os autores afirmavam ter conseguido fundir núcleos de deutério num experimento eletroquímico envolvendo um metal chamado paládio, mergulhado em água pesada.
A água “pesada” é uma água onde o átomo de hidrogênio na conhecida molécula de H2O foi substituído por um deutério. O deutério é um átomo de hidrogênio com um nêutron no núcleo (relembrado um pouco da química do Ensino Médio: o átomo de hidrogênio comum é formado por apenas um próton no núcleo e um elétron ao redor, sem nêutrons). O preço do paládio subiu vertiginosamente nessa época.
O motivo da fusão a frio ser tão surpreendente é exatamente o fato de acontecer "a frio", ou seja, à temperatura ambiente. Fusões nucleares acontecem no interior do Sol, a altíssimas temperaturas. O processo de fundir dois núcleos atômicos tem um custo energético bastante alto, ou seja, é necessária uma temperatura externa muito grande para que efetivamente ocorra.
Núcleos idênticos, no caso os dêuterons – núcleos de deutério –, têm a mesma carga e, como todos sabem, cargas de mesmo sinal se repelem. Assim, para ocorrer a fusão os núcleos devem se aproximar de maneira a "vencer" a repulsão, que pode se tornar extremamente elevada a curtas distâncias.
Uma das maneiras de superar a força repulsiva é aquecer a substância até que ela adquira energia cinética suficiente para romper essa barreira (o nome técnico é "Barreira Coulombiana"). A dificuldade de se obter uma fusão controlada em reatores reside, exatamente, na dificuldade de aquecer o combustível termonuclear a temperaturas da ordem de centenas de milhares de graus, mantendo simultaneamente uma alta densidade de núcleos por um tempo razoável para que a fusão ocorra.
Obter, portanto, uma fusão nuclear com um equipamento relativamente barato e à temperatura ambiente seria mesmo surpreendente.
Embora a publicação em revistas indexadas e sujeitas a avaliação por pares reduza bastante a probabilidade de publicação de artigos de qualidade duvidosa, ainda assim acabam saindo coisas que não deveriam ser publicadas.
Fenômenos naturais sempre produzem indicadores que possibilitam atestar a ocorrência de determinado fato. No caso do artigo da fusão a frio, existe uma série de subprodutos decorrentes da fusão dos dêuterons e, como foi apontado por diversos pesquisadores em uma conferência em Baltimore (EUA), realizada alguns meses depois do anúncio de Pons e Fleischmann, muitos subprodutos reportados no artigo não estavam de acordo com aquilo que era esperado para uma reação de fusão. Isso é muito bem descrito no livro de Robert Park, Voodoo Science, em seu capítulo 5.
Não foi preciso muito tempo para que boa parte da comunidade científica se pronunciasse dizendo que o alarde da fusão a frio não fazia nenhum sentido.
Podemos, porém, extrair diversos ensinamentos dessa história balzaquiana:
• O Congresso americano, antes de ouvir a comunidade científica sobre o assunto, chamou os autores do artigo para discursar para os parlamentares. Teve inclusive quem defendesse um aporte de US$ 25 milhões para fomentar o projeto de fusão a frio. Caso a verba tivesse sido aprovada, o desperdício de dinheiro público teria sido maior do que aquele já gasto com o tempo dos congressistas para discutir algo que não fazia sentido.
• Qualquer artigo relatando uma descoberta científica, mesmo após a sua publicação, continua passando por um rigoroso escrutínio de toda a comunidade científica. Caso apresente alguma inconsistência séria, ele é impiedosamente descartado. Seguindo por essa linha de raciocínio é, portanto, incompreensível essa "ética médica" onde um médico não se sente confortável em criticar algum colega que faça algo completamente sem sentido, como receitar homeopatia ou recomendar uma aplicação de Reiki para curar alguma enfermidade, por exemplo.
• Diversos veículos de comunicação alardearam a descoberta sem nem mesmo esperar uma manifestação da comunidade científica envolvida. Esse tipo de publicidade sensacionalista para algo que, no caso da fusão a frio, traria uma solução mágica para a questão da energia no planeta, é feita com maior frequência na área da saúde, onde quase toda semana anuncia-se uma nova cura para o câncer, ou um novo componente cancerígeno que irá dizimar a população.
Os itens da conclusão acima estão longe de serem exaustivos, mas fornecem uma ideia bem clara de como a ciência progride. Novas teorias e experimentos devem ser testáveis, e também devem ser reproduzidos de maneira independente por grupos distintos e independentes.
Aos jornalistas, é sempre melhor esperar um pouco, ou conversar com o seu contato de confiança no meio científico, antes de alardear a nova cura do câncer ou o novo experimento que viola leis bem estabelecidas da física.
Marcelo Yamashita é doutor em Física, professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência