Cloroquina e hidroxicloroquina são apostas ruins

Questão de Fato
30 mar 2020
caça-níqueis

Há pouco dias, o Ministério da Saúde anunciou a ampla distribuição da cloroquina (CQ) e hidroxicloroquina (HCQ) para todo o território nacional, com indicações de como deve ser usada. No programa Fantástico, na TV Globo, o médico e chefe de pesquisa do Hospital Albert Einstein de São Paulo, Luiz Rizzo, anuncia que o hospital vai liderar um consórcio de hospitais para testar o uso deste medicamento.

A inversão do raciocínio é evidente: o governo autoriza o uso antes de haver evidências de que a prática será benéfica para os pacientes, ou de que é segura (CQ e HCQ são remédios pesados, que causam fortes efeitos colaterais mesmo em pessoas saudáveis, e vítimas do coronavírus, em estado grave, já se encontram debilitadas).

Mas este não é o único problema. Do modo como o teste proposto pelo Albert Einstein está desenhado (o plano é público e pode ser acessado neste link),  fica claro que o estudo parte do pressuposto de que a HCQ funciona (ou é pelo menos segura o suficiente para ser inócua). O protocolo registrado prevê apenas a comparação entre pacientes que receberão HCQ e outros que receberão uma combinação de HCQ com um antibiótico. Um protocolo um pouco melhor, registrado pelo Hospital do Coração de São Paulo, como parte do mesmo consórcio, prevê comparação entre pacientes em estado menos grave, tratados com HCQ, e outros sob tratamento padrão, mas só terá início em abril.

Para deixar claro: não há nenhuma previsão formal, no desenho do estudo fornecido pelo Einstein, de comparar os grupos de lá com os resultados de pacientes restritos aos cuidados hospitalares usuais, ou a um grupo placebo. O protocolo pressupõe algo que deveria, na verdade, estar preocupado em testar: a hipótese de que a HCQ é suficientemente segura e eficaz para servir de “baseline”, ou padrão de comparação, num ensaio clínico. Mesmo se, no contexto do consórcio, alguma comparação vier a ser feita com o braço controle do Hospital do Coração, o cotejamento será frágil e imperfeito.

Seria mais honesto chamar o procedimento adotado no Einstein pelo que é: um uso “off label” – isto é, administração de um medicamento fora das indicações da bula –, embasado não em ciência, mas na “impressão” dos médicos de que funciona.

O problema é que a medicina baseada em “impressões” ou ”intuição clínica” já nos deu as sangrias, o uso de mercúrio para tratar febre amarela, histerectomia para mulheres com problemas psicológicos, a teoria da correspondência entre os movimentos dos planetas e o funcionamento dos órgãos do corpo e praticamente todas as formas de medicina alternativa. Não há curandeirismo ou terapia desacreditada, no mundo, que não tenha contado, em algum momento, com a “evidência” da experiência clínica acumulada ou dos insights pessoais de centenas ou milhares de terapeutas bem-intencionados.

 

Embasamento?

Segundo o protocolo registrado no site Clinical Trials, o hospital vai comparar um grupo, tratado somente com HCQ, com outro grupo tratado com uma combinação de HCQ mais o antibiótico azitromicina.  Reiterando: isso só faz sentido se os autores do plano de pesquisa já estão convencidos de que a HCQ funciona. Eles só querem saber se é melhor com antibiótico junto, ou não. Mas convencidos, com base em quê? E por que a opção por azitromicina?

Essa combinação foi descrita apenas duas vezes na literatura científica, em um par de trabalhos de um grupo francês. O primeiro é um dos estudos mais criticados desta pandemia, justamente por ter causado confusão e apresentar resultados suspeitos, obtidos de forma que beira a fraude, incluindo manipulação e omissão de dados.

O segundo trabalho do mesmo grupo apresenta problemas ainda mais graves, uma ausência completa de controles e sério comprometimento ético.

De fato, no protocolo registrado pelo hospital paulista, a justificativa para o “teste” são estudos desse grupo francês, já desacreditado na comunidade científica, e um estudo que demonstra que a HCQ funcionou em células no laboratório. O protocolo não cita o recente estudo chinês, que apesar de também ter falhas, foi mais bem conduzido do que o francês, e que não encontrou diferença entre pacientes que tomaram CQ e o grupo controle.

 

Por que cloroquina?

A CQ e a HCQ são medicamentos usados para tratamento de malária e algumas doenças autoimunes. Sabe-se que atuam aumentando o pH das vesículas, “bolhas” formadas durante a entrada do parasita causador da malária, o plasmódio, na célula, e que devem apresentar também alguma ação imunomoduladora e anti-inflamatória, já que também são úteis no controle dos sintomas de algumas doenças autoimunes.

Como muitos vírus usam a mesma porta de entrada que o plasmódio para atacar a célula – a tal vesícula, também chamada de endossomo – faria sentido, teoricamente, imaginar que o que fecha a porta para o plasmódio também fecharia para os vírus.

