O engessamento da graduação e o modelo de universidade

Questão de Fato
24 mar 2022
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Para muitos estudiosos do modelo da universidade brasileira, não há dúvida de que ele tem vários aspectos positivos, como, por exemplo, o oferecimento de uma formação bastante abrangente, que dá origem a profissionais que dominam todos os saberes de uma disciplina. Em contrapartida, vem daí um dos seus pontos negativos, que é a pouca interdisciplinaridade, o que leva esses mesmos profissionais à hiperespecialização. Por isso, alguns classificam as universidades do país como uma espécie de grêmio de cursos profissionalizantes “de nível superior”.

De acordo com o físico Peter Alexander Bleinroth Schulz, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em entrevista recente, existe hoje uma perda de uma perspectiva de formação cultural mais ampla, produto da profissionalização da ciência, o que levou, nas últimas décadas, à hiperespecialização na formação universitária. Por isso, segundo ele, hoje se veem profissionais em humanidades presos a poucos autores dentro de recortes teóricos restritos, médicos hiperespecializados e engenheiros que simplesmente resolvem problemas, sem participar de sua discussão e elaboração.

Schulz diz ainda que, no ensino de graduação, o modelo brasileiro é derivado em grande medida do norte-americano, com o cumprimento de créditos para chegar ao diploma e disciplinas semestrais. “Mas a sua transposição é incompleta, não contempla a flexibilidade a que deveria estar associado”, diz em entrevista à Questão de Ciência. “Os currículos são rígidos e a oferta de disciplinas eletivas é, em geral, muito restrita. Os estudantes acabam seguindo a sequência oferecida sem muitas variações, que seriam desejáveis”.

Além disso, avalia, é preciso levar em conta fatores externos nesses currículos. Por um lado, o que é importante, existe a regulamentação dos currículos mínimos, estabelecidos pelo Ministério da Educação (MEC) e pelos conselhos estaduais de educação. “Por outro, o que é péssimo, é a pressão dos conselhos profissionais, absolutamente conservadores e cartoriais, sobre os currículos”, diz Schulz.

 

Autonomia

Ele lembra que as universidades têm autonomia para propor cursos e, com isso, experiências de inovação como os bacharelados interdisciplinares, que começaram a surgir. Mas centros universitários e faculdades isoladas não têm essa autonomia e ficam demasiadamente presos a pressões externas. “Enfim, a flexibilização curricular, a construção real de oportunidades para formações complementares em áreas diferentes do corpo principal de cada curso e a diminuição do poder dos conselhos profissionais são urgentes”, defende. “Se não houver essas mudanças, perderemos mais bondes e uma formação crítica e transformadora também se afastará do nosso horizonte”.

O pedagogo e historiador da Educação Luciano Faria Filho, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), observa que a universidade brasileira é muito mais fechada que a norte-americana no que refere aos percursos de formação possíveis. “Nossos cursos de graduação são, de modo geral, longos e muito restritos em cada uma das áreas”, explica.

A interdisciplinaridade também ainda é escassa, os departamentos têm uma burocracia difícil de vencer na oferta de formação. “Os nossos cursos são pensados com uma carga muito alta de disciplinas obrigatórias”, diz Faria Filho. “Nós não temos condições de oferecer aos alunos percursos alternativos, porque também a carga horária de trabalho dos professores é muito alta, sem uma burocracia especializada que ajude”.

O biólogo Martín Pareja, do Instituto de Biologia da Unicamp, que fez toda sua formação na Inglaterra, por sua vez, vê aspectos tanto positivos como negativos no modelo brasileiro. Entre os primeiros, ele cita a formação abrangente fornecida nas universidades, que vem da tradição latina (inspirada no sistema francês). “Isso leva à formação de profissionais com uma ampla base de conhecimento, independentemente da área de especialização”.

Em contrapartida, o principal defeito no sistema brasileiro para ele vem da mesma tradição das universidades latinas, que enfatizam o ensino enciclopédico verticalizado. “A formação foca em transmissão de conteúdos fixos, tais quais fornecidos pelos professores”, diz. “Isso leva a um aprendizado fixo, sem estímulo ao pensamento crítico nem ao estudo individual, já que o aluno é estimulado a estudar única e exclusivamente aquilo que os professores ensinam, exatamente da forma que foi ministrado”.

