Muitas pessoas estão surpresas com os resultados da revisão sistemática da Colaboração Cochrane, publicada no fim de janeiro, que investigou os efeitos de intervenções físicas para interromper ou reduzir o impacto de vírus respiratórios na comunidade. Essa surpresa tem uma justificativa: após dois anos em que grande parte do mundo utilizou máscaras com o objetivo de mitigar os efeitos do coronavírus, como uma revisão conclui que “máscaras não funcionam”?
Dada a temperatura política em torno do assunto, a revisão foi celebrada e vilificada de acordo com linhas ideológicas e, em geral, tanto elogios quanto críticas vieram pelos motivos errados. Antes de mais nada, é prudente colocar as coisas nos seus devidos lugares.
1. A revisão não analisou somente o efeito de máscaras durante a recente pandemia de coronavírus. É uma revisão de várias medidas físicas de tentativa de controle comunitário de vírus respiratórios, como máscaras, lavagem de mãos, gargarejos e distanciamento.
2. Essa revisão não é nova, existe desde 2007. Encontra-se em sua quinta atualização. Esta última versão contém todos os ensaios controlados randomizados (considerado o desenho de estudo padrão ouro para detectar efeitos de uma intervenção) publicados até outubro de 2022. Nessa data, apenas dois estudos conduzidos durante a pandemia estavam finalizados, publicados e foram incorporados à revisão.
3. A atualização passou por uma série de aperfeiçoamentos, quando comparada à versão anterior. A principal é que todos os estudos observacionais foram removidos. Isso aumenta o rigor científico e a credibilidade das conclusões.
4. Os resultados da atualização de 2023 não são diferentes das versões anteriores. Então seus resultados não deveriam surpreender.
O uso de máscaras é apoiado por alta plausibilidade: existe alto grau de evidência, produzido em estudos laboratoriais, de que máscaras cirúrgicas, N95 e respiradores como PFF2 são ótimas barreiras contra microrganismos causadores de doenças. Ou seja, em ambiente controlado, esses equipamentos de proteção individual (EPI) conferem boa proteção, com baixo risco. Porém, é importante lembrar que esses EPIs foram desenvolvidos para serem utilizados em ambientes controlados e por pessoas treinadas. Qualquer profissional de saúde que já esteve num centro cirúrgico ou numa UTI entende que todos os EPIs devem ser trocados periodicamente, e após todo e qualquer contato com pacientes. A durabilidade dos componentes das máscaras foi pensada dessa forma. Máscaras não foram projetadas prevendo reutilização e perdem eficácia em condições adversas, como calor excessivo, umidade, etc.
Com tudo isso em mente, pense: qual é a probabilidade de as máscaras funcionarem bem como medida de prevenção em escala comunitária? Nesse cenário, a alta plausibilidade inicial cai muito, a incerteza aumenta e a única forma de reduzir essa incerteza é através de um ensaio controlado randomizado, comparando o uso das máscaras versus não usar as máscaras na comunidade. O desfecho principal de interesse é: será que as pessoas que usam máscaras adoecem menos que as que não usam? Essa revisão da Cochrane resumiu e avaliou todos os ensaios controlados randomizados que tinham como objetivo responder a esta pergunta de pesquisa, entre outras, sobre a eficácia de intervenções físicas, na escala comunitária, contra vírus respiratórios.
Sobre a revisão
A revisão seguiu todos os procedimentos previstos pelo Cochrane Handbook of Systematic Review of Interventions, que é a diretriz em que os autores de revisões sistemáticas da Cochrane devem seguir. O trabalho foi conduzido por pesquisadores muito experientes no tema, experts em revisões sistemáticas. A atualização contém dados de 78 ensaios controlados randomizados, com um total de 610.872 participantes.
A maioria dos estudos incluídos na revisão tem alto risco de viés, isto é, de erros nos resultados produzidos por fatores além do mero acaso. Os pontos de falha metodológica mais comuns foram a ausência de cegamento e perda de dados de acompanhamento de pacientes.
O cegamento ideal exige que nem os profissionais e saúde, nem os pacientes, saibam quem está no grupo tratado e quem está no grupo controle. É claro que não é possível cegar pacientes e profissionais de saúde num ensaio clínico que avalia o uso de máscaras, logo trata-se de um viés incontrolável.
