A seleção natural é mais criativa que os criacionistas

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11 fev 2025
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DNA

No meu artigo anterior aqui na RQC toquei tangencialmente na questão do critério da falseabilidade para delimitar a ciência da não ciência. Como escrevi, a falseabilidade é necessária mas não suficiente, pois a mera possibilidade de demonstrar algo como falso não quer dizer que o tal algo tenha cunho científico. Outra forma de olhar para a distinção entre ciência e não ciência (especialmente a pseudociência) é a perspectiva dos programas de pesquisa, como proposta pelo filósofo Imre Lakatos.

Segundo Lakatos, em um programa de pesquisa progressivo (boa ciência, na perspectiva dele), a teoria leva à descoberta de fatos novos, até então desconhecidos. Em programas degenerativos (como nas pseudociências), no entanto, as teorias são fabricadas apenas para acomodar fatos já conhecidos. Um programa de pesquisa que nada de novo produz, mas só se protege, é um programa pseudocientífico. O que dizer, então, dos “programas de pesquisa” que vivem de reciclar argumentos, como é o caso do Criacionismo e/ou Design Inteligente?

Considere, por exemplo, o recente comentário no Evolution News, a voz diária do Design Inteligente:

“Como escreve o Dr. Meyer, como um mecanismo para a produção de novas informações genéticas, é importante lembrar que a seleção natural não faz nada para ajudar a gerar sequências funcionais de bases de DNA. Ela pode apenas preservar tais sequências SE elas conferirem uma vantagem funcional E UMA VEZ que tenham surgido. A parte do mecanismo evolutivo que recebe o crédito por gerar sequências funcionais de bases de DNA são os processos mutacionais aleatórios. Assim, a questão crucial se torna: os processos mutacionais aleatórios têm o poder de gerar novas sequências de bases ou aminoácidos para que a seleção natural aja sobre elas dentro do tempo disponível na história da vida na Terra?”.

Nesse pequeno trecho temos dois tipos de crítica muito comuns e antigas feitas à evolução (sobretudo se por seleção natural). Quando criacionistas escrevem que “é importante lembrar que a seleção natural não faz nada para ajudar a gerar sequências funcionais”, mas pode “apenas preservar tais sequências”, estão ecoando um argumento existente já no século 19, segundo o qual a seleção natural não tem poder criativo, mas funciona apenas como filtro. Esse tipo de argumento foi usado tanto por criacionistas quanto por evolucionistas não darwinistas. Atacar a criatividade da seleção natural é atacar o cerne do darwinismo.

Em que sentido podemos dizer que a seleção é criativa? Há pelo menos duas formas. A primeira é atrelar o trabalho da seleção natural ao gradualismo, isto é, à ideia de que as características dos seres vivos, das mais simples às mais complexas, são construídas pelo acúmulo, ao longo do tempo, de pequenas variações favorecidas pela seleção natural.

Por exemplo, se um sistema tem três componentes, podemos dizer que surgiu o componente 1, que foi favorecido pela seleção, então depois surgiu o componente 2, e só depois o 3, cada um favorecido a seu modo pela seleção natural – e cuja interação, uma vez que os três estejam no lugar, também é favorecida. Cada passo é assistido pela seleção natural até que, finalmente, a espécie saiu de um sistema com um componente para um sistema mais complexo, com três componentes. Nesse sentido, a seleção criou o sistema.

A seleção natural pode ser criativa em outro sentido. Conforme ressalta o filósofo John Beatty no seu segundo ensaio sobre a criatividade da seleção natural, o paleontólogo - e um dos arquitetos da Síntese Moderna - G. G. Simpson adotou uma metáfora para demonstrar a criatividade do mecanismo darwiniano. Nessa metáfora, o surgimento de uma nova combinação de três genes era comparado ao sorteio de três letras específicas do alfabeto numa determinada ordem (em seu exemplo, cat - "gato" em inglês), um evento altamente improvável. No entanto, se após cada sorteio fosse possível preservar as letras desejadas (c, a e t) e descartar as indesejadas — analogamente ao que faz a seleção natural —, a frequência das letras selecionadas aumentaria, tornando muito mais provável que a sequência surgisse.

