Quem são os inimigos da ciência?

Resenha
12 jul 2019
Capa do livro A Ciência e Os Seus Inimigos

Segundo a dupla de autores portugueses, o físico Carlos Fiolhais e o bioquímico David Marçal, a ciência tem tantos inimigos que é preciso separá-los em capítulos temáticos. Os autores, que já têm juntos uma trajetória na divulgação científica portuguesa com os livros Pipocas com Telemóvel e Outras Histórias da Falsa Ciência Darwin aos Tiros e Outras Histórias de Ciência, buscam inspiração para o título de sua nova obra, A Ciência e os seus Inimigos, na obra A sociedade Aberta e seus Inimigos, do filósofo Karl Popper.

O título do livro, lançado em 2017 pela editora Gradiva, procura traçar um paralelo entre ciência e democracia. Se a democracia, como defendia Popper, é um meio de superar impasses sociais, a ciência é um meio muito eficaz de encontrar e superar erros a respeito do mundo. Os autores destacam o fato de que vivemos em uma sociedade dependente de ciência e tecnologia, mas em que a ciência e a tecnologia sofrem cada vez mais ataques e ameaças. 

Os “inimigos da ciência” são apresentados ao leitor sob sete perspectivas, com um capítulo dedicado a cada uma: os ditadores, os ignorantes, os fundamentalistas, os vendilhões, os exploradores do medo, os obscurantistas e os cientistas tresmalhados. 

Fiolhais e Marçal deixam claro, logo de cara, que regimes totalitários são incompatíveis com a ciência. Com Hitler, Stálin, e claro, passando pelo exemplo português do Estado Novo salazarista, o leitor é apresentado a ditadores que tentaram interferir na produção do conhecimento, alterando descobertas, perseguindo cientistas, defendendo pseudociências e até tirando teses malucas do chapéu. 

Infelizmente, logo percebemos que estes inimigos totalitários não ficaram somente no passado. E se a democracia é necessária para o desenvolvimento científico, ela está longe de ser suficiente: democracias podem eleger líderes anticientíficos, como Donald Trump, nos EUA, que questiona a validade das vacinas e das mudanças climáticas. 

O capítulo “Os ignorantes” adverte para o perigo da ignorância no poder. Os autores não sabiam ainda que, no Brasil, seguiríamos o mesmo caminho, com a eleição de Jair Bolsonaro, cuja equipe de governo, além de também negar as mudanças climáticas, ataca o meio ambiente e questiona – sem entender absolutamente do que se trata – a própria produção científica nacional, além de misturar perigosamente religião e ciência e ameaçar o ensino de evolução.  

Falando em religião, o capítulo seguinte aborda os fundamentalistas religiosos e sua relação conflituosa com a ciência. Apesar de os autores acreditarem que ciência e religião não são exatamente incompatíveis, afirmam que o bom cientista deve saber separar muito bem uma coisa da outra, e não deixar que a fé influencie o pensamento racional e critico necessário ao trabalho cientifico, como ocorre com os defensores do “design inteligente” e os negacionistas da evolução.  

Nos capítulos seguintes, os autores atacam duramente os promotores de pseudociências que tentam enganar o cidadão, seja por ganância, tentando vender falsas curas, ou pelo medo, com campanhas contrárias à vacinação e aos alimentos geneticamente modificados. Não há meias medidas nos exemplos escolhidos para ilustrar as práticas de medicina alternativa: imagine, sugerem eles, que as terapias alternativas são companhias aéreas que oferecem viagens em tapetes mágicos. 

Teríamos “um voo individualizado, com asas feitas de penas e folhas de bananeira coladas com resina de pinheiro a canas de bambu. Se alguém questionasse a eficácia e a segurança deste tipo de transporte não-convencional, os seus promotores responderiam com a ambiguidade da prática e depoimentos de amantes da Natureza, acrescentando que aviões convencionais também caem”. 

