Cultura acadêmica ainda é complacente com o bullying

Questão de Fato
26 ago 2021
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Quando se fala em bullying, o que vem à mente de muitas pessoas é o praticado contra crianças, na escola. Mas o fato é que pode manifestar-se em todas as atividades humanas. O mundo acadêmico, muito hierarquizado e competitivo, não é exceção. O abuso e o assédio também existem nele, praticados, principalmente por pesquisadores em cargos de chefia ou posição de poder, contra colegas em posições inferiores ou alunos.

Segundo o médico veterinário e doutor em Ciências (imunologia e patologia experimental) Marcelo Alves Pinto, chefe do Laboratório de Desenvolvimento Tecnológico em Virologia do Instituto Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz (IOC-Fiocruz), “com toda certeza” existe bullying na academia. “Na minha experiência como orientador e vice-diretor de Ensino do IOC, reconheço que ele existe no nosso meio, com atuação abusiva do pesquisador principal sobre o discente”, diz. “Conheci vários casos, inclusive com denúncia e exigência de resposta da ouvidoria da Fiocruz”.

O odontólogo Sigmar de Mello Rode, do câmpus de São José dos Campos da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e presidente da Associação Brasileira de Editores Científicos (ABEC), também diz que o bullying é comum na academia e ocorre de diversas formas, normalmente ligadas à hierarquia. “Infelizmente, é muito frequente se ouvir relatos de pressões por parte de coordenadores, professores e orientadores, obrigando os subordinados, na maioria dos casos alunos de graduação ou de pós-graduação, a citar o nome de pessoas que muitas vezes nem sabem de que se trata o artigo a ser publicado”, diz. “Outras vezes, exigem dedicação e participação além do que seria razoável”.

Ele dá um exemplo de fora do Brasil, mais precisamente no Instituto Federal de Tecnologia da Suíça em Zurique (ETHZ), que demitiu, em 2019, a astrofísica Marcella Carollo, que desde 2017 vinha enfrentando acusações de assédio moral contra estudantes de doutorado. “Uma dezena de alunos e ex-alunos da astrofísica relataram episódios de humilhação e pressão emocional”, conta. “Entre os quais, a exigência de que trabalhassem nos finais de semana, estivessem disponíveis para reuniões noturnas e publicassem um número elevado de artigos científicos – como resultado, um terço deles não conseguiu se formar”.

O exemplo dado por Rode está de acordo com uma pesquisa realizada no ano passado pela Royal Astronomical Society (RAS), em Londres, que concluiu que o bullying e o assédio são comuns na astronomia e na geofísica na Grã-Bretanha e, talvez, em outras regiões. Entre 661 pesquisadores entrevistados, mais da metade dos quais estava no Reino Unido, 44% disseram ter experimentado problemas nos dois anos anteriores.

No Brasil, não há estudos sobre o problema, mas não são raros os cientistas que têm conhecimento de casos ou – em menor número – sofreram bullying. Alguns preferem preservar o anonimato ao relatar os abusos de que foram vítimas. É o caso de um agrônomo, pesquisador de uma importante universidade federal. “Há algum tempo fui contratado para uma posição de ensino em uma área que não era exatamente aquela na qual atuava em pesquisa”, lembra. “Mesmo durante o concurso, deixei claro à banca que ensinaria naquela área para a qual fui contratado (e faço isso até hoje com muito gosto), mas que desenvolveria minha pesquisa na de minha especialidade”.

A banca não viu problemas com isso, e ele foi aprovado. Quase que imediatamente, após assumir a posição, foi chamado pelo chefe para uma reunião, na qual lhe foi dito com o que ele deveria fazer suas pesquisas. “Em suma, querendo que eu mudasse completamente meu foco”, relata. “Isso foi feito de forma inequívoca e, como recém contratado em período probatório, me demandou muita coragem contrariá-lo. Apesar disso, o fiz, reafirmando o que já havia dito à banca. Felizmente, não houve mais consequências. Já vi esse tipo de coisa acontecer várias vezes com outros colegas, quando algumas vezes são obrigados a fazer coisas e tarefas fora de suas atribuições. O fazem por estarem em período probatório e por medo de represálias”.

 

 

Hóspede indesejado

Ana (nome fictício) é uma cientista que inicialmente aceitou falar em aberto com a reportagem, mas depois pediu para que sua identidade fosse preservada. Ela compara a situação de ser alvo de perseguição à de viver como um hóspede indesejado.

A pesquisadora prestou concurso para uma universidade federal no fim de 2003, e foi admitida em 2004, no laboratório de um pesquisador já falecido. “Nos primeiros dois ou três anos, consegui realizar o meu trabalho a contento, sem grandes problemas”, relembra. “Consegui um espaço ao lado do laboratório dele, que ele anexou. Pouco tempo depois, ele se irritou com algumas opiniões que eu manifestei em seminários do laboratório. Então parei de me manifestar, mas não adiantou”.

Em seguida, Ana começou um novo projeto de pesquisa para ter mais independência, mas isso também não resolveu a situação. “Nessa época, era um clima horrível, eu percebia que não era bem-vinda”, conta. “Era como se morasse de favor na casa de alguém, que se irritava com a minha presença – mas uma parte da casa era minha. Então um outro professor me convidou para ir para o laboratório dele, e eu fui”.

Quando trocou de laboratório, ela estava grávida, e uma menina nasceu logo depois. O antigo chefe se aproveitou da licença-maternidade e convidou os alunos dela a migrar para sua equipe, e eles foram. “O que ouvi de pessoas leais é que ele foi muito insistente”, diz.