Com bem pontuado por Beatty, outro arquiteto da Síntese Moderna, Ernst Mayr, também endossa a criatividade da seleção natural como parte central do darwinismo. Segundo ele:

“Para um essencialista, a seleção é um fator puramente negativo, uma força que elimina desvios deletérios em relação à norma. Os opositores de Darwin, portanto, insistiam, dentro do espírito do essencialismo, que a seleção não poderia criar nada novo. Ao afirmar isso, revelavam que não haviam compreendido nem o processo de seleção em dois passos nem sua natureza populacional. O primeiro passo é a produção de uma quantidade ilimitada de novas variações, ou seja, novos genótipos e fenótipos, principalmente por meio da recombinação genética, mais do que por mutação. O segundo passo é o teste ao qual os produtos do primeiro passo são submetidos pela seleção natural. Apenas os indivíduos que passam por esse escrutínio contribuem para o pool gênico da próxima geração. Chetverikov, Dobzhansky e outros corretamente afirmaram que esse ciclo contínuo entre recombinação genética e seleção é, de fato, um processo criativo”. (Mayr, 1982, p. 591) [ênfase de Beatty]

O trecho destacado traz uma sutileza, muitas vezes esquecida, até mesmo pelos que se dizem darwinistas. Mayr fez questão de ressaltar a produção de uma quantidade em massa de variação, de tal maneira que a resposta de uma população a alguma alteração no ambiente se deve à seleção natural atuando na variação existente, ou seja, sem necessitar que surja nenhuma mutação nova. Isso é darwinismo em sua essência! Em “Climbing Mount Improbable”, Richard Dawkins, realmente um darwinista, explica esse mesmo ponto com a clareza que só ele tem:

“Para simplificar, falamos da mutação como a primeira etapa do processo darwiniano e da seleção natural como a segunda. No entanto, isso pode ser enganoso se sugerir que a seleção natural simplesmente aguarda o surgimento de uma mutação, que então é rejeitada ou aproveitada, reiniciando o ciclo de espera. Poderia ser assim: uma seleção natural desse tipo provavelmente funcionaria e talvez até ocorra em algum lugar do Universo. Mas, na realidade, em nosso planeta, geralmente não é assim que acontece. Existe um grande reservatório de variação, inicialmente alimentado por um fluxo lento de mutações, mas significativamente ampliado e agitado pela reprodução sexuada. A variação tem origem nas mutações, mas estas podem ser bastante antigas quando a seleção natural finalmente começa a atuar sobre elas.” (Dawkins 1996, p. 87) [ênfase minha].

Essas duas últimas citações são esclarecedoras, pois enfatizam um ponto importante na criatividade da seleção natural nesse segundo sentido. No primeiro sentido de criatividade, a seleção apenas acumula o que as mutações produzem. Ou seja, quem inicia o processo evolutivo são as mutações. No segundo sentido, contudo, quem inicia a resposta evolutiva é a seleção natural, pois as mutações estão lá. Essa distinção nos ajuda a entender o que o biólogo Arlin Stoltzfus chamou “dualidade causal da mudança evolutiva” — ou seja, há duas formas de se iniciar a evolução de uma população; ou ela se inicia com uma nova mutação que surge (como defendem os “mutacionistas”), ou se inicia quando uma pressão seletiva emerge e a seleção começa a alterar a frequência das características já presentes na população (como é no darwinismo tradicional).

Quando tive a ideia de escrever esse texto, pretendia abordar não só a questão da criatividade da seleção natural, mas também o argumento do Design Inteligente/Criacionismo de que a evolução é incapaz de gerar nova informação e que, portanto, algo ou alguém deve estar por trás da informação codificada no material genético dos seres vivos. Já me alonguei demais, então abordarei isso em uma próxima coluna. Até lá!

João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade

 

SAIBA MAIS

Lakatos, I. (1978). Science and pseudoscience. Philosophical papers1, 1-7.

Beatty, J. (2016). The creativity of natural selection? Part I: Darwin, Darwinism, and the mutationists. Journal of the History of Biology49, 659-684.

Beatty, J. (2019). The creativity of natural selection? Part II: the synthesis and since. Journal of the History of Biology52(4), 705-731.

Stoltzfus, A. (2006). Mutationism and the dual causation of evolutionary change. Evolution & Development8(3), 304-317.

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