Sabe aquelas “últimas dicas de saúde reveladas pela ciência” que a tela do computador ou as capas de jornais e revistas tentam esfregar na sua cara, todos os dias? Há boas razões para pensar que pelo menos metade é balela.
Essas “dicas” baseiam-se em estudos que exageram resultados, ou serão desmentidos por trabalhos posteriores. E quase todos os jornais, revistas, etc., que deram a “dica” na capa não vão dedicar nem uma mísera linha ao desmentido. Como posso afirmar isso? Por causa de um outro estudo, claro.
Em 2017, um grupo de pesquisadores da Universidade de Bordeaux, na França, publicou no periódico PLoS ONE os resultados de um levantamento sobre que tipo de pesquisa científica, envolvendo saúde humana, recebe mais cobertura da imprensa, como essa cobertura se dá e se existe algum tipo de follow-up, ou acompanhamento posterior, do assunto.
Resultado: são divulgados, preferencialmente, estudos de “estilo de vida”, que parecem dar ao cidadão algum tipo de controle sobre a própria saúde (melhor não comer isso, vale a pena tomar aquilo, etc.); a maioria dos estudos divulgados é inicial (isto é, não representa tentativas de replicar descobertas anteriores, mas traz resultados “originais”). O problema é que 66% dos estudos iniciais divulgados pela mídia falham em tentativas de replicação (somando todos os trabalhos, iniciais ou não, a taxa é de 52%). Se serve de consolo, a taxa de desconfirmação específica para os estudos noticiados sobre “estilo de vida” é um pouco menor (51%).
Por fim, embora os estudos que depois acabaram desconfirmados pela própria ciência tenham dado origem a mais de 200 matérias jornalísticas, encontradas no levantamento feito pelos autores, apenas quatro matérias noticiando as desconfirmações foram localizadas.
Impacto e impacto
Os pesquisadores franceses usaram como base uma lista de mais de 4 mil estudos individuais e de 300 meta-análises – agregados de pesquisas, que tendem a produzir resultados mais sólidos – sobre a associação de algum fator (droga, genética, alimentação, etc.) e saúde ou doença em seres humanos. Desse total, cerca de 160 trabalhos viraram tema de notícia ou reportagem. A maioria (mais de 150) dos estudos aproveitados pela imprensa era individual, não meta-análise.
Outra constatação interessante: há uma forte correlação entre fator de impacto do periódico científico em que o estudo saiu e sua chance de virar notícia. O fator de impacto é um indicador, ainda que bem problemático, da qualidade de uma revista científica e, por tabela, da confiabilidade da produção apresentada ali.
Essa correlação entre impacto científico da revista e impacto do estudo na mídia pode significar que os jornalistas tendem a confiar nas métricas usadas pela comunidade científica para representar qualidade – ou que grandes periódicos investem mais no marketing de seus conteúdos. Ou ambos.
Reprodutibilidade
Em se tratando de ciência – qualquer ciência – replicação é importante: todo estudo, não importa se sobre os efeitos do alho no hálito dos vampiros ou o cálculo da massa do elétron, pode estar errado. E por uma série de motivos, que vão de mero azar a incompetência grosseira, passando (infelizmente) por má-fé.
Por causa disso, o consenso da comunidade científica, aquilo em que a maioria dos especialistas acaba concordando e que, se for o caso, vai parar no currículo do Ensino Médio e em livros-texto universitários, nasce do agregado de diversos trabalhos sobre um mesmo tema, agregado que se forma e decanta ao longo de meses e anos, às vezes décadas.
Apontar para o público em geral um resultado científico novo, com impacto potencial nos hábitos do dia-a-dia, sem acompanhar os desdobramentos posteriores, é muito mais entretenimento do que informação. Quando os hábitos afetados dizem respeito a alimentação e saúde, isso chega a ser irresponsável. Nesse aspecto, a disparidade entre ciência e mídia, detectada pelos pesquisadores de Bordeaux, é preocupante:
“Dos 53 estudos iniciais que tiveram cobertura pelos jornais, 35 (66%) foram desconfirmados pelas meta-análises correspondentes”, escrevem os autores. “Esses 35 estudos iniciais foram seguidos por 503 estudos subsequentes, dos quais 398 informaram a ausência de um efeito significativo ou um efeito significativo da direção oposta. Apenas um desses 398 estudos subsequentes e uma das 35 meta-análises correspondentes tiveram cobertura da imprensa”.
Critérios diversos
O trabalho francês aponta que esse desencontro entre ciência e imprensa vem da diferença de critérios entre os dois campos. O jornalismo busca a novidade, relevância imediata e quer capturar a atenção do leitor. Já a ciência busca a melhor descrição possível dos fenômenos naturais.
Os autores citam artigos anteriores, publicados em periódicos como British Medical Journal (BMJ) e Preventive Medicine, sobre que tipo de pesquisa em saúde chama mais a atenção da imprensa.
Das duas análises, a do BMJ oferece, talvez, o diagnóstico mais desalentador. Referindo-se à imprensa britânica, artigo de 2002 apontava que os “jornais dão pouco destaque a testes randomizados, enfatizam notícias ruins geradas por estudos observacionais e ignoram pesquisas de países em desenvolvimento”.
Levando em consideração que estudos randomizados tendem a gerar resultados muito mais confiáveis que os meramente observacionais, e a preferência da imprensa por más notícias, as seguidas ondas de alarmismo midiático sobre saúde não são difíceis de entender.
Já o levantamento publicado pelo periódico Preventive Medicine, também de 2002, é um pouco menos sombrio, ao constatar que “jornalistas reportam informação médica que é tópica, estratifica o risco com base em variáveis demográficas ou de estilo de vida e tem implicações para o estilo de vida, não para a Medicina”.
Resumindo
Ao cobrir a ciência da saúde humana (em oposição à cobertura de saúde num sentido mais amplo, como políticas de saúde pública) os órgãos de imprensa têm uma queda por trabalhos científicos que oferecem – ou parecem oferecer – novas dicas de estilo de vida que são específicas, que dizem respeito a algum aspecto da identidade pessoal do leitor, seja ele homem, mulher, negro, branco, idoso, jovem (“estratifica o risco com base em variáveis demográficas”). Se houver perigo envolvido (“evite mortadela! isso causa câncer!”), melhor ainda.
Mas as dicas têm uma alta probabilidade de estarem erradas ou serem irrelevantes, e os mesmos órgãos de imprensa que as popularizaram não vão avisar seus leitores disso, quando o erro ou a irrelevância forem descobertos.
O que provavelmente explica a massa de mitos sobre saúde e hábitos de consumo que não só polui a paisagem informacional como ainda movimenta uma indústria bilionária de produtos inúteis e de soluções desnecessárias para problemas inexistentes.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência