Campainhas de vídeo ajudam a prevenir crimes?

Questão de Fato
7 dez 2023
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Numa segunda-feira à tarde, no fim de junho, duas mulheres estavam do lado de fora do bloco 500 da Gridley Avenue em Akron, Ohio, quando foram baleadas. De acordo com depoimentos divulgados pela mídia local, pouco antes três jovens haviam estacionado um Ford Taurus prateado, saído do veículo e atirado antes de ir embora. Mais de 40 cartuchos foram recuperados, dizem os informes, e projéteis atingiram vários veículos e casas. Uma das vítimas, uma mulher de 65 anos, disse que foi baleada no ombro enquanto estava sentada em sua varanda. “Eu moro aqui há 41 anos e nem consigo mais sentar na minha varanda”, disse ela ao canal de TV 19 News de Cleveland.

No dia seguinte, houve outro tiroteio a cerca de dois quilômetros dali, também envolvendo vários jovens em um veículo. Em ambos os casos, os incidentes foram gravados pelas campainhas de vídeo da Ring, e as filmagens foram compartilhadas com o departamento de polícia e as estações de televisão locais.

Não houve prisões até agora. O Departamento de Polícia de Akron, no entanto, diz que está sempre em busca de oportunidades para usar campainhas de vídeo — dispositivos ativados por movimento, que gravam movimento e áudio — juntamente com outras tecnologias para ajudar a resolver casos assim.

Coincidentemente, na semana dos tiroteios de junho, a Câmara Municipal de Akron havia anunciado um programa piloto para distribuir 460 campainhas de vídeo da Ring — de propriedade da Amazon — para moradores de bairros-alvo com altas taxas de violência, em um esforço para reduzir ou prevenir crimes. Os moradores participantes devem concordar em entregar todos os vídeos gravados à polícia, caso as imagens sejam requisitadas.

Cerca de 6.800 residentes de Akron eram elegíveis para as campainhas a partir de junho, de acordo com The Akron Beacon Journal. Alguns deles moram nos chamados “pontos quentes” ou nas imediações. Esses são lugares de tráfego intenso, onde os crimes ocorrem com mais frequência. Os pontos quentes podem responder por até 50% dos crimes relatados em algumas cidades, embora sejam apenas uma pequena parte da área total. 

Quase um mês após o anúncio do programa em Akron, a cidade de Shreveport, no noroeste da Louisiana, anunciou um programa semelhante, que oferece câmeras Ring gratuitas para moradores ou proprietários. Akron e Shreveport estão se juntando a um número cada vez maior de cidades onde as autoridades compram campainhas de vídeo Ring e as oferecem à população gratuitamente, ou com desconto. Em 2019, mais de 400 departamentos de polícia fizeram parceria com a Ring. Até o fim de novembro passado, esse número era de mais de 2.600 departamentos de polícia, juntamente com quase 600 departamentos de bombeiros e mais de 70 agências governamentais locais.

 

Eficácia

As parcerias permitem que os moradores compartilhem vídeos — e que a polícia requisite esses vídeos — com um simples clique no aplicativo Neighbors by Ring, para smartphones e tablets. Isso essencialmente cria uma patrulha de bairro virtual. “Criminosos e ladrões, prestem atenção: nossa equipe está trabalhando incansavelmente para detê-los e criar bairros mais seguros para nossas famílias”, escreveu o fundador e principal responsável pela criação da tecnologia da Ring, Jamie Siminoff, em uma postagem feita em 2019 no site da empresa.

O problema é que há muito poucos dados publicados sobre a eficácia da Ring — ou câmeras de campainha de vídeo similares e menos populares, como Google Nest, Skybell, ADT ou Vivint — como uma ferramenta de prevenção ou dissuasão do crime, disseram vários pesquisadores à Undark. E, de acordo com bases de dados que ajudaram os pesquisadores do MIT Media Lab a criar o que eles dizem ser o primeiro mapa nacional de usuários e padrões de uso da Ring, as câmeras podem ter pouco ou nenhum impacto no crime em Los Angeles, uma cidade com uma concentração relativamente alta dos dispositivos.

“Esta é uma pergunta que volta e meia aparece, especialmente entre críticos e defensores do sistema”, disse o cientista da computação Dan Calacci, coautor do artigo do MIT Media Lab, que atualmente é bolsista de pós-doutorado no Center for Information Technology Policy da Universidade de Princeton. “Porque as pessoas, eu acho, veem isso como uma ferramenta de dissuasão do crime. E não há evidências fortes”.

