Onda negacionista e polarização ampliam ataques à liberdade acadêmica

Questão de Fato
17 out 2022
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caça às bruxas

 

Numa época em que o negacionismo científico avança e os defensores da tese pré-helênica da Terra plana não se envergonham de expor sua ignorância, muito antes pelo contrário, não é de surpreender que a liberdade acadêmica esteja sob ataque. Em todo o mundo. Em artigo recente, o professor de filosofia Arif Ahmed, da Universidade de Cambridge, diz que as atividades principais dos cientistas – ensino e pesquisa – enfrentam crescente vigilância e controle de administradores e, até mesmo, de colegas ou alunos.

No Brasil não é diferente. Uma série de relatórios do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT) trata da questão. O segundo deles, chamado Retrato dos ataques à liberdade acadêmica no Brasil – Sistematização das violações com maior repercussão midiática no país desde 2019, divulgado em junho, reúne exemplos dos ataques que tiveram maior repercussão em veículos de imprensa ou canais especializados.

O quarto relatório da série, lançado em agosto, com o título Violações à liberdade acadêmica no Brasil: caminhos para uma metodologia, lança um olhar microscópico para a realidade da educação universitária brasileira a partir do estudo das ameaças sofridas, com base nas percepções de docentes, pesquisadores e estudantes de pós-graduação de diversas instituições de ensino superior.

Em seu artigo, Ahmed diz que liberdade – ausência de controle externo – é uma coisa, mas seu comprometimento ou extinção assume muitas formas. Ele cita vários exemplos de ataques à liberdade acadêmica ocorridos no Reino Unido desde 2015. Entre eles, o cancelamento de palestras e eventos; regulação interna e externaformação obrigatória, ideologicamente carregada; distorcer o programa para “respeitar as sensibilidades religiosas”; instituições que tomam partidos políticos; e uma universidade que enfrenta ameaças de protesto e violência cancelando (em vez de proteger) um palestrante convidado.

Na introdução do segundo relatório, o LAUT lembra que no Brasil a liberdade acadêmica é protegida pela Constituição (artigos 206 e 207) em, ao menos, duas grandes dimensões: a individual e a institucional. A primeira “se relaciona com direitos e garantias dos atores educacionais e científicos — professores, alunos, pesquisadores —, como a liberdade de ensinar, aprender, pesquisar e divulgar o pensamento científico, a arte e o saber”. A segunda, por sua vez, trata de direitos garantidos às instituições de ensino e pesquisa para que estas possam existir, desempenhar suas funções e alcançar seus objetivos institucionais. É a chamada autonomia universitária.

As violações à dimensão individual incluem investigações administrativas e procedimentos disciplinares ou criminais e exonerações arbitrárias. O relatório do LAUT cita exemplos dos dois tipos. Como o caso em que a Polícia Federal intimou, em 2020, professores e estudantes da Universidade Estadual do Ceará (UECE) por terem participado de atos antifascistas. Outro é exemplo é a ação sigilosa do Ministério da Justiça para monitorar 579 servidores antifascistas, entre eles docentes universitários, e repassar informações a outros órgãos do governo.

Nessa linha de investigação administrativa e procedimentos disciplinares um dos casos que ficou mais conhecido, ocorrido em 2021, foi o processo contra dois pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), o ex-reitor Pedro Hallal e o professor Eraldo dos Santos Pinheiro, por criticarem Bolsonaro pelo desrespeito à lista tríplice de nomeação à reitoria. Os dois tiveram que assinar Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) se comprometendo a não criticar atos do presidente por dois anos. O relatório do LAUT cita uma declaração de Hallal: “No futuro, vão se lembrar que professores foram processados por criticarem o governo Bolsonaro”.

Entre os casos de exonerações arbitrárias, houve duas, ocorridas em 2019, que ganharam grande destaque na imprensa. Um deles foi a demissão do então diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o físico Ricardo Galvão, após divulgação de dados sobre aumento do desmatamento amazônico, que havia sido o mais alarmante num período de 10 anos.

O outro foi a exoneração da então presidente (Maria Inês Fini) e três diretoras do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Estatísticas (Inep), órgão responsável pela elaboração do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A demissão ocorreu depois de Bolsonaro criticar o exame de 2018, por conter questões com vocabulário LGBTQIA+.

No caso das violações à dimensão institucional, elas podem ser de três tipos, cada uma com subtipos: didático-científica, administrativa e gestão financeira e patrimonial. Exemplos não faltam. Segundo relatório do LAUT, entre as primeiras estão o desincentivo a projetos de ensino, pesquisa e extensão referentes à proteção e promoção dos direitos humanos; retrocessos em políticas de acesso e permanência de grupos vulnerabilizados no ensino superior; criação de canaisformais e informais — de vigilância nas universidades e, até mesmo, o impedimento de cursos, eventos e apreensão de materiais e censura a pesquisas e a outras atividades.