O problema é que o SARS-Cov2 não usa somente esse caminho para invadir a célula. A principal via de acesso do coronavírus não é o endossomo, é uma proteína chamada TMPRSS2, presente na membrana de certos tipos de célula. Utilizando essa proteína, o vírus entra sem precisar do endossomo, e aí a CQ e a HCQ, que só afetam endossomos, não poderiam ajudar em nada. E sabe quais células apresentam essa proteína? Justamente as do trato respiratório, que o vírus mais ataca.

Um grupo de cientistas na Alemanha testou as diversas vias  de entrada do vírus, e mostrou que ele tem esses dois caminhos à disposição, mas prefere o da proteína. Um outro grupo no Japão, que estudou o vírus SARS-CoV1, que é muito parecido com o CoV2, demonstrou isso em camundongos, descrevendo como a proteína é a chave para que o animal desenvolva forma grave da doença.

 

Em outros vírus

A CQ e HCQ já foram testadas para diversos tipos de infecção por outros vírus e nunca funcionaram. Há um certo paradoxo aí: costumam dar sinais promissores quando testadas em cultura de células em laboratório, mas quando tentamos reproduzir isso em animais, não. O medicamento foi testado para HIV, dengue, zika, chikungunya, H1N1 e para o SARS-CoV1. Nunca funcionou na fase de testes em animais ou humanos, e foi abandonado todas as vezes.

A CQ não funcionou em testes com humanos em dengue, nem com influenza. Em animais, não funcionou para ebola, influenza, nem chikungunya.

Para chikungunya, pareceu inclusive agravar a doença. Apesar de ter funcionado em células de laboratório – assim como foi observado para o SARS-CoV2 –, em animais, contribuiu para aumentar a replicação do vírus. Outro trabalho com modelo animal, agora em primatas, mostrou que a cloroquina agravou a febre da chikungunya e atrasou a resposta imune.

Uma possível explicação para isso é justamente a ação imunomoduladora do remédio, que ajuda os pacientes de lúpus e artrite reumatoide, as doenças autoimunes.

O aparente paradoxo – funciona no tubo de ensaio, falha ou piora as coisas no organismo completo – resolve-se quando notamos que as células cultivadas em laboratório não têm a tal proteína TMPRSS2 na membrana, a porta de entrada preferida do vírus. No laboratório, a única via de acesso é o endossomo, que pode ser bloqueada com alteração do pH.

De fato, o grupo alemão que testou a proteína de membrana usou cloreto de amônio, que como a cloroquina, aumenta o pH do endossomo, e bloqueou esse acesso. Mas a entrada pela proteína de membrana só foi bloqueada com uma protease, uma enzima que destrói a proteína e impede o vírus de usar esse caminho.

 

Sem plausibilidade

O suposto mecanismo de ação que justificaria o uso da CQ ou HCQ não existe de fato: ele fecha uma porta que o coronavírus já não gostava muito de usar, e deixa outra, a favorita, escancarada. Propõem-se outros mecanismos, como ação antiinflamatoria e imunomoduladora, mas temos indícios de que modular o sistema imune, nessas condições, pode fazer mais mal do que bem. Para ação antiinflamatória, não precisamos da cloroquina, temos outros produtos, alguns já sendo testados.

Recentemente, mostrou-se que a Covid19 pode  afetar o coração, além dos pulmões, causando miocardite. Um dos efeitos colaterais mais perigosos da CQ é justamente causar cardiopatia, tanto que o próprio Ministério da Saúde sugere a realização de eletrocardiograma antes do início do tratamento.

Tempos de pandemia trazem urgência. Por isso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) está testando a CQ e a HCQ de forma rápida, com menos controles do que seria ideal. Mas a OMS está testando de verdade: vai comparar o uso do remédio com o tratamento padrão de suporte. Assim, saberemos o mínimo necessário. E o órgão da ONU também não está apostando todas as fichas nessas moléculas: há outros três candidatos em teste.

Antes de termos algum resultado do esforço internacional, conduzir testes menos rigorosos, que produzirão resultados menos confiáveis e baseados em premissas duvidosas, parece mais uma operação de relações públicas, para aparecer na TV, do que curiosidade científica legítima.

Ninguém está torcendo contra os testes. Esperamos que, em breve, tenhamos um medicamento para ajudar. Talvez a CQ ou a HCQ realmente atuem contra o SARS-CoV2, por meio de algum mecanismo de ação ainda desconhecido. Mas é importante reconhecer que essa é uma esperança mais do que tênue: se houvesse algum efeito claro e definitivo de uma dessas moléculas contra o vírus em pacientes infectados, ele já teria sido notado. Se houver benefício, provavelmente será, no máximo, marginal. Dado o que a ciência sabe até agora, apostar todas as fichas na cloroquina é irresponsável.

O mais sensato seria esperar. Esperar não quer dizer não fazer nada, e sim abster-se de adotar condutas que têm baixa probabilidade de sucesso e oferecem riscos palpáveis. Sugerir que cautela equivale a “fazer nada” é até um desrespeito pelo esforço dos profissionais que estão, neste exato momento, salvando vidas.

Natalia Pasternak é pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e presidente do Instituto Questão de Ciência

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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