O tempo não está "passando mais rápido"

Questão de Fato
6 ago 2022
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Recentemente, em 29 de junho, nosso planeta quebrou o recorde de dia mais curto já registrado em tempos recentes, isto é, desde que a duração da rotação da Terra começou a ser medida por meio de relógios atômicos. No entanto, somente nos últimos dias o fato ganhou ampla divulgação (como você pode ver aqui, aqui e aqui), fazendo despertar o interesse das pessoas. Por isso, exploraremos, a seguir, algumas curiosidades astronômicas relacionadas à duração do dia (e suas variações) e à necessidade (e suas consequências) da aplicação dos intrigantes “segundos intercalares” no horário mundial de referência.

 

Cada dia é um dia

As 24 horas que usamos para indicar a duração do dia é uma herança dos antigos egípcios: primeiro, eles dividiram o período de iluminação diurna em 10 horas, sem contar a noite; depois, adicionaram uma hora para o nascer do Sol e outra para o pôr do Sol, completando 12 horas; por fim, a partir do movimento das estrelas, passaram a também subdividir o período noturno em outras 12 horas, fechando o dia com 24 horas. Curioso apontar, no entanto, que as horas egípcias não eram exatamente iguais às nossas, pois suas durações efetivas se modificavam ao longo do ano: no verão, com dias mais longos e noites mais curtas, as horas diurnas duravam mais que as noturnas. O contrário ocorria no inverno.

Abre parênteses. Sistemas de contagem baseados em múltiplos de 6 – como os que utilizamos para medir ângulos em graus, e para contar segundos, minutos e horas – costumam ser menosprezados sob o argumento de que não são úteis para se “contar nos dedos”, ao contrário dos sistemas decimais, baseados em múltiplos de 10. Vejamos... Faça o seguinte exercício: deixe sua mão esquerda fechada e a direita aberta; agora, use o polegar da mão direita para tocar (e contar) cada ossinho de cada um dos 4 outros dedos da mesma mão. O resultado obtido é 12. Em seguida, para sofisticar, estique um dedo da mão esquerda cada vez que completar a contagem das 12 falanges na mão direita e, bingo!, você terá um sistema manual com capacidade para contar até 60! Fecha parênteses.

Historicamente, a evolução das medidas de tempo se mistura à das medidas de ângulos, com a dos estudos da geometria do círculo e também com a do desenvolvimento da observação astronômica. Mas, fato é que as horas passaram a ter uma duração fixa e foram subdivididas em unidades menores, os minutos e os segundos: 1 hora tem 60 minutos e, cada minuto, 60 segundos.

Do ponto de vista astronômico, existem dois “tipos” de dias: o “dia sideral” e o “dia solar”. O dia sideral é o tempo necessário para que uma das chamadas “estrelas fixas” – que estão tão distantes de nós que parecem não ter nenhum movimento próprio, para além daquele que recebem “emprestado” da rotação e da translação da Terra – leva para voltar ao mesmo ponto do céu. Já o dia solar é o tempo que o Sol leva para fazer o mesmo; o intervalo entre dois “sóis do meio-dia”, digamos. O dia solar é cerca de 4 minutos mais longo que o sideral. A diferença entre ambos é consequência do fato de que, dia após dia, a posição da Terra em sua órbita ao redor do Sol é levemente diferente.

E agora começam as complicações. A órbita da Terra ao redor do Sol não é circular, mas sim elíptica (circunferência levemente achatada), e o Sol não fica exatamente no centro dela; além disso, ao longo do movimento elíptico, ora a Terra se desloca mais rapidamente, ora mais lentamente. A variação de velocidade não é lá muito grande, mas existe. Como consequência, a duração do dia solar varia naturalmente ao longo do ano, fazendo com que seja necessário estabelecer o que se chama “dia solar médio”. E mesmo quando pensamos apenas no “dia sideral”, ele também se modifica, justamente porque há vários fatores que afetam a velocidade de rotação da Terra ao longo do tempo. Literalmente, como anuncia o ditado popular, “cada dia é um dia”.

O que se tem percebido é uma lenta e gradual diminuição na velocidade média da rotação da Terra, aumentando a duração do dia a uma taxa média de alguns milésimos de segundo por século. Um fator que contribui com esse processo é a ocorrência das marés: à medida que os oceanos (e, em menor escala, a própria crosta terrestre) vão sofrendo mudanças na distribuição espacial aqui na Terra – fenômeno que decorre da influência gravitacional da Lua e do Sol sobre o nosso planeta –, a velocidade média da rotação terrestre vai se reduzindo leve e gradualmente.

