Projeto da USP vai usar mágica para ensinar método científico

Questão de Fato
7 fev 2022
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Em 14 de dezembro de 2021, a Universidade de São Paulo (USP) terminou a reforma no prédio que vai abrigar o Laboratório do Impossível, localizado no campus do bairro do Butantã, na capital paulista. Trata-se de um projeto do InterPsi, um grupo de pesquisa da USP dedicado a temas como psicologia da religião e a psicologia anomalística – um ramo que busca explicar o que realmente acontece no cérebro de pessoas que relatam ter ou testemunhar experiências paranormais. 

Apesar do nome “laboratório”, nenhum experimento ocorrerá ali. O local, que deve entrar em operação ainda no primeiro semestre, será dividido em três seções: um museu, uma biblioteca e um pequeno auditório. No jargão acadêmico, é o que se denomina projeto de extensão: uma atração ou serviço além do ensino e da pesquisa, que a universidade oferece para pessoas não matriculadas. 

O auditório será palco de um show de mágica voltado a turmas de crianças e adolescentes de escolas públicas e particulares paulistanas. As apresentações vão remeter à estética clichê da Inglaterra vitoriana – o século 19 foi uma era de ouro para o ilusionismo na Europa. Em vez de explicar como os truques funcionam, os mágicos vão estimular as crianças a desvendar o espetáculo por conta própria, usando o método científico.

“As crianças devem sair dali entendendo como a crença se estabelece dentro de nós”, diz Wellington Zangari, professor e pesquisador da USP e responsável pelo projeto. “Esse é o melhor antídoto contra fake news, terraplanismo e toda essa bobagem em torno da cloroquina”. A RQC pediu uma palhinha do show, mas Zangari comentou que o roteiro ainda está no forno.

A inspiração de Zangari é o trabalho do mágico canadense James Randi (1928-2020) – famoso não só por escapar de uma camisa de força pendurado nas cataratas do Niágara ou por ter produzido shows de Alice Cooper, mas também por ser um dos mais influentes ativistas céticos do mundo. Ele publicou diversos livros – um deles só para denunciar o embusteiro israelense Uri Geller –, fundou o Comitê de Investigação Cética, conhecido pela sigla em inglês CSI (do qual a publisher da RQC, Natalia Pasternak, é “fellow”), e fez centenas de aparições na TV americana.

O museu e a biblioteca do Laboratório do Impossível vão consistir no acervo do padre jesuíta espanhol Óscar Quevedo (1930-2019), que se radicou no Brasil e ganhou fama na TV aberta desmascarando médiuns, ufólogos e charlatões com supostas habilidades paranormais. Embora fosse presbítero e acreditasse nos milagres do cânone católico, Quevedo foi o primeiro contato da maioria dos brasileiros com a atitude cética racionalista. Seu quadro “Caçador de Enigmas”, no programa Fantástico, passava dos quarenta pontos de audiência, e o bordão “isso non ecziste”, com sotaque carregado, incorporou-se ao imaginário popular.

Ao longo de sua carreira, Quevedo acumulou milhares de itens associados a crenças, religiões, superstições brasileiras e pseudociências em geral – incluindo alguns talheres que Uri Geller teria entortado com poderes psíquicos em suas apresentações na TV Globo na década de 1970. Ele também acumulou mais de 15 mil livros e revistas sobre religião, psicologia da religião, parapsicologia e psicologia anomalística. Tudo isso estava armazenado ou exposto no antigo Centro Latino Americano de Parapsicologia (CLAP) – atualmente chamado Instituto Padre Quevedo (IPQ) –  e agora ficará sob os cuidados da USP. Quevedo sempre desejou que seu acervo fosse incorporado a uma universidade renomada. No momento, o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) está higienizando o material, antes de levá-lo para a exposição.

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A psicologia anomalística

Nem toda pessoa que alega possuir poderes paranormais é abertamente golpista. De fato, muitos videntes, médiuns e afins acreditam honestamente serem capazes de feitos inexplicáveis. Como os tarólogos fazem afirmações aparentemente precisas sobre a biografia de seus clientes? É possível que Chico Xavier não percebesse os comandos que dava às próprias mãos quando escrevia cartas psicografadas? Por que fiéis evangélicos caem no chão, durante certos cultos, sob a força de movimentos realizados à distância pelo pastor?   

Cérebros e corpos humanos vêm de fábrica muito permeáveis a tolices. Existe o efeito placebo, que é uma reação fisiológica real a uma intervenção fictícia. Existe o efeito Forer, que é nossa tendência a nos identificarmos com afirmações vagas e laudatórias, como as de horóscopos e mapas astrais. Existem vieses cognitivos como a apofenia, a tendência a ver conexões e significados onde não existem. Um exemplo clássico é a pareidolia, nosso instinto de ver rostos em coisas inanimadas, como imagens de santos em manchas de umidade ou de mofo. Fabricantes de carros exploram abertamente a analogia entre olhos e faróis para desenhar modelos mais arrojados ou mais simpáticos.

