Genocídio como clichê de ficção científica

Resenha
30 jul 2021
Autor
tomorrow war

 

Alguém já parou para pensar quantas vezes, na ficção científica, genocídio aparece como solução para os problemas da Humanidade? A reflexão me ocorreu depois de assistir a dois filmes recentemente disponibilizados em serviços de streaming, “Cosmic Sin”, com Bruce Willis, e “Tomorrow War”, com Chris Pratt.

Esses são filmes daquele tipo em que o ator principal tem muito mais importância do que o diretor. Também são formulaicos e derivativos ao ponto de espectadores da minha idade passarem mais tempo esquivando-se das referências do que acompanhando o que se passa na tela (resumindo: explosões, gente boa fazendo merda, problemas, arrependimentos, mais explosões, soluções, gente boa consertando a merda feita, mais algumas explosões, final feliz).

“Cosmic Sin” é algo como “Power Rangers” encontra “Duro de Matar” encontra “O Jogo do Exterminador” (a produtora, não por acaso, é a japonesa Saban, conhecida por suas séries envolvendo heróis coloridos e monstros espaciais). Tem ainda um quê de “Tropas Estelares” (o livro original de Robert Heinlein, de 1959, e o filme de 1997) e “Tropas Estelares 2” (o filme, meio obscuro, produzido direto para vídeo em 2004, e que, por sua vez, bebe também em outra obra de Heinlein, “The Puppet Masters”, de 1951).

Já “Tomorrow War” tem um esquema geral que pode ser descrito como “Aliens versus Exterminador do Futuro” (tenho quase certeza de que a editora americana de quadrinhos Dark Horse publicou algo com esse título nos anos 90), mas com um climão de apocalipse zumbi e estética de videogame.

Ambos os filmes envolvem conflitos com espécies alienígenas. E ambos resolvem seus conflitos com a extinção violenta dos alienígenas – o genocídio da espécie invasora. Nada de acordos, tratados, prisioneiros: matam-se todos e ponto. O preço da paz é o extermínio do outro.

Esta não é uma ideia nova, em termos de ficção científica bélica. A obra seminal do gênero “guerra contra ETs”, “Guerra dos Mundos”, de H.G. Wells, romance publicado em 1897, resolve-se da mesma forma, ainda que nesse caso a destruição coletiva dos marcianos invasores seja acidental e involuntária.

Outra obra que deixou marcas profundas no gênero, o par de novelas “Armageddon 2419 A.D.”/”The Airlords of Han”, de Philip Francis Nowlan, base para as diversas adaptações/encarnações do herói Buck Rogers, termina com o extermínio da raça invasora por meio do uso de armas futuristas de destruição em massa.

O extermínio de populações, espécies ou etnias inteiras como solução para os problemas dos “heróis” – aqueles personagens com quem, espera-se, o leitor vai simpatizar, pelos quais vai torcer – aparece até mesmo em obras de autores reconhecidos por uma pegada mais humanista, como Isaac Asimov.

Por que isso?

Parte da resposta talvez repouse no fato de que extinções são eventos naturais – são a “solução da natureza” para certos problemas, como desequilíbrios ecológicos graves. É a natureza, afinal, que se encarrega de dizimar os marcianos invasores em “A Guerra dos Mundos”.

Some-se a isso a impressão, comum mas muito raramente explicitada, de que existiria uma certa “carta branca” moral para comportamentos que apenas “seguem a lei da natureza”, ou “fazem o que a natureza exige”. Em casos como o de Nowlan e alguns outros da mesma época (e anteriores), a “solução genocida” talvez possa ser atribuída à popularidade da ideologia do “choque das raças”, extrapolação pseudocientífica feita a partir de uma incompreensão fundamental (e, não raro, mística) do darwinismo, segundo a qual a evolução humana seria uma corrida racial pela supremacia, com a extinção final dos perdedores correspondendo à “ordem natural das coisas”.

Trabalhos mais recentes, por sua vez, parecem projetar a ideia do choque das raças no Cosmo – sabe-se que ela não se aplica à interação entre seres humanos, mas e entre seres humanos e alienígenas? – e associá-la à metáfora da doença, do patógeno: é o que acontece na série de filmes Alien e em suas imitações bastardas, como “Future War”.

Se não nos incomoda eliminar o mosquito da dengue ou o vírus da varíola da face da Terra, por que não varrer os insetos inteligentes de “Tropas Estelares” da face da galáxia? Proteger a própria espécie a qualquer custo não é uma “lei da natureza”? Nesse enfoque, o genocídio deixa de ser um sinal de superioridade e se torna uma espécie de rendição – nossa animalidade supera nossa moralidade. Se a ecologia cósmica nos põe no papel de algozes, não é culpa nossa.

Tudo isso, claro, depende de uma visão extremamente simplificada do que é evolução e de como funcionam relações ecológicas. Ecossistemas bem equilibrados dependem muito mais de convivência do que de supremacia. Nem todo organismo novo é um patógeno ou um competidor exclusivo por um nicho já ocupado.

Minha impressão pessoal é a de que a solução genocida é um clichê tão surrado quanto o da donzela em perigo, e mentes criativas já deveriam ter se dado conta disso. Nem todo conflito entre indivíduos leva a duelos até a morte, nem todo desentendimento entre nações causa guerra.

Mas, alguém pode argumentar, pessoas e nações têm algo em comum – pertencem à mesma espécie e podem compreender umas às outras: são mutuamente inteligíveis. E se for impossível entender os alienígenas? E se força for a única linguagem universal? Mais uma vez, imaginação: não há língua comum entre flores e abelhas, mas nem por isso a relação deixa de ser benéfica para ambos os grupos.

Gostaria de ver mais filmes de ação sobre ameaças extraterrestres onde a solução fosse algo além de “matar todos” (mais alguém se lembra do belo “Inimigo Meu?”). Variedade, afinal, é o tempero da vida.

 

NOTA:

Depois da publicação original dest artigo, alguns leitores escreveram chamando atenção para outros trabalhos onde a "solução genocida" é evitada, pincipalmente nas séries da franquia "Star Trek" e em filmes como "Distrito 9". Há vários outros exemplos ainda, como a antiga série de TV "Alien Nation". Ainda assim,o clichê "alienígena bom é alienígena morto" ainda me parece prevalente demais, principalmente no cinema (ou streaming) de grande orçamento. O que é uma pena.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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