Além disso, os estudos apresentam taxas de aderência do “grupo tratamento” (isto é, as pessoas que deveriam usar máscaras) variando de 60% a 80%, sendo que alguns chegam a apenas 40% de aderência. Esses dados, por si sós, não deveriam surpreender (lembrando que são estudos na comunidade). Basta lembrar que mesmo durante a pandemia vimos pessoas com máscaras muito mal vedadas, máscaras no queixo, “nariz para fora”, pessoas que removiam máscaras para falar, pessoas que removiam as máscaras dentro de aviões, etc. Além disso, muitos estudos tinham número pequeno de participantes, o que aumenta a chance de falsos negativos.
Importante destacar que somente dois estudos foram conduzidos na pandemia da COVID-19, sendo um positivo e um negativo. Outros quatro estudos estão em fase final, e os autores da revisão não conseguiram obter os dados desses trabalhos. Finalmente, muitos estudos foram conduzidos em momentos de baixa transmissibilidade viral, e talvez não seja justo comparar esses resultados aos dos dois estudos conduzidos durante a pandemia.
Os 78 estudos incluídos na revisão foram agrupados de acordo com a suas respectivas similaridades, em diferentes tipos de comparação. A principal comparação de interesse dos autores foi o uso de máscaras, versus não usar máscaras, para três desfechos: (1) aparecimento de sintomas respiratórios gripais, (2) confirmação de doença respiratória viral por teste de PCR e (3) eventos adversos. Os autores concluem que, na escala da comunidade, o uso de máscaras não foi melhor do que não usar máscaras nem para prevenir aparecimento de sintomas (nove estudos e 276.917 pessoas, com certeza de evidência moderada), nem para confirmação de doença por teste de PCR (seis estudos e 13.919 pessoas, com certeza de evidência moderada). Infelizmente, a maioria dos estudos não relatara dados de eventos adversos, o que prejudicou a análise para esse importante desfecho.
Os dois estudos conduzidos durante a pandemia, considerados na revisão, são o de Abaluck (2022), realizado em Bangladesh, e o de Bundgaard (2021), na Dinamarca. São trabalhos robustos em termos amostrais, mas com alto risco de viés. O estudo conduzido na Dinamarca não detectou diferença entre usar ou não usar máscaras para o desfecho de confirmação de doença por teste de PCR, enquanto o de Bangladesh detectou uma modesta diferença em favor das máscaras para o aparecimento de sintomas gripais, com uma redução de risco da ordem de 13%.
Outras comparações secundárias dessa revisão concluíram que não houve diferenças no uso de máscaras cirúrgicas e máscaras N95 em profissionais de saúde. Além disso, a revisão concluiu que lavagem de mãos pode ser eficaz na redução da incidência de doenças respiratórias agudas (nove estudos e 52.105 pessoas, com moderada certeza de evidência), com uma redução de risco da ordem de 14%. Outras intervenções como gargarejos também foram analisadas, mas os trabalhos demonstraram que essa intervenção não foi considerada eficaz.
Possíveis limitações
Muitas pessoas criticaram a remoção de estudos observacionais das análises. Mas o fato é que estudos observacionais não são a melhor forma de detectar efeitos de intervenção. Todas as revisões Cochrane evoluem de uma revisão com diferentes tipos de estudo para revisões que incluem apenas ensaios controlados randomizados, que são o tipo de estudo que produz os resultados mais confiáveis. A exclusão dos estudos observacionais é um mérito, não uma falha da revisão.
Muitos estudos foram conduzidos em momentos em que a circulação viral foi baixa, logo, a possibilidade de detecção de efeito é também baixa. Esse é um ponto importante para interpretar os resultados da revisão. Os dois estudos de COVID disponíveis apresentam resultados diversos (um positivo para desfecho subjetivo e um negativo para desfecho objetivo). Ou seja, mesmo os estudos de COVID ainda trazem uma incerteza importante. A meu ver, seria melhor se os dados dos estudos de COVID fossem apresentados de forma separada, para evitar confusão na interpretação.
O risco de viés da maioria dos estudos é alto. Há ampla evidência de que estudos com alto risco de viés tendem a aumentar as estimativas de efeito (no caso, gerando resultados em favor do uso de máscaras), o que não foi o caso. A maioria esmagadora dos resultados foi negativa, logo, não faz sentido atribuir o resultado da revisão ao risco de viés aumentado. É extremamente improvável que um novo estudo, com baixo risco de viés, venha a mudar a estimativa de efeito.