As conclusões do artigo do MIT Media Lab sobre a Ring estão entre as informações mais recentes a entrar numa conversa em andamento — na academia, mídia popular e mídias sociais — sobre vigilância. Uma recente revisão sistemática de 40 anos de dados sobre o impacto da televisão em circuito fechado sobre a criminalidade descobriu que os sistemas monitorados ativamente associavam-se a uma redução significativa do crime, enquanto os sistemas monitorados passivamente, não. E, no início de novembro, a Wired publicou uma longa reportagem da colaboradora Lauren Smiley sobre a onipresença da vigilância cidadã em São Francisco.

A Ring alega que suas campainhas de vídeo também previnem o crime, disse Ben Stickle, criminologista da Middle Tennessee State University que pesquisa roubo de encomendas e crimes emergentes. Isso parece ser um argumento de venda, acrescentou ele, mas o assunto “realmente não foi estudado”.

O número de câmeras Ring em todo o país aumentou à medida que mais consumidores passaram a optar por entregas em domicílio desde a pandemia. Alguns analistas dizem que o maior número de campainhas de vídeo inteligentes não necessariamente torna os bairros mais seguros, mas aumenta os poderes da polícia, por meio do acesso a vídeos sem mandado judicial.

 

Privacidade

As parcerias com polícias permitem que a Ring opere como uma rede de “vigilância privada” que não presta contas a ninguém, disse Max Isaacs, advogado sênior do Projeto Policiamento da Faculdade de Direito de Nova York e coautor de uma auditoria de direitos civis da Ring que levou quase dois anos para ser concluída. “No mínimo”, disse Isaacs, a polícia “precisaria ir à Câmara Municipal, eles precisariam obter um orçamento público para configurar as câmeras. Mas quando os cidadãos privados montam suas próprias redes de vigilância e entregam os dados à polícia, você evadiu esses controles democráticos”.  

“Acabamos numa situação em que a polícia pode expandir drasticamente suas capacidades de vigilância sem qualquer supervisão significativa”, disse ele. A Ring não respondeu às perguntas da Undark a tempo para esta publicação.

A Ring, com sede em Santa Monica, Califórnia, comercializa uma linha de câmeras de campainha inteligentes com wi-fi, além de outras câmeras de segurança doméstica e sistemas de alarme. Acredita-se que mais de 10 milhões de americanos sejam donos do produto carro-chefe da empresa: a primeira câmera de campainha de vídeo do mundo.

A Ring começou em 2012 com um financiamento coletivo, como “DoorBot”. No ano seguinte, Siminoff apareceu no reality show da ABC “Shark Tank” e apresentou o dispositivo aos investidores, pedindo um aporte de US$ 700.000. Os investidores recusaram. No ano seguinte, a empresa mudou a marca para Ring, e quatro anos depois foi vendida para a Amazon por mais de US$ 1 bilhão, de acordo com estimativas. A Ring é agora a principal fabricante de campainhas inteligentes do mundo.

As câmeras de campainha são conectadas a smartphones, tablets e computadores por meio de um roteador sem fio e oferecem uma transmissão de vídeo ao vivo da área ao redor da campainha, incluindo varanda, corredores, passarelas ou calçadas. Os dispositivos começam a gravar sempre que algum movimento é detectado, com um alcance de cerca de dez metros. As câmeras também têm a capacidade de gravar áudio e podem detectar ruídos e conversas a até cerca de seis metros, de acordo com testes conduzidos pela Consumer Reports.

 

Dados

O aplicativo de mídia social Neighbors by Ring permite que os usuários façam upload e compartilhem esses vídeos gravados com os vizinhos. O aplicativo supostamente tem mais de 10 milhões de usuários ativos, que podem personalizar seu fluxo de alertas de segurança e vídeos gravados e publicá-lo para outras pessoas na plataforma, dentro de um raio de cerca de sete quilômetros. O aplicativo também permite que os departamentos de polícia vinculados solicitem imagens das campainhas em ruas, quarteirões ou outros locais específicos. Houve supostamente cerca de 3.500 pedidos policiais nos primeiros seis meses de 2022, de acordo com a Wired.

Residentes e proprietários que receberam descontos ou receberam suas campainhas de vídeo gratuitamente por meio de parcerias do município com a Ring — como em Akron ou Shreveport — são obrigados a atender a qualquer requisição de suas filmagens que a polícia considere necessárias.

A Ring alega que suas campainhas de vídeo reduziram os roubos em 50% em dois bairros de Newark, Nova Jersey, de abril a julho de 2018, em comparação com o mesmo período do ano anterior. Mas, de acordo com um relatório de outubro de 2018 da MIT Technology Review, os dados, coletados vários meses depois que a Amazon adquiriu a Ring em fevereiro de 2018, não foram autenticados por especialistas externos. “Os dados mais recentes”, observou o artigo, “mostram que os roubos caíram quase 30% em toda a cidade [em 2018] e as maiores melhorias foram fora dos distritos que testavam a Ring”.

