Para ler o horóscopo do bebê real

Apocalipse Now
10 mai 2019
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Carta astral do príncipe Archie, tal como publicada em Well+Good
Carta astral do príncipe Archie, tal como publicada em Well+Good

Os brasileiros, preocupados com frivolidades como os cortes brutais no orçamento da Educação e da Pesquisa, talvez não tenham se dado conta do verdadeiro fato importante desta última semana – o nascimento, em 6 de maio, da sétima pessoa na fila de acesso ao trono britânico e o primeiro membro da família real inglesa a ter direito a um passaporte americano (o que pode vir a calhar, dependendo do que acontecer com o Brexit).

O nome do filho do príncipe Harry e da duquesa de Sussex (a americana Meghan Markle) ainda não tinha sido escolhido, na segunda-feira, dia, 6 (no dia 8, revelou-se que ele se chamaria Archie Harrison), mas leitores de tabloides britânicos e leitoras de revistas ditas “femininas”, de todo o mundo, já sabiam o que esperar do pimpolho real em termos de personalidade, estilo de vida e destino: seu mapa astral estava traçado, delineado e analisado.

Previsões sobre recém-nascidos são especialmente seguras, é claro, porque é quase certo que ninguém se lembrará delas quando o bebê for adulto e as características e eventos previstos enfim se manifestarem (ou não). A passagem das décadas tende a ser caridosa para com os astrólogos.

Precedente histórico

Mas, às vezes, algum registro mais antigo sobrevive, com resultados hilariantes, ou constrangedores: o livro “Prophets and Prediction “, de Richard Lewinsohn, publicado em 1958, anota que, em 1956, o astrólogo alemão Carl Heinrich Huter havia diagnosticado um aspecto trágico na carta astral da então jovem líder da Família Real britânica: “Qualquer um que estude o horóscopo da Rainha Elizabeth II ficará profundamente perturbado pela posição agourenta de Saturno no início da décima casa, pois todos os líderes e políticos com Saturno nessa posição foram derrubados ou abdicaram. Não há uma única exceção conhecida em toda a história humana”.

Sessenta e três anos depois, a rainha ainda pode abdicar, suponho. Mas Huter foi mais específico: ele previu que a monarca e o então primeiro-ministro Anthony Eden cairiam juntos. Quem assistiu à série The Crown, da Netflix, sabe que Eden deixou o comando do governo britânico em janeiro de 1957. Já Elizabeth II...

Defensores da astrologia costumam reclamar que é injusto mencionar erros e falhas de certos astrólogos específicos, já que toda prática profissional, mesmo as mais bem estabelecidas, tem sua cota de incompetentes e charlatões. Há algum mérito nessa objeção, a despeito do fato, também verdadeiro, de que o mesmo raciocínio se aplica, com sinal invertido, a eventuais acertos: praticantes de sistemas inválidos podem ter sorte de vez em quando e, como se costuma dizer, até um relógio parado acerta – duas vezes a cada 24 horas.

E Huter não era um astrólogo qualquer: apesar de sua tendência de fazer previsões furadas (em 1926, ele disse que a década de 40 seria “pacífica” para a Alemanha), seus livros, almanaques e revistas astrológicos sempre foram extremamente populares no mundo germânico.

Rebeldia com estabilidade

No caso do mais novo integrante da Casa de Windsor, o número e diversidade de previsões é tão vasto que alguém, provavelmente, acabará acertando alguma coisa. Publicações que se pretendem sérias – até certo ponto – como Cosmopolitan, Allure, Well+Good e, no Brasil, o site M de Mulher, do Grupo Abril, e outras nem tanto, como o jornal The Express e a revista Oprah Magazine, já informaram a um mundo ansioso por notícias sobre o mais recente bisneto da rainha Elizabeth II que o garoto é do signo de Touro com ascendente em Touro, e o que isso significa... Bem, significa tudo e nada ao mesmo tempo.

Em “M de Mulher”, lemos que o rebento real pode se mostrar uma pessoa generosa, plena de compaixão pela humanidade, um patrono de boas causas, mas também pode crescer um egoísta que só olha para o próprio umbigo. Difícil errar fazendo previsões assim.

Signos do zodíaco em ilustração medieval

A maioria das demais publicações sugere que o garoto vai ser “rebelde” e gostar de boa comida e produtos de luxo. Bem, quanto à segunda característica, por que não? Família real, enfim. Quanto à primeira – “rebelde” é um daqueles adjetivos, tão caros à prática astrológica, que serve para qualquer coisa, porque seu sentido preciso depende crucialmente do modo como é usado e do contexto em que é aplicado: um adolescente que bate a porta do quarto ou um rei que decide proclamar a República são ambos “rebeldes”.

Este é um dos principais trunfos da astrologia: um modo de usar a linguagem que parece dizer muito, mas na verdade informa muito pouco; os pronunciamentos são como vasos vazios, onde qualquer um pode plantar o que quiser.

Em “Allure”, há um exemplo para aplaudir de pé: “se pensarmos no nosso signo solar como aquilo que nascemos para fazer e em nosso signo ascendente como nosso sistema operacional...”

Saboreie a frase. Deixe rolar na ponta da língua. Ela é cool. Emprega os verbos de um modo que soa meio filosófico, meio sofisticado (como assim, “fazer” um signo solar?). Constrói uma metáfora tecnológica e contemporânea (“sistema operacional”). Parece insinuar algo importante, parece que há um insight escondido em algum lugar por ali. A rigor, porém, não diz nada.