Vale mencionar também as memórias falsas (que ocorrem em todos nós), o transtorno dissociativo de identidade (pessoas com diferentes personalidades que se alternam) e alucinações decorrentes da paralisia do sono (um problema que ocorre na transição para a vigília, em que o paciente retoma a consciência mas é incapaz de mover o corpo).

Em suma: psicólogos anomalistas têm um enorme arsenal de possibilidades não paranormais para explicar fenômenos supostamente paranormais. Para investigá-las, eles precisam montar experimentos engenhosos. Christopher French – chefe da Unidade de Pesquisa em Psicologia Anomalística da Goldsmiths, na Universidade de Londres – deu um exemplo à RQC: estudos sobre leitura fria.

“Leitura fria” é o nome da capacidade de obter informações sobre um interlocutor desconhecido sem perguntar nada abertamente. O médium ou vidente bem treinado observa roupas, tom de voz, penteado, etnia e linguagem corporal, além de ficar atento à maneira como cliente reage a perguntas vagas. É possível fazer isso de maneira inconsciente: “existem pessoas que se declaram paranormais mas são deliberadamente embusteiras, mas há muito mais pessoas que acreditam realmente ter algum dom especial e estão iludindo a si próprias”, explica French.

Para testar isso, é possível, por exemplo, esconder os supostos clientes atrás de biombos, para negar qualquer informação visual à pessoa supostamente paranormal. Depois, você mostra as descrições aos voluntários e pede que cada um deles identifique a sua, por afinidade. Se realmente fosse possível ler mentes, as sessões dariam certo mesmo com o cegamento total do teste, mas não dão.

O método científico, é claro, não permite descartar explicações paranormais de antemão só porque elas não condizem com o conhecimento acumulado até agora pela física e a biologia – embora esse conflito torne a explicação paranormal altamente improvável, a priori, e produza um ônus da prova especialmente elevado. De qualquer modo, há sempre o benefício da dúvida. Se uma pessoa demonstrasse ser capaz de mover objetos com a força da mente – e repetisse o feito para verificação independente de vários laboratórios, sob controles adequados –, então teríamos um corpus de evidências sólido a favor da telecinese. O problema é que, até hoje, nenhuma alegação de paranormalidade verificável por experimentos controlados (clarividência, telepatia, precognição etc.) passou pelo crivo.

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O físico Michael Faraday, por exemplo, testou, de mente aberta, uma mesa de diálogo com os mortos popular na Inglaterra da época, que tinha função similar à de uma tábua de Ouija. Descobriu que os movimentos da mesa, atribuídos aos espíritos, na verdade eram obra inconsciente dos próprios participantes das sessões.

Faz aproximadamente dois séculos que os denominados parapsicólogos – pesquisadores que buscam confirmar a existência de fenômenos genuinamente paranormais em laboratório – trabalham em vão. Assim, argumenta o filósofo da ciência Mario Bunge (1919-2020), já é possível classificar a parapsicologia como uma pseudociência: o campo insiste em perseguir questões que estavam abertas no século 19, mas que hoje, duzentos anos depois, já podemos declarar como solucionadas. Muitos outros campos de investigação oferecem explicações mais simples e plausíveis para experiências aparentemente paranormais.

Em 1974, o Prêmio Nobel e piadista Richard Feynman deu um discurso sobre charlatanismo e método científico na formatura do Instituto de Tecnologia da Califórnia, a Caltech, e citou alguém que já mencionamos no início do texto: “A última moda é um cara chamado Uri Geller, um homem que supostamente é capaz de dobrar chaves esfregando o dedo nelas. Então, ele me convidou para ir ao seu quarto de hotel. Meu filho segurou uma chave, Geller esfregou e nada aconteceu. Então, ele disse que funciona melhor debaixo d’água. Vocês podem imaginar todos nós no banheiro, a torneira ligada e ele esfregando a chave. Nada aconteceu. Não consegui investigar esse fenômeno”. Pouco depois, na mesma fala, Feynman improvisa uma frase que depois ficou famosa: “O primeiro princípio é que você não deve enganar você mesmo — e você é a pessoa mais fácil de enganar”.

Acreditar é parte de nós. Os psicólogos evolutivos propõem que os vieses cognitivos responsáveis por nossas crenças religiosas ou pseudocientíficas são, em parte, produto da seleção natural. Afinal, eram traços comportamentais bons para nossa sobrevivência no passado: nos permitiam fugir, atacar ou obedecer a autoridades intuitivamente, em vez de pensar demais nas situações. A pressão evolutiva do WhatsApp, porém, existe há apenas uma geração. Nem de longe tempo suficiente para selecionar uma postura racional diante de uma enxurrada de notícias falsas.

 

Bruno Vaiano é jornalista

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