Há, ainda, outros fatores que podem alterar, na ordem de milésimos de segundo, o dia sideral, para mais ou para menos: atividades sísmicas, derretimento ou formação de geleiras, modificações contínuas na distância Terra-Lua à medida que ela orbita nosso planeta, além de variações na movimentação dos fluidos no manto e no núcleo terrestres. É semelhante ao que ocorre com uma bailarina fazendo piruetas: quando ela modifica sua distribuição espacial de massas (mexendo pernas e braços, por exemplo), sua velocidade de rotação pode aumentar ou diminuir. No entanto, como vários desses fatores não são previsíveis, sempre que a Terra “quebra recordes” em dias especialmente curtos, ou longos, isso acaba virando notícia.

O que tem chamado atenção é que, desde que os registros precisos de intervalos de tempo começaram, com os relógios atômicos, na década de 1960, a Terra vem passando por quebras sucessivas do recorde de dia mais curto. Neste ano, 29 de junho ficou 1,59 milésimo de segundo abaixo das 24 horas “regulamentares”. Mais curioso ainda é o fato de que, em 2020, o recorde foi quebrado 28 vezes. Embora os geólogos já estejam investigando o caso, ainda não se sabe qual fator está sendo determinante para causar essa leve aceleração recente. Lembrando que mudanças no tempo de rotação não são realmente uma novidade.

 

Quanto tempo o tempo tem?

Caso você ainda não tenha reparado, todas as “unidades de medida” representam um padrão a partir do qual se determinam valores de coisas que queremos medir. Por exemplo, no que se refere a “comprimento”, a unidade convencionada como o padrão internacional é o “metro”: assim, quando dizemos que a altura de uma parede é de 2,6 metros, isso significa que ela é 2,6 vezes maior que o “comprimento padrão”.

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No final do século 19, foram fabricadas barras de uma liga de platina e irídio cujo comprimento, a 0º C, foi definido como 1 metro. Mas a tecnologia e a necessidade de precisão avançam, e desde 1983 o metro passou a ser definido como a distância que a luz percorre, no vácuo, durante um intervalo de tempo um pouco maior que 3,3 bilionésimos de segundo.

Quando entramos no domínio do tempo, fenômenos cíclicos – ou seja, que se repetem periodicamente – são usados para definir os padrões das unidades. E o que não faltam são ciclos relacionados à astronomia: o dia solar médio é um exemplo; o chamado “ano tropical” é outro, que corresponde a um período completo das quatro estações do ano. Curiosamente, ambos os ciclos já foram usados para definir o “segundo” como unidade padrão para se medir tempo.

Em 1889, o segundo foi definido como o intervalo de tempo necessário para que o dia solar médio correspondesse exatamente à convenção de 24 horas, ou 86.400 segundos. Depois, em 1960, a definição foi refeita tomando por base o ano tropical, de modo que “coubessem” 31.556.925,9747 segundos dentro do ciclo das quatro estações do ano 1900, escolhido como referência. Por fim, desde 1967, como consequência do desenvolvimento de relógios atômicos – que marcam a passagem do tempo a partir de sinais eletromagnéticos emitidos por átomos –, o segundo passou a ser o intervalo de tempo necessário para que ocorram 9.192.631.770 oscilações completas de uma radiação eletromagnética específica emitida pelo átomo de césio-133.

Todas essas mudanças na definição do segundo não foram aleatórias, mas uma necessidade associada ao avanço tecnológico: os recentes aparelhos do GPS só funcionam bem porque os relógios atômicos conseguem medir a passagem do tempo com uma precisão suficientemente alta. Hoje, usamos relógios com indicações de horas, minutos, segundos e até centésimos de segundos, mas os primeiros relógios solares egípcios só apresentavam marcações de horas. Os relógios mecânicos contendo a indicação de minutos começaram a ganhar terreno apenas durante o século 16.

 

Que horas são?

Atualmente, o horário de referência mundial é o chamado “Tempo Universal Coordenado” (UTC, na sigla em inglês). O horário local de cada região do planeta depende de decisões políticas que determinarão eventuais incrementos ou decréscimos sobre o horário UTC, formando os diferentes “fusos horários”, que podem até mesmo sofrer mudanças periodicamente, como as que acontecem quando se estabelecem horários de verão. No Brasil, por exemplo, o Horário de Brasília está 3 horas atrás do UTC.

A sucessão temporal do horário UTC obedece à definição mais moderna dos “segundos”, aquela relacionada à emissão do átomo de césio. Portanto, sua operação é vinculada a relógios atômicos: não apenas um, mas centenas, localizados em diferentes países ao redor do globo. Com base em todas as medidas oferecidas pelo conjunto, equações e correções relativísticas são aplicadas periodicamente para calcular o chamado “Tempo Atômico Internacional” (TAI), cuja “marcha” é então utilizada para “fazer andar” o horário UTC.

Paralelamente a isso, uma organização fundada em 1987, chamada Serviço Internacional de Sistemas de Referência e Rotação da Terra (IERS, na sigla em inglês), é responsável por permanecer de olho no céu: ela coordena o processo de acompanhamento da duração do dia sideral a partir de observações astronômicas diárias, bastante precisas. De posse dessas medidas, calcula-se a duração do dia solar para a data em questão e, com isso, estabelece-se outro horário de referência mundial, chamado de “Tempo Universal” (que, após cálculos e correções, é chamado de UT1).