E houve impacto na ciência. “Meu último paper junto com ele tem erros grosseiros”, conta. “Fiz uma correção do texto, mandei para ele, e nem ele nem os alunos que estavam trabalhando no texto leram os meus comentários (ele não deve ter passado para eles)”, relata. “Daí os erros grosseiros que eu tinha achado terem permanecido no texto final. Mandei um e-mail para ele reclamando que ninguém havia lido o que eu tinha feito, e a resposta foi um tratado de bullying por escrito. Ele não tinha medo de pagar pelo que estava fazendo comigo, escreveu o e-mail e mandou para mim, então eu tinha provas. Mas não fiz nada, porque teria sofrido muita perseguição”.

Perseguição foi o que sofreu também o cientista molecular e doutor em Astronomia Reinaldo Santos de Lima, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP). A diferença é que seu caso ocorreu no exterior, quando ele era pesquisador pós-doc. Ele cita alguns exemplos de abusos por parte de sua supervisora direta, como apropriação de suas ideias e pesquisa sem lhe dar crédito; ameaça de “guerra total”, por ele se recusar a participar de jantar com seu grupo; exigência de que pedisse demissão; recusa em assinar suas férias; e corte súbito de verba institucional para uma viagem para apresentar palestra convidada em conferência.

A supervisora foi mais longe, segundo Lima. “O bullying incluiu mentir ao diretor do instituto dizendo que eu não queria trabalhar e pedir para colegas de outras partes do mundo me ligar pedindo para eu renunciar a minha posição”, enumera. “Muitos de meus colegas se recusaram a fornecer depoimento, declarando simplesmente que já haviam trabalhado comigo, intimidados por esta pessoa. Levei o problema ao diretor do instituto, que, apesar de declarar entender minha situação e me instruir a não pedir demissão, infelizmente não tomou nenhuma ação concreta, nem mudou minha supervisão”.

 

 

Difícil comprovação

Apesar dos danos e sofrimentos que causam, na maioria das vezes os praticantes de bullying na academia ficam impunes – e até podem gerar sucessores. Uma das razões para isso é que não é fácil fazer uma denúncia do abuso. “Em muitos casos, a própria vítima não sabe que está sofrendo o assédio, acredita que aquela situação é normal ou que a culpa é dela própria”, diz Lima. “Depois, não é fácil reunir provas. Normalmente, depende do testemunho de outras pessoas, que muitas vezes preferem olhar para o lado ou se sentem intimidadas pela pessoa que pratica o bullying”.

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Além disso, prossegue, a pessoa, especialmente quando muito jovem, acredita que terá sua carreira prejudicada no futuro se fizer a denúncia, de ser estigmatizada como “difícil de trabalhar”, ou ainda de ser sabotada por quem pratica o bullying, ou de ser desacreditada. “Mas há diversos casos em que, quando alguém que é vítima do abuso consegue romper essa barreira de medo e intimidação, e faz uma denúncia, outras pessoas que são vítimas do mesmo praticante também conseguem”, acrescenta.

O pesquisador agrônomo que prefere não se identificar também diz que não é fácil fazer a denúncia, porque a situação quase nunca é muito clara. “A questão é sempre um pouco nebulosa e fácil de ser negada pela pessoa que está praticando o bullying”, explica. “A maioria das pessoas prefere simplesmente cumprir as demandas e sofrê-lo até, por exemplo, o fim do estágio probatório. Também há uma cultura na academia de proteção aos pares. Assim, raramente denúncias sobre casos reais resultam em algum tipo de punição”.

De acordo com ele, o clima de impunidade favorece o comportamento abusivo. A instituição dele, por exemplo, tem um órgão responsável por ouvir reclamações e denúncias, mas não funciona a contento. “Em uma situação clara de bullying (se assédio moral pode ser colocado como isso), tal órgão repassou o nome do denunciante para o denunciado, e vi o acusado ir ao programa de pós-graduação no qual o aluno estava para tirar satisfação com ele”, conta. “Certamente, comportamento assim de órgãos como esse tira completamente sua autoridade e traz medo e receio”.

Ana enumera uma série de outros fatores que dificultam denúncias. Os alunos e pós-docs, por exemplo, precisam de equipamentos e pessoal técnico do laboratório para seguir com seus projetos – como a pesquisa científica envolve descobrir algo novo e técnicas muito específicas, é difícil encontrar outro laboratório, na mesma instituição, no qual eles possam continuar seu projeto.

Outro problema, segundo ela, é que em geral a pessoa que faz bullying é poderosa e querida na instituição, administra vultuosas verbas de pesquisa e muitas vezes coordena o programa de pós-graduação. “Denunciar uma pessoa dessas leva à exclusão de projetos e de grupos de pesquisa e ao ostracismo, e pode acabar com a carreira do denunciante”, diz. “Há uma cultura de não denunciar. Mesmo quem já não tem nada a perder raramente denuncia”.

Ana tem algumas sugestões para minimizar a prática de bullying na academia. Uma delas é a redução do aspecto hierárquico e vertical da estrutura da pós-graduação. “Os laboratórios deveriam ser todos facilities multiusuário, coordenados por pessoal técnico, que ficaria responsável pela manutenção dos equipamentos, organização dos insumos, e por observar se os estudantes estão trabalhando corretamente. Esse pessoal poderia treinar os estudantes em técnicas de uso comum também”.

 

Evanildo da Silveira é jornalista

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