Na verdade, há poucos dados independentes sobre a eficácia da Ring, embora a empresa tenha citado anteriormente vários estudos ou relatórios para apoiar suas alegações. Uma estatística frequentemente relatada é que as campainhas de vídeo Ring ajudaram a reduzir os roubos em 55%, ao longo de seis meses de 2015 em um bairro de Los Angeles. Os resultados atraíram o ceticismo de jornalistas e pesquisadores.

 

Estudo

De acordo com a equipe do MIT Media Lab, não havia evidências fortes de que as campainhas de vídeo diminuíram os crimes contra a propriedade em Los Angeles. O artigo, publicado no ano passado na revista revisada por pares The Proceedings of the Association for Computing Machinery on Human-Computer Interaction, criou o “primeiro mapa abrangente e análise do uso de câmeras de campainha inteligentes nos EUA continentais”.

Calacci e seus colegas, os cientistas da computação Jeffrey J. Shen e Alex 'Sandy' Pentland, queriam determinar como os consumidores usam e compartilham vídeos da câmera Ring no aplicativo Neighbors, na escala do condado e do estado.

“Não encontramos nenhuma correlação real entre taxas de criminalidade mais altas e mais baixas para crimes contra a propriedade versus crimes violentos em diferentes condados ou setores censitários reais, em lugares mais publicados na plataforma”, disse Calacci à Undark.

Os pesquisadores também usaram regressão espacial — um tipo de análise estatística que aponta relações entre áreas geográficas — para estimar o uso nacional da Ring e do aplicativo Neighbors. O conjunto de dados incluiu cerca de 850.000 postagens de texto e vídeo feitas por cerca de 650.000 usuários entre outubro de 2016 e fevereiro de 2020. Os conjuntos de dados mostram que havia menos de 500 postagens por dia em outubro de 2016 e quase 2.000 por dia no início de 2020.

A equipe então decidiu usar Los Angeles como um estudo de caso devido ao seu tamanho, diversidade econômica e racial e à alta taxa de uso de câmeras da cidade. Além disso, os pesquisadores observaram, o Departamento de Polícia de Los Angeles (LAPD) foi “uma das primeiras agências a fazer parceria com a Ring, e o LAPD usou a plataforma extensivamente para coletar imagens de vídeo”.

Os pesquisadores analisaram os dados criminais do LAPD de 2019. Os dados não mostraram correlação significativa entre as taxas de postagem no aplicativo Neighbors e as estatísticas reais de roubo, arrombamento com roubo, invasão, roubo de veículos e arrombamento na cidade naquele ano.

“Em outras palavras”, concluíram os autores, “a prevalência do conteúdo no Ring Neighbors relatando crimes não reflete as taxas oficiais de criminalidade dentro das comunidades”.

 

Auditoria

Nos últimos anos, a Ring tem atraído uma significativa de cobertura midiática, principalmente sobre como seus dados são armazenados e compartilhados, e sobre a transparência no aplicativo Neighbors. Parte dessa atenção se concentrou em como os vídeos são compartilhados com os departamentos de polícia. Por exemplo, em julho de 2022, a Amazon revelou ter fornecido gravações de câmeras de campainha de vídeo Ring a departamentos de polícia pelo menos 11 vezes naquele ano, sem o consentimento dos proprietários.

Para tanto, a Ring abordou o Projeto Policiamento da Faculdade de Direito da Universidade de Nova York em 2020 para avaliar como os departamentos de polícia estavam usando sua tecnologia. O Projeto Policiamento é uma organização de pesquisa e ativismo que muitas vezes audita tecnologias de policiamento emergentes, como reconhecimento facial, câmeras de corpo usadas por policiais e vigilância aérea.

“Durante a auditoria, a Ring nos deu acesso a informações sobre o NPSS que até agora nunca foram divulgadas publicamente”, como a quantidade de vídeos acessados por policiais e os tipos de crimes que são investigados, escreveram os autores em seu relatório final. O NPSS, ou Serviço de Segurança Pública da Vizinhança, permite que os departamentos de polícia se juntem ao aplicativo Neighbors.

O Projeto Policiamento observou que a Ring atendeu a todos os pedidos de vídeo feitos pela polícia durante um período de três meses. A auditoria analisou vários milhares de solicitações da polícia em junho de 2020, setembro de 2020 e janeiro de 2021. A auditoria revelou que as solicitações mais comuns da polícia referiam-se a roubo de veículos, tiroteios e roubos de casas. “Também houve um número significativo de solicitações de vídeo em que o crime subjacente não estava claro”, de acordo com o relatório, “um problema que a Ring corrigiu durante esta auditoria”.

