E quem vigia a integridade dos periódicos científicos?

Questão de Fato
22 set 2022
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Pode-se dizer que tão importante quanto a geração de novos conhecimentos é a integridade das pesquisas e das publicações científicas. Por isso, as universidades promovem-na, os editores de periódicos defendem-na e as agências governamentais de financiamento debatem, endossam e exigem-na. Mas, na prática, muitas vezes ela falta: erros e fraudes são cometidos, e nem sempre são corrigidos.

Pelo menos é o que dizem três pesquisadores, dois da Nova Zelândia e um da Escócia, em artigo publicado recentemente no blog The Scholarly Kitchen, mantido pela Society for Scholarly Publishing (SSP). Eles questionam quem, de fato, se importa com a integridade das publicações. Na abertura do texto, os autores citam uma série de casos em que revistas, instituições acadêmicas e até órgãos reguladores não tomaram nenhuma providência a respeito de erros e fraudes, mesmo tendo conhecimento da existência deles.

De acordo com os autores, os casos descritos ali são apenas alguns dos muitos exemplos dos resultados lentos, opacos, inconsistentes, frustrantes e insatisfatórios de corrigir ou chamar a atenção para a falta de integridade de publicações científicas. “O artigo aborda questões extremamente relevantes e que devem ser cada vez mais investigadas e avaliadas, sendo necessário maior transparência durante a investigação e os prazos de resposta e conclusões sobre suspeitas levantadas por outros pesquisadores”, diz o biólogo Guilherme Gomes, da Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos.

Para o doutor em Ciências Vitor Engrácia Valenti, do campus de Marília da Universidade Estadual Paulista (Unesp), manter a integridade da publicação é difícil porque o processo enfrenta diversos tipos de influência. Muitos autores sofrem grande pressão das instituições para publicar, o que pode incentivar a má conduta científica. “Jovens pesquisadores sofrem essa pressão e acabam, em algumas situações, participando de plágio, falsificação e manipulação de dados”, explica.

Some-se a isso o imenso número de autores submetendo artigos, o que dificulta muito o controle pelas revistas. “Nas revistas que eu trabalho como editor do grupo sênior (Scientific Reports) e editor associado (Frontiers in Physiology, Frontiers in Neuroscience e Frontiers in Neurology) existe um software, que, por meio de inteligência artificial, consegue detectar plágio em textos e figuras, e também identificar fortes indícios de falsificação de dados”, conta Valenti. “No entanto, são poucas as revistas que têm infraestrutura para organizar esse sistema complexo”.

O artigo do The Scholarly Kitchen aborda especificamente a área biomédica, mas o que diz pode ser aplicado a qualquer outra. Como lembra o médico e doutor em Psicologia (Neurociência e Comportamento) John Fontenele Araújo, professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), erros são inerentes às atividades humanas. Na ciência, porém, seria de se esperar uma frequência menor.

E isso realmente ocorre, diz ele, mas, com o crescimento exponencial das publicações científicas, os erros também aumentaram. “Aqueles em ciências, ou melhor, em publicações científicas, nem sempre são facilmente detectados”, ressalva Araújo. “Geralmente, só por especialista naquela área. Assim, para a área de saúde, por exemplo, falhas em ensaios clínicos não são facilmente identificados por quem não é especialista no tema”.

O problema principal para ele, no entanto, é que mesmo quando erros são detectados por experts, as revistas demoram a informar que há um erro ou proceder a retratação – isso, quando o fazem. Assim, para o não especialista, o artigo continua correto. Problema que se agrava quando os erros detectados são intencionais, como no caso da fabricação de dados. “Nesses casos, erros passam a ser considerados desvios éticos”, diz.

Os autores do artigo do blog The Scholarly Kitchen observam que os editores têm controle sobre a integridade da publicação pela qual respondem, pois decidem o que publicar e o que corrigir. Os papers são, portanto, seu “produto”. Eles lembram que a maioria das organizações que vendem produtos têm mecanismos de controle de qualidade. Ou seja, a avaliação da integridade da publicação deve fazer parte do processo editorial. Muitas vezes não é o que ocorre, no entanto. Mesmo periódicos grandes e extremamente lucrativos, dizem eles, parecem investir pouco em medidas práticas de sustentação da integridade.