Monte Farber, astrólogo ouvido pela “Well+Good”, prevê que o garoto vai aceitar bem o fato de que não herdará o trono (sendo o sétimo da linha sucessória, é uma boa aposta) e que será um dos maiores intelectuais produzidos pela família real. Trata-se da típica previsão que tem pouca chance de ser lembrada, caso fracasse (e, não, não farei piadas com o avô Charles e sua linha de produtos “naturais”).

Em “Oprah Magazine”, a “astróloga residente” Chani Nicholas prevê que o garoto vai “quebrar tradições”, mas de “modo estável”. O que chega suficientemente próximo de uma contradição em termos para comportar quase qualquer coisa.

A maioria dos textos sobre o suposto “destino” do bebê bebe nesses temas de rebeldia, tradição, luxo e trabalho humanitário. O que são todos clichês que orbitam o ramo da família real ligado à princesa Diana, e também ao casamento de Harry e Meghan (que além de americana, é divorciada e não é branca). O fato é que chutes assim parecem depender mais de uma certa intuição a respeito da prevalência desses clichês na imaginação popular do que da posição dos astros. Mais uma vez, é o fenômeno do vaso vazio.

Aos fatos

Falando em posição dos astros: muito do material publicado na imprensa define o mapa astral como um “mapa do céu no instante do nascimento”. Essa não é uma boa descrição: as constelações representadas pelos 12 signos do zodíaco não estão mais nos lugares onde os mapas astrais as colocam. Astrologicamente, o Sol se encontra em Touro entre 20 de abril e 20 de maio, mas astronomicamente – no telescópio – o Sol, na verdade, entrou em Áries em 19 de abril e só chega a Touro no dia 14 de maio.

Signos do zodíaco, em ilustração medieval

Esse descompasso entre o céu da astrologia e o céu do mundo real é conhecido há muito tempo, e a maioria dos astrólogos prefere mudar de assunto quando alguém comete a descortesia de mencionar o fato. Os mais sofisticados propõem algum tipo de explicação psicológica ou metafísica – o que importa não é onde as estrelas estão, e sim as “energias” associadas às fases do ciclo solar, etc. – mas esta não é a principal objeção científica à astrologia. A principal objeção é que está provado que ela não funciona.

Se características astrológicas realmente tivessem algum efeito sobre caráter, personalidade ou destino – mesmo um efeito tênue, no sentido de gerar “tendências” – esse impacto deveria aparecer em levantamentos estatísticos: um excesso, talvez pequeno mas, ainda assim, detectável, de certos signos em certas profissões, ou de certos aspectos (ângulos e posições de planetas) em certas situações de vida, incluindo prisão, suicídio, sucesso artístico, ascensão política, etc.

Inúmeros estudos já foram realizados a respeito, procurando essa assinatura astrológica na população. E a esmagadora maioria dos estudos bem conduzidos falha em encontrar qualquer vestígio de influência astrológica. Cito diversas dessas instâncias em meu Livro da Astrologia.

Para ficar num exemplo prosaico, mas sem dúvida importante para muita gente: segundo o livro Dataclysm, que analisa os indicadores gerados pelo "app" de encontros românticos OKCupid – alimentado com milhões de perfis de usuários, que respondem a questionários sobre personalidade e gostos pessoais – o signo zodiacal “não tem efeito nenhum” sobre a compatibilidade dos casais.

Ilusão perigosa

A ilusão de que a astrologia diz algo útil sobre pessoas e relacionamentos, no entanto, é persistente, e se alimenta de fatores como os apresentados neste artigo – o efeito “vaso vazio”, a apropriação indevida do senso comum (um membro da família real vai gostar de coisas de luxo!), do bom senso (o garoto vai aceitar não ser o herdeiro do trono) e de repetir o que as pessoas esperam ouvir (o filho de um príncipe com uma plebeia divorciada vai “desafiar as tradições”).

Outros fatores, muito citados na literatura sobre o assunto, mas infelizmente, desprezados pela maioria das pessoas (todos tendemos a nos achar espertos demais para cair nessa, e caímos o tempo todo) são o viés de confirmação e a validação subjetiva.

Viés de confirmação pode ser resumido como a tendência de atribuir muito mais preso e valor ao que confirma nossas opiniões e preconceitos. Se achamos que o relógio quebrado na verdade funciona, vamos chamar atenção para os dois momentos do dia em que ele aponta a hora certa e inventar desculpas para os demais instantes. Só exemplos confirmatórios realmente contam como exemplares; o resto são “exceções”.

Validação subjetiva é considerar como válida, verdadeira ou importante qualquer informação ou ocorrência a que se possa atribuir um significado pessoal, ou que possa ser interpretada de acordo com uma crença querida: aquele cara é capricórnio? faz sentido, ele é um mala (se fosse de outro signo, ainda “faria sentido”, apenas, talvez, com outra característica qualquer – as roupas que usa, a comida de que gosta).

Juntos, o viés e a validação distorcem o foco da atenção e o processo de construção de inferências. Crendices como a astrologia costumam ser consideradas inofensivas, mas quando passam a guiar decisões sobre saúde e a afetar direitos, a situação muda de figura. Relatos de discriminação astrológica começam a se acumular, e aparentemente a astrologia financeira é algo levado a sério por muita gente.

O filósofo francês Voltaire certa vez escreveu que a crença em absurdos propicia a prática de atrocidades. Trata-se de uma lição que a arrogância e a autoilusão põem de lado com excessiva facilidade.

 

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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