Esses capítulos cobrem um enorme território, de homeopatia e acupuntura a cura quântica – com destaque especial para o guru Deepak Chopra – passando por produtos sem glúten (desnecessários para a maior parte da população), suplementos vitamínicos inúteis, medo de transgênicos, e produtos que supostamente causam/evitam o câncer, e mais. 

Os autores são impecáveis ao esclarecer o que tem respaldo na ciência e o que é pura enganação. Também são implacáveis com os jornalistas, cobrando uma postura cética e crítica ao hábito de “ouvir o outro lado”, cuja aplicação mecânica acaba propagandeando crenças infundadas e pensamento mágico. 

Um exemplo, analisado em detalhes, é uma reportagem televisiva sobre o movimento antivacinação em Portugal, que apesar de ouvir especialistas em saúde pública que atestam a segurança e eficácia das vacinas, termina com a imagem de uma família feliz, de crianças perfeitamente saudáveis e que nunca foram vacinadas. 

Os autores medem também o tempo dedicado às pseudociências em programas de televisão e rádio, em comparação ao tempo dispensado à ciência. O resultado é desolador.

Finalmente, no capítulo “Os obscurantistas”, o livro trata dos perigos de práticas pseudocientíficas serem endossadas por órgãos públicos. Os autores não perdoam as universidades, que deveriam prezar pelo conhecimento científico, por acolherem o ensino da medicina alternativa e temas de “espiritualidade”. 

A obra traz um forte alerta para o perigo de misturar política, populismo e pseudociência.

É impossível ler a obra portuguesa sem refletir sobre a realidade brasileira, onde homeopatia e acupuntura são práticas reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina, e outras 27 práticas ditas integrativas e complementares – sem comprovação científica – constam do Sistema Único de Saúde. Aqui na ex-colônia, universidades também ensinam medicina alternativa e promovem “espiritualidade” sob o pretexto de fazer ciência. 

Para fechar o livro mostrando que a ciência, assim como a democracia, não é perfeita, os autores discorrem sobre diversos erros científicos históricos, e sobre os perigos da  ciência mal feita. Neste caso, o perigo vem de dentro, e é especialmente insidioso: a ciência ruim é o que mais afeta a credibilidade da ciência como um todo e do bom cientista. 

No Brasil, tivemos o emblemático caso da fosfoetanolamina, que nasceu dentro da maior universidade do país, e que reúne todas as características da ciência ruim: a disseminação pública antes do escrutínio dos pares, a recusa inicial em conduzir testes adequados e, finalmente, a recusa em aceitar os resultados empíricos que demonstraram que a substância não funcionava. 

O paralelo com a obra de Karl Popper é retomado nas considerações finais, onde Fiolhais e Marçal apontam que tanto a sociedade democrática quanto a ciência necessitam de liberdade de pensamento, expressão e circulação de conhecimento para existir. Assim, em tempos onde a própria democracia é atacada, não é de se estranhar que a ciência também se torne alvo. 

Os ataques à ciência, dizem eles, são “parte de uma posição mais geral de recusa de um certo tipo de sociedade, assente no conhecimento e cujo progresso depende do seu alargamento e do seu uso consciente”. Citando Winston Churchill, os autores se despedem dizendo que se a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras, assim também é a ciência em relação ao conhecimento: não é de modo algum perfeita, mas nenhuma outra ferramenta foi capaz de nos dar o que ela deu. 

O livro é um convite ao pensamento crítico e racional, e expõe sem dó e com muito senso de humor os malefícios e incongruências do pensamento mágico e das pseudociências, fornecendo ferramentas valiosas para qualquer cidadão que queira defender seu bolso e sua saúde, e para qualquer gestor público que queira embasar a suas políticas públicas em boas evidências científicas. 

Natalia Pasternak é pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, coordenadora nacional do festival de divulgação científica Pint of Science para o Brasil e presidente do Instituto Questão de Ciência

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