Devido à ocorrência de tantos eventos mais graves e importantes, fui obrigado a deixar de lado um assunto que acompanhei de perto nos últimos meses.
Em 4 de março de 2024, a empresa Kenbi, uma importadora da microalga chlorella, anunciou que, de acordo com determinação da Anvisa, a importação do produto não é mais permitida – o que é uma meia-verdade.
Isso bastou para que alguns autointitulados “profissionais da saúde” e consumidores assíduos adotassem uma narrativa conspiratória típica, afirmando que tudo não passa de uma artimanha da Big Pharma, em conluio com a Anvisa, para proibir tudo o que faz bem enquanto entope a população de remédios e açúcar – basicamente o nirvana argumentativo que une tanto os alucinados de extrema direita quanto os de esquerda.
Pelo que pesquisei, o alarde diz respeito à Resolução-RE No 3.178, de 24 de agosto de 2023, decretada pela gerente-geral de Alimentos, responsável pela unidade administrativa de mesmo nome, que faz parte da Anvisa. A resolução cancela registros de uma série de alimentos, atingindo uma grande variedade de substâncias e marcas.
Sintetizando a explicação publicada no portal Gov.br:
No final de julho de 2023, terminou o prazo concedido em 2018 para que as empresas adequassem seus produtos às novas regras para suplementos alimentares.
Durante estes cinco anos, os produtos puderam ser fabricados, importados e comercializados de acordo com as regras antigas, sem alterações na formulação ou rotulagem.
Com o fim do prazo, 3.179 produtos que, pelas novas regras, foram dispensados de registro junto à Anvisa tiveram seus registros cancelados. A partir de agora, esses produtos só poderão ser fabricados e importados se atenderem integralmente aos requisitos estabelecidos pela nova norma.
Os produtos que não se encaixam na nova regra, mas cuja fabricação e importação ocorreram antes de 27 de julho de 2023, ainda podem ser comercializados até o final do prazo de validade estabelecido na rotulagem.
Ou seja, caso a empresa quisesse muito continuar comercializando o produto, ela poderia ter se precavido e feito os ajustes necessários exigidos pela nova legislação.
Se isso não ocorreu, há uma grande chance de a marca ter avaliado que era mais vantajoso abandonar o produto.
O que é chlorella
Chlorella é uma microalga verde unicelular, com mais de 20 espécies caracterizadas e divididas em três variedades, C. vulgaris, lobophora e sorokiana. Atualmente, é utilizada em várias partes do mundo como suplemento alimentar e, apesar de não ser tão conhecida aqui no Brasil, é muito consumida na Ásia, principalmente no Japão.
Além disso, relatório publicado pela Future Market Insights, uma empresa que analisa tendências do mercado, aponta que o mercado global de chlorella deve crescer de US$ 206,9 milhões em 2023 para US$ 444,6 milhões até 2033.
Para explicar esse aumento, o relatório destaca alguns fatores cruciais. Um deles é a elevação na procura por cosméticos e produtos de cuidados pessoais, o que movimenta a indústria de cosméticos que utiliza a chlorella como ingrediente. Outro fator são os inúmeros “benefícios” de saúde alegados pelas fabricantes, que vão do aumento da imunidade até o enaltecimento de uma composição nutricional que batizei de “pau para toda obra”.
Aprofundando este último aspecto, temos o artigo intitulado “Potential of Chlorella as a Dietary Supplement to Promote Human Health” de autoria de Bito, T. et al. Neste, os autores apontam que 100g da chlorella seca apresentam, aproximadamente, 59g de proteína de alto valor biológico (contém todos os aminoácidos essenciais), algo incomum em proteínas de origem vegetal. Além disso, salienta-se que tem uma boa concentração de fibras dietéticas e uma pequena quantidade de gorduras do tipo poli-insaturada, o mesmo tipo de ácido graxo presente em grãos e oleaginosas.
Na composição de micronutrientes, observa-se que a chlorella apresenta todas as vitaminas necessárias para o organismo humano, com concentrações satisfatórias de vitamina D2, folato e B12. Em relação aos minerais, a microalga contém uma ampla variedade, mas se destacam o ferro e o potássio, devido às suas concentrações significativas.
Também, a chlorella pode exercer efeitos antioxidantes e ser precursora de vitamina A.
Após esse resumo não tão breve, os autores analisaram pesquisas realizadas em animais e seres humanos que investigaram os efeitos do consumo de chlorella para diferentes desfechos de saúde, como efeitos antidiabéticos, anti-hipertensivos, detoxificantes, entre outros.
A conclusão a que chegam é de que produtos comerciais de chlorella contêm uma grande variedade de nutrientes essenciais para os seres humanos. Além disso, destacam que os efeitos positivos observados podem ser resultado de um sinergismo entre múltiplos nutrientes e compostos antioxidantes.
Com exceção das alegações de benefícios para a saúde, tudo o que foi mencionado é verdade: a chlorella é, de fato, um alimento com uma composição nutricional invejável. Isso leva muitos nutricionistas, nem sempre críticos, a recomendá-la, e muitos sites de suplementos a promovê-la como uma substância ideal para protocolos de desintoxicação, melhora da imunidade, emagrecimento, preservação de massa muscular, entre outros – por isso, a alcunha “pau para toda obra”.