A aderência ao uso de máscaras foi baixa nos estudos. Isso tem sido apontado como uma possível explicação para o efeito decepcionante. A aderência de qualquer tratamento tende a ser baixa em duas situações: 1) quando o participante não nota benefício e 2) quando o participante observa dano aparente. Nos poucos estudos que coletaram dados de eventos adversos, os participantes relataram desconforto com o uso da máscara, calor excessivo, sensação de abafamento, entre outros. Isso foi largamente observado no mundo real durante a pandemia.
A meu ver, isso mostra que o uso de máscaras, como medida de saúde pública, enfrenta grandes dificuldades, pois gera desconforto e baixa percepção de eficácia. Além disso, uma das consequências não intencionais do uso de máscaras é que as pessoas que usam máscaras tendem a correr mais riscos, expondo-se mais a ambientes onde há transmissão do vírus.
A pergunta que deve ser feita aqui é: se a aderência às máscaras foi baixa dentro de um estudo, em que os pesquisadores têm mais influência sobre os voluntários (e os voluntários são voluntários, isto é, ao menos em princípio concordaram em usar máscaras corretamente), o que esperar da aderência em condições normais do cotidiano? É muito provável que seja pior. O uso inadequado das máscaras, com vedação imprópria, no queixo ou com nariz de fora, a reutilização e outros problemas devem ser levados em consideração para entender o frustrante resultado nos diversos estudos conduzidos em escala comunitária.
Por outro lado, excluir os estudos com baixa aderência violaria os princípios de utilização da evidência em revisões sistemáticas, segundo o próprio Cochrane Handbook. Os estudos foram pragmáticos e se aproximaram razoavelmente bem do mundo real. Isso foi nítido na pandemia, em que pessoas foram frequentemente vistas usando máscaras de forma inadequada, tirando máscaras para conversar, para comer durante voos etc.
Considerações finais
A revisão não sofre de nenhum defeito fatal que invalide seus resultados ou conclusões. Essa revisão não “joga a toalha” sobre o uso de máscaras como estratégia de proteção comunitária, uma vez que o grau de incerteza ainda é alto e novos estudos são necessários. Porém, o estado atual da evidência é claro: da forma que foram utilizadas, as máscaras parecem não ser úteis como esperávamos. O fato de os estudos terem alto risco de viés, mas serem negativos, mostra que o viés não impactou as estimativas de efeito.
É preciso levar em conta que a baixa aderência e a má utilização das máscaras podem explicar bem os efeitos negativos observados. Logo, seria muito interessante um estudo em que um dos grupos fosse bem treinado e instruído, para ver se a forma de utilização de máscaras e a aderência melhoraria; e se isso, por sua vez, traria melhores indicadores clínicos na saúde coletiva. Se isso não for possível, talvez a opção mais sensata do poder público seria não insistir em obrigações de uso de máscaras na comunidade, já que a baixa adesão e o mau uso parecem neutralizar o benefício esperado, e não parece factível criar uma “polícia das máscaras” para repreender todo e qualquer caso de uso inadequado.
Uma intervenção comunitária só faz sentido se a maioria das pessoas aceitá-la e vier a participar corretamente – ou se houver um modo efetivo de impor e fiscalizar a adesão. Um ótimo exemplo é o uso de cintos de segurança: todos os carros têm o equipamento, de acordo com rígidas normas técnicas, a utilização é extremamente simples e é de fácil fiscalização. Logo, bastou uma lei para que aderência e o bom uso do cinto de segurança se disseminassem.
Infelizmente, a implementação do uso de máscaras na prevenção de doenças virais respiratórias em escala comunitária é muito mais complexa, e mais esforços devem ser realizados para ver se uma maior aderência é possível. Caso contrário, a melhor decisão será buscar outras soluções para a prevenção dessas doenças.
Leonardo Costa é doutor pela Universidade de Sydney e bolsista produtividade em pesquisa 1B do CNPq. Possui mais de 30 revisões sistemáticas publicadas, sendo seis dentro da Colaboração Cochrane, com ampla experiência na condução de ensaios controlados randomizados em intervenções não farmacológicas