O atual governo brasileiro também tem se esmerado em desrespeitar a autonomia administrativa das universidades e instituições de pesquisa. Conforme o segundo relatório do LAUT, de 2019 até setembro de 2021, pelo menos 18 das 50 nomeações de reitores universitários feitas por Bolsonaro desrespeitaram a ordem das listas tríplices universitárias, escolhidas por eleição da comunidade de cada uma. Como se não bastasse, ele nomeou até pessoas que não faziam parte das listas.

Por fim, a autonomia de gestão financeira e patrimonial das universidades e instituições de pesquisa também vem sofrendo ataques sistemáticos do governo negacionista, principalmente por meio de cortes e escassez de recursos. Já no seu primeiro ano de gestão, por exemplo, em sua proposta do Orçamento anual para o ano seguinte enviada ao Congresso Nacional, Bolsonaro reduziu em 18% as verbas destinadas ao Ministério da Educação (MEC), afetando da educação básica à pós-graduação.

Depois, ao sancionar o Orçamento, o presidente bloqueou R$ 5 bilhões destinados ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), mesmo havendo lei que proíbe o remanejamento de verbas destinadas à ciência. Além disso, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) teve o menor orçamento do século e o repasse de recursos, em 2021, para as 69 universidades federais foi igual ao de 2004, quando havia apenas 51 e metade dos alunos.

Para o quarto relatório, Violações à liberdade acadêmica no Brasil, o LAUT elaborou um questionário com 30 perguntas abertas e de múltipla escolha, que ficou disponível online de agosto a dezembro de 2021 e foi respondido por 1.116 acadêmicos. Pelas respostas foi possível conhecer experiências pessoais e percepções no desempenho das suas atividades nas instituições. “A amostra permite a compreensão das condições da liberdade acadêmica no Brasil, mas apresenta limitações, especialmente em termos de representatividade temporal, de gênero, raça e tipos de instituições, podendo não englobar todos os casos de violação já ocorridos no país”, ressalva o texto.

Do total de pessoas que responderam às perguntas relativas a autolimitações em pesquisas e aula, 35,3% declararam já ter limitado aspectos das primeiras e 42,5% o conteúdo das segundas, por medo de retaliações ou alguma outra consequência negativa para si. A pesquisa também revelou que 43% dos respondentes consideram ruins ou péssimos os procedimentos administrativos existentes para combater violações e ameaças à liberdade acadêmica, “evidenciando a carência de protocolos eficientes para lidar com o problema”.

Ao longo do relatório são transcritos vários depoimentos dos que responderam o questionário, revelando situações em que tiveram sua liberdade acadêmica cerceada. Uma recorrente é a proibição de manifestações sobre questões políticas e sociais em sala de aula. Alguns acadêmicos relataram a dificuldade de tratar de determinados temas sem que surjam debates de natureza política. Segundo um respondente, a instituição determinou “a não manifestação sobre opinião política em debates em sala de aula”, mas ele se questiona se seria possível, por exemplo, “tratar de cidades de forma ‘apolítica’”.

Os docentes ainda enfrentam vigilância e censura em suas aulas, o que ocorre por meio de gravações, interrupções e invasões. Isso pode ser feito por alunos, dirigentes da instituição, movimentos ideológicos e até por terceiros desconhecidos. Segundo o relatório, muitos professores disseram ter aulas presenciais ou palestras gravadas por alunos, que depois os ameaçaram e os assediaram moralmente em redes sociais ou os denunciaram para ouvidorias e outros órgãos de controle.

Segundo um dos respondentes, “alunos podem fazer denúncias sem necessidade de comprovação” e cabe aos professores provar a inocência, pois as denúncias são acatadas e geram um processo administrativo disciplinar (PAD). “Passei por um PAD anos atrás e só consegui demonstrar que os alunos mentiram por ser muito organizada e registrar tudo”, relatou. “Foi um desgaste imenso, me levou a tomar remédios e a mudar a forma de me relacionar com os estudantes, que agora está mais fria e distante”.

De acordo com os que responderam o questionário do LAUT, o clima que se cria com essa situação é de medo. “Com isso, há um grande espaço para que cresça a autocensura, uma vez que você não quer prejudicar a si mesmo, nem seus colegas e seu programa”, disse um deles. Há casos, segundo o relatório, em que os docentes não limitaram suas aulas ou pesquisas, mas contaram terem ficado receosos de abordar determinados temas e conteúdos (“percebi que estava ‘policiando’ minha própria fala”). Um dos respondentes destacou que o “risco de ser perseguido afeta o livre desenvolvimento da aula”.

Os casos relatados são apenas a ponta do iceberg. Como conclui o quarto relatório do LAUT, muitas ameaças e violações da liberdade acadêmica não chegam ao conhecimento do público em geral e não ganham destaque na mídia, o que faz com que as organizações atuantes na defesa desses direitos não disponham de informações suficientes para pensar em estratégias de defesa. “Por conta disso, a análise de dados coletados pelo questionário, ao lado dos eventos reportados na grande mídia, permite a melhor identificação dos tipos de violação da liberdade acadêmica no Brasil, especialmente aquelas consideradas mais brandas”.

 

Evanildo da Silveira é jornalista

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