Em relação às instituições acadêmicas, os autores dizem que, diante de desconfianças com a pesquisa de um cientista afiliado, geralmente parecem se preocupar mais com sua própria reputação do que com a integridade do que é publicado sob sua égide. Comumente, conduzem investigações internas secretas, prolongadas e incompletas, focadas no controle de danos e na determinação da ocorrência de “conduta imprópria”, em vez de verificar se as publicações em questão são confiáveis.

Além disso, os relatórios de suas investigações raramente são tornados públicos, ou compartilhados com os editores. As principais vítimas –  os leitores dos artigos – quase nunca são informadas da existência de uma investigação ou de suas conclusões. Isso sugere que as instituições acadêmicas não se preocupam com a integridade.

Valenti concorda. Ele diz que em determinadas situações a instituição prioriza a defesa da reputação no lugar de identificar e assumir possibilidades de más condutas científicas. “Isso ocorre devido à alta competitividade que as universidades sofrem”, explica. “Seria muito importante que as entidades de avaliações se preocupassem também em valorizar a capacidade de uma instituição em monitorar casos de má conduta científica”.

No caso das editoras, ele diz que existem algumas que não tomam as providências adequadas diante de casos de erros ou fraudes em publicações. “Infelizmente, isso se deve a uma política que pode envolver proteção entre colegas e medo de perder a reputação da revista, por exemplo”, diz. “Alguns periódicos evitam retratar e denunciar situações de má conduta científica com receio de serem prejudicados quanto às submissões e reduzir o fator de impacto”.

Gomes, por sua vez, passou por uma experiência pessoal recente com os meandros do processo de correção de publicações científicas. Ele teve conhecimento de dados manipulados de um grupo com o qual tinha grande proximidade, e entrou em contato com os autores inicialmente, por conhecer o projeto e os dados coletados. “Após conversas à distância e presenciais fiquei ainda mais embasado das contradições e má-fé dos autores”, conta. “Nesse momento, contatei a editora e a agência financiadora, tendo em vista que os autores continuavam omitindo equívocos e escondendo dados. A editora me passou os dados e confirmei as manipulações”.

Seu próximo passo foi enviar uma carta ao corpo editorial. Em resposta, recebeu convite para integrá-lo. “Mas, depois disso, o retorno da editora em relação às denúncias envolvendo a publicação do artigo começou a demorar cada vez mais ”, diz. “A editora parece segurar os retornos, buscando obter um cansaço do denunciante”.

A médica Edna Montero, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e integrante da diretoria da Associação Brasileira de Editores Científicos (ABEC), é mais cautelosa. Ela não acredita que haja descaso ou leniência das editoras e universidades com a integridade das pesquisas e publicações. “Não creio que seja isso”, diz. “O que ocorre é que a identificação, denúncia, verificação e, principalmente, punição de erros é um processo difícil, mesmo do ponto de vista do Judiciário – que lida com isso no dia a dia.”

Ela acrescenta: “É uma questão de amadurecimento, e as cobranças estão vindo de diferentes pontos, o que facilitará ir além do reconhecimento do problema e passar a agir para corrigir e prevenir a sua ocorrência”.

Gomes aponta a tendência de artigos cada vez mais resumidos, o que faz com que os autores omitam detalhes, o que muitas vezes dificulta uma análise mais aprofundada por parte dos revisores. Além disso, muitos aceitam analisar um artigo sem o conhecimento básico necessário para detectar eventuais falhas.

Os editores, por sua vez, confiam na avaliação dos revisores e tendem a receber com má vontade denúncias externas.

Problemas de integridade na publicação científica acabam afetando toda a sociedade, pois recursos foram gastos na produção dos dados, e a manipulação de resultados destrói o retorno do investimento. “O problema é muito maior que apenas um texto fictício, pois pode ter consequências diversas, desde medicamentos sem embasamento até anos de pesquisas de boa fé baseadas em conhecimento inventado”, diz Gomes.

 

Evanildo da Silveira é jornalista

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