 

Alternativas

Esse modelo todo é diferente do norte-americano e do britânico, que, por sua vez, também são diferentes entre si. “No primeiro, em geral, o bacharelado é de quatros anos, nos quais o primeiro fornece uma formação um pouco mais ampla e os outros vão aos poucos se aprofundando”, explica o físico Marcelo Knobel, da Unicamp, da qual foi reitor entre 2017 e 2021. “Mas existem muitas variações. Ele é muito mais flexível que o brasileiro, que é muito rígido”.

No caso do modelo britânico, Pareja diz que estimula o estudo individual e direcionado pelo aluno, com pouquíssimas aulas. O docente não é um transmissor de conteúdo, mas sim um apresentador de estruturas, que os estudantes devem depois explorar por conta própria. “Os cursos são muito curtos (3 anos) e o ensino de graduação já é extremamente especializado, mas muita da especialização fica por conta dos próprios alunos, que escolhem os conteúdos a serem estudados”, explica. “Os currículos também são muito menos abrangentes, o que leva a alunos que podem se formar sem nunca ter tido uma base em uma subárea inteira”.

Além disso, em geral, no Reino Unido não existem disciplinas de base gerais como no Brasil. Na Biologia, por exemplo, não é necessário cursar física, química ou cálculo. “A especialização também é, de certa maneira, falsa, porque estudantes de diferentes ‘cursos’  fazem as disciplinas juntos, mas se especializam unicamente por meio de eletivas”, descreve Pareja. “Por exemplo, no curso de graduação em Ecologia que eu fiz, tive colegas que se formaram em Biologia e que fizeram as mesmas disciplinas que eu”.

Nos Estados Unidos, outra diferença em relação modelo brasileiro é que há os cursos  “major”, o principal, o bacharelado, e os “minor”, que é uma formação complementar, um certificado. “É uma prática comum no sistema americano”, diz Schulz. “O major pode ser em física e o minor em psicologia. A deputada federal Tabata Amaral, por exemplo, tem o major, (bacharelado), em Ciências Políticas, e um minor em Astrofísica. Às vezes o minor escolhido acaba influenciando opções futuras”.

Segundo Schulz, as discussões sobre universidades muitas vezes recorrem ao conceito de “modelo de universidade”, mas o apelo é reducionista. “Existem vários, que convivem entre si no Brasil e em todos os outros países”, explica. “Na literatura sobre o assunto, identificam-se alguns básicos. Primeiro, podemos citar o modelo alemão, delineado a partir da Universidade de Berlim e as ideias de Wilhelm von Humboldt, no início do século 19, identificado de maneira um pouco vaga com o que é chamado de ‘universidade de pesquisa’”.

 

Mistura

Outro é o inglês, em certa medida uma resposta ao “alemão”, que é tradicional, privilegiando a transmissão do conhecimento preservado, e não a pesquisa. “Temos ainda o ‘modelo americano’, que incorpora a extensão, a ‘universidade moderna’ de Abraham Flexner, nos anos 1930 e, na sequência, a ideia de ‘multiversidade’, descrita no clássico Os usos da universidade, de Clark Kerr, publicado em 1963”, acrescenta Schulz. “O conceito é mais próximo ao que uma universidade de fato é, uma mistura de modelos, com diferentes objetivos que competem entre si, em contínua discussão de sua identidade”.

Além da mistura, universidades são implementadas de modos diferentes nos distintos tempos e lugares. Assim, para Schulz não é possível falar de um único modelo no Brasil. “De modo breve, temos universidades com ‘atividade intensa de pesquisa’, que tendem a se descrever como humboldtianas, mas com caraterísticas dos outros sistemas”, explica. “São, em geral as públicas”.

Ao lado dessas, há aquelas voltadas primordialmente ao ensino, como as privadas com fins lucrativos, que não se inserem em nenhum dos poucos modelos brevemente descritos. “As universidades privadas sem fins lucrativos são intermediárias, também incorporando aspectos de diferentes sistemas de diferentes maneiras”, diz Schulz. “Por outro lado, se pensarmos na organização e gestão da universidade, a divisão em departamentos nas universidades públicas é herança da cultura organizacional norte-americana, introduzida aqui na reforma universitária de 1968. É a mesma herança que levou à organização do currículo de graduação em créditos”.

 

Evanildo da Silveira é jornalista

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