 

Só um segundo, por favor

É interessante perceber que desde que foi adotado o horário UTC como referência mundial, em 1967, nossos relógios e horários oficiais passaram a “marchar” de acordo com a nova definição dos “segundos”, que, como vimos, não mais está relacionada ao fenômeno astronômico do dia solar médio. Embora seja inegável o avanço científico por trás da mudança, é impossível não reparar o problema prático que isso acabou gerando, pois as pessoas continuam usando relógios para se orientar em relação ao ciclo diário do Sol: em outras palavras, queremos que, ao meio-dia do relógio, o Sol esteja próximo da metade do caminho que percorre no céu (“próximo” porque o “meio-dia solar” não necessariamente ocorre ao “meio-dia da hora local”, mas isso é outro assunto), e que, à meia-noite do relógio, possamos afirmar que já se passou aproximadamente metade do tempo entre o pôr do Sol e o nascer do novo dia.

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Foi necessário, então, desenvolver um sistema que mantenha certa concordância entre o horário UTC (que é essencialmente atômico) e o horário UT1 (relacionado ao ciclo solar). Caso nada fosse feito, com as mudanças paulatinas na duração do dia, de milésimos de segundo em milésimos de segundo, o horário UT1 iria acumular diferenças cada vez maiores sobre o UTC, até o ponto em que seria inútil utilizar o relógio (hora oficial) para tentar prever os momentos marcantes do ciclo habitual de 24 horas (meio-dia, pôr do Sol etc.) de modo intuitivo, sem consultar tabelas ou fazer contas.

A solução veio com a implantação dos chamados “segundos intercalares”, que funcionam da mesma forma que o dia 29 de fevereiro nos anos bissextos. As regras são estas: quando as variações acumuladas na duração dos dias são dominadas pela redução na velocidade de rotação da Terra, então precisamos adicionar um segundo extra ao relógio UTC, que é chamado de “segundo intercalar positivo”; caso contrário, se o efeito acumulado resultar da predominância de dias mais curtos, então aplicamos um “segundo intercalar negativo”, que equivale à supressão de um segundo na hora UTC.

A IERS é a responsável por determinar e anunciar quando os segundos intercalares devem ser considerados, e ela faz isso por meio da comparação constante dos dois horários, garantindo que o UTC nunca esteja mais de 0,9 segundo defasado (à frente ou atrás) do UT1. É como diz o ditado: “um olho no peixe e outro gato”. Curiosamente, todos os segundos intercalares já aplicados foram do tipo positivo, sendo o último deles em dezembro de 2016. Se os dias continuarem e se suceder mais rapidamente no futuro, talvez acabe sendo necessário introduzir o primeiro segundo intercalar negativo. Só o tempo dirá.

 

Consequências para a vida

A recente “acelerada” na rotação do planeta nada tem a ver com a sensação subjetiva, que todo mundo de vez em quando tem, de que o “tempo está passando mais rapidamente”. A intuição humana sobre passagem do tempo é um processo psicológico, muito mais relacionado ao estado emocional e às atividades da vida diária do que às mudanças de poucas casas decimais no tempo de rotação da Terra.

Os impactos do acúmulo das variações na duração da rotação terrestre só acontecem quando se torna necessário aplicar os tais segundos intercalares. Basicamente, o grande problema reside no mundo da informática. Muitos dos sistemas computacionais de que a vida moderna depende utilizam a marcação precisa do tempo como um parâmetro importante.

Como os segundos intercalares não são aplicados com uma periodicidade fixa (diferentemente dos anos bissextos), e costumam ser anunciados pela IERS conforme surge a necessidade, em geral com alguns meses de antecedência, os sistemas não podem ser programados para prever essas ocorrências. Quando um segundo intercalar entra em cena, ele pode ser interpretado como anomalia, mau funcionamento ou até falha de segurança.

É muito interessante notar como um assunto tão fascinante como este acaba gerando um contexto curioso para um conflito de ideias: de um lado, diversas empresas de tecnologia, como a Microsoft, a Meta (detentora do Facebook) e a Amazon, por exemplo, têm se movimentado para eliminar os segundos intercalares; de outro, cientistas temem a retirada da correção, uma vez que diversos estudos que envolvem a Terra e o espaço dependem da concordância entre o horário oficial e o horário astronômico. Isso tudo sem falar na relevância diária que os horários oficiais oferecem, que, como vimos, tentam manter uma coerência entre o que vemos no relógio e o que vemos no céu. O debate continua e, até onde eu sei, ainda não há uma solução capaz de deixar ambos os lados igualmente felizes – ou igualmente revoltados.

Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia. É autor de livros de física para o Ensino Superior e de divulgação científica, como o “Armadilhas Camufladas de Ciências: mitos e pseudociências em nossas vidas” (Ed. Autografia)

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