 

Transparência

Outra preocupação importante foi a transparência. A auditoria observou que a Ring não havia publicado os nomes ou números totais dos departamentos de polícia parceiros. Como resultado, a Ring agora cria perfis públicos para cada parceiro de polícia e segurança pública, e cada solicitação de vídeo por parceiros deve ser feita por meio de uma postagem pública no aplicativo Neighbors. A Ring também concordou em não fazer parceria com agências federais ou de imigração.

Outro problema em torno das campainhas de vídeo Ring é o seu suposto impacto no roubo de encomendas, ou "pirataria de alpendre". Mais de 119 milhões de pacotes foram roubados em 2023, de acordo com a SafeWise. Mas as estimativas variam, diz Stickle, que está no conselho da SafeWise. Há poucos dados concretos sobre a extensão e o escopo do roubo de encomendas e o fenômeno é relativamente pouco estudado, disse ele. “Subir até a soleira da porta e pegar um pacote não requer nenhuma perícia específica”, disse Stickle. “Os riscos de ser pego e capturado também são mínimos.”

Stickle e outros pesquisadores não estão convencidos de que as campainhas de vídeo Ring sejam um impeditivo eficaz. “O número de requisitos necessários para que as imagens de vídeo sejam úteis em um caso criminal é bastante substancial”, observou. Primeiro, a câmera deve estar funcionando e posicionada no melhor ângulo para capturar o crime, disse ele. Então o crime deve ser registrado corretamente.

“Então, as vítimas têm que chamar a polícia,” acrescentou Stickle. “A polícia tem que responder e optar por registrar a queixa e, muitas vezes, essas coisas não acontecem num caso de roubo de pacotes. Você tem que passar o vídeo para a polícia e depois eles têm que tentar encontrar alguma maneira de descobrir quem são os ladrões”.

 

Novo crime

O aumento nacional no número de campainhas inteligentes também está impactando as leis e as políticas públicas, de acordo com um relatório de outubro de 2022 que se baseia em entrevistas com usuários de campainhas de vídeo e trabalhadores de entrega.

“Temos visto um aumento bastante grande no número de municípios que está tentando aumentar as penalidades por roubo de pacotes ou criar novas penalidades por roubo de pacotes, alguns deles até mesmo classificando-os como crimes que poderiam levar à prisão”, disse a coautora do relatório Aiha Nguyen, diretora do programa Labor Futures Initiative da Data & Society, uma organização sem fins lucrativos focada em políticas públicas e tecnologia emergente.

Pelo menos oito estados aumentaram as penas por roubo de pacotes nos últimos cinco anos, relata o Business Insider. O endurecimento da legislação e das penas parece ser excessivo, na visão de Nguyen, porque a pesquisa atualmente disponível não demonstra que a pirataria de alpendre esteja aumentando.

Em meados de outubro, cerca de quatro meses depois de a Câmara Municipal de Akron anunciar seu programa piloto Ring, 454 das 460 campainhas de vídeo já haviam sido distribuídas, disse a chefe de Gabinete da Câmara, Joan Williams, à Undark por e-mail.

“Em resposta à alta demanda pelas câmeras, estamos explorando a possibilidade de expandir o escopo do programa no primeiro trimestre de 2024”, escreveu Williams.

Mesmo assim, “embora constantemente busquemos oportunidades para utilizar tecnologias, incluindo as Ring Doorbell Cams, quando disponíveis, ainda não houve casos específicos em que as Ring tenham ajudado diretamente, de acordo com os detetives”, diz declaração por e-mail enviada por Michael Miller, um funcionário de informação pública do Departamento de Polícia de Akron.

Apenas um dia após o tiroteio de 26 de junho na Gridley Avenue, que feriu as duas mulheres, um pastor de 80 anos foi pego no fogo cruzado de um tiroteio em Akron. O idoso estava, aparentemente, ajudando uma mulher a trocar o pneu em frente à sua casa quando três homens pararam em um SUV vermelho e abriram fogo, de acordo com o Cleveland 19 News.

Mais uma vez, o tiroteio foi gravado pela câmera da campainha de vídeo de um vizinho. Nenhuma prisão foi informada.

 

Rod McCullom é um jornalista científico de Chicago e colaborador sênior da Undark. Seu trabalho foi publicado pela Scientific American, Nature, The Atlantic e MIT Technology Review, entre outras publicações. Esta reportagem foi publicada originalmente em Undark.

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