Os fabricantes recomendam o consumo de 1,6g até 5g de chlorella por dia. Por exemplo, a marca “Ocean Drop” recomenda a ingestão de 4 tabletes de 400mg enquanto a “Green Gem” recomenda o consumo de 20 comprimidos de 250mg. Não é necessário ser nenhum gênio da matemática para entender aonde isso vai dar: quanto menor a quantidade consumida, menor será a ingestão de proteínas, fibras dietéticas, micronutrientes e assim por diante. Mal comparando, é como promover a importância da hidratação e sair vendendo cápsulas de 5 ml de H2O – para gente que, provavelmente, tem água corrente em casa.
Essa é uma artimanha utilizada por inúmeros gurus da internet para ludibriar o seu público por meio da tabela nutricional. Neste caso, eles enaltecem um determinado produto ou alimento, em relação a outros, usando informações nutricionais verdadeiras, mas descontextualizadas.
O que diz a ciência
Obviamente, é impossível explorar todas as pesquisas que utilizaram a chlorella como intervenção para diferentes problemas de saúde em um único artigo. Esta seção baseia-se apenas nas revisões sistemáticas disponíveis. Caso o benefício que você valoriza não esteja entre os mencionados a seguir, isso pode indicar que a literatura científica que o respalda ainda é incipiente, o que dificulta uma análise mais aprofundada do suposto efeito; ou, ainda, que esse efeito não é relevante clinicamente.
Sem mais delongas: Sanayei, M. e colega publicaram uma revisão sistemática intitulada “The effect of Chlorella vulgaris on obesity related metabolic disorders: a systematic review of randomized controlled trials”. Os pesquisadores investigaram e resumiram os possíveis efeitos da chlorella (ch) no peso corporal, perfil lipídico e glicose plasmática, com base em ensaios clínicos randomizados e controlados (RCTs).
Como critérios de inclusão, foram aceitos apenas artigos na língua inglesa, publicados em revistas revisadas por pares, realizados em adultos saudáveis e não saudáveis, que investigaram os efeitos da ch na obesidade relacionada à síndrome metabólica, em comparação a\com o placebo ou como terapia de apoio.
Ao todo, doze artigos foram incluídos, sendo sete realizados no Irã, quatro na Coréia e um no Japão. Três desses estudos não apresentaram informações sobre as técnicas de randomização dos participantes, com possível risco de viés de seleção. Quatro estudos apresentaram alto risco de viés de performance (mudanças no comportamento de pacientes e avaliadores) e de detecção (coleta de informações de desfechos de forma diferente entre os grupos).
A duração das intervenções variou de quatro a doze semanas, sendo o período de oito semanas o mais comum. As doses administradas de ch variaram de 500mg a 6,3g - talvez a dosagem seja ainda maior, visto que a pesquisa de Mizoguchi, T. et al recomendou o consumo de 40 comprimidos de Sun Chlorella A ao dia, mas não informou a concentração utilizada.
Os autores da revisão afirmam que os estudos apoiam os efeitos benéficos da ch em alguns parâmetros. Três estudos observaram uma redução de peso.
Em relação ao perfil lipídico, a suplementação de chlorella mostrou-se mais efetiva na redução de triglicerídeos. No entanto, nem todos os ensaios que investigaram essa relação verificaram benefício. Além disso, ao analisar os efeitos no colesterol total, verificou-se que a maior parte dos ensaios apresentaram resultados sem significância estatística.
Apenas quatro estudos investigaram a relação entre a ch, a glicemia e a resistência à insulina. Desses, somente um observou efeito significativo, embora marginal, na glicemia em jejum, e um na resistência à insulina. Entretanto, para este último desfecho, outros dois estudos observaram que a suplementação não teve efeito. Também não foram observados efeitos da suplementação de ch na pressão sanguínea.
Como conclusão, os autores apontam que, devido à heterogeneidade dos estudos e dos desfechos, é difícil chegar a uma conclusão definitiva sobre a eficácia do suplemento para qualquer coisa. Além disso, não há consenso de qual seria a dose “efetiva” para gerar os benefícios esperados. Vale lembrar que, quanto maior a concentração, maior o risco de desconfortos digestivos, devido ao teor de fibras.
Apesar de Fallah, A. et al. terem publicado uma revisão sistemática intitulada “Effect of Chlorella supplementation on cardiovascular risk factors: A meta-analysis of randomized controlled trials” e dado um parecer favorável à chlorella, a revisão apresentou problemas metodológicos graves. Por exemplo, não se utilizou uma ferramenta de análise de risco de viés para assegurar a confiabilidade dos estudos inseridos. Ainda pior, como mencionado por Sherafati, N. et al, incluíram, em uma metanálise de ensaios clínicos randomizados, alguns ensaios clínicos não randomizados e uma pesquisa que utilizou chlorella contendo alto teor de ácido γ-aminobutírico (GABA), um neurotransmissor envolvido na modulação de outros neurotransmissores, como a dopamina. Isso obviamente impactou os resultados e, