A mentira sueca

Resenha
21 jul 2022
Autor
The Herd

 

Publicado na Suécia em 2021 e traduzido para o inglês agora em 2022, o livro “The Herd” (literalmente, “O Rebanho”), do jornalista sueco Johan Anderberg, apresenta-se como uma história objetiva das avaliações e decisões que levaram o país nórdico a evitar, ao longo de todo ano de 2020, a adoção de medidas duras de distanciamento social e de restrição à mobilidade dos cidadãos – de não fazer lockdowns nem fechar escolas.

Embora contenha informações preciosas sobre o background dos tomadores de decisão que definiram a política contraintuitiva de abertura durante a pandemia, e dos bastidores dessas decisões, incluindo transcrições de e-mails trocados entre epidemiologistas e virologistas suecos à medida que a maior crise sanitária do século evoluía, o livro não faz jus à pretensão de objetividade, que vai sendo abandonada aos poucos, e de uma forma que o leitor desavisado talvez não perceba.

Os primeiros sinais de enviesamento aparecem quando Anderberg tenta enquadrar o debate travado dentro da sociedade sueca, entre os defensores de políticas liberalistas e de políticas restritivas, como um debate entre racionalidade técnica e impulsos populistas – sendo que as restrições são localizadas, pelo autor, no campo populista: o que, se fosse verdade, faria do caso sueco uma exceção fantástica frente ao cenário mundial.

Anderberg é honesto o suficiente para registrar as divisões internas na elite científica sueca (o que depõe contra sua tentativa de caracterizar a oposição às restrições como um consenso do "campo racional"), mas não hesita negar peremptoriamente a existência evidência científica a favor de lockdowns. O que é uma leitura extremamente seletiva da ciência: em julho de 2020, por exemplo, já havia material revisado por pares e publicado no British Medical Journal recomendando o uso estratégico de lockdowns.

O autor silencia sobre resultados científicos que contrariam a tese – sussurrada de modo sutil ao longo da obra antes de emergir, triunfal, nos capítulos finais – de que a Suécia agiu corretamente ao buscar a imunidade de rebanho ao longo de 2020. Para tanto, furta-se a apresentar comparações lógicas que poderiam pôr em dúvida sua conclusão predeterminada.

Compara, por exemplo, a mortalidade sofrida pela Suécia durante a pandemia de COVID-19 com a que atingiu o país durante uma epidemia de gripe em 1993. Compara também o sofrimento sueco com o SARS-CoV-2 ao dos Estados Unidos e ao do Reino Unido, para sugerir que lockdowns paralisam a economia mas não salvam vidas.

Mas em momento algum compara a mortalidade sueca à dos demais países nórdicos, que impuseram restrições para conter o vírus e com isso perderam muito menos vidas do que a “audaciosa” Suécia.

Em junho de 2020, a taxa acumulada de excesso de mortalidade – proporção de mortes acima do esperado, de acordo com a média dos anos anteriores – sueca era 14 vezes superior à da Dinamarca, 12 vezes superior à da Finlândia, 13 vezes maior que a da Noruega e, para comparar com um país europeu não-nórdico que fez lockdowns de modo consistente, 12 vezes maior que a da Alemanha.

Agora há pouco, em junho de 2022, a taxa acumulada de excesso de mortalidade sueca ainda era positiva e quatro vezes maior do que a dinamarquesa e o dobro da norueguesa, o que mostra que uma das previsões por trás do laissez-faire sueco – a de que a busca da imunidade de rebanho apenas “anteciparia mortes” já, de certa forma, “programadas” para o futuro próximo (de idosos e pessoas imunofragilizadas, por exemplo) não se concretizou: se isso tivesse acontecido, a taxa de excesso de mortalidade deveria ter recuado para valores negativos logo após o pico da pandemia (já que muitas das mortes esperadas naturalmente teriam sido antecipadas pelo vírus).

Essa conversa sobre “antecipar mortes programadas” soa brutal, cruel até, e quando ela aparece no livro de Anderberg, pela voz de um influente epidemiologista sueco, a primeira reação do leitor é louvar a coragem do jornalista em expor a insensibilidade de sua fonte para o mundo. Ao final do livro, no entanto, entendemos que o autor não estava expondo, mas referendando o raciocínio torto.

Além de estudos científicos e dados epidemiológicos, “The Herd” omite eventos históricos importantes, como o pedido de socorro feito pelas autoridades sanitárias de Estocolmo em dezembro de 2020, diante da exaustão de recursos para tratar das vítimas da segunda onda da COVID-19, e a dura crítica feita pelo rei da Suécia à política adotada pelo país durante a pandemia.

“The Herd” termina com um esboço de ponderação filosófica sobre os valores relativos da vida (pequeno, porque é a dos outros) e da liberdade (enorme, porque é a própria), um tipo de conversa que os brasileiros (e talvez também os suecos) já sabem muito bem a quem serve e onde vai dar.

O livro é um exemplo didático de como usar a verdade para mentir, valendo-se de omissões pontuais e recortes estratégicos. É um marco do revisionismo negacionista da história da pandemia. Certamente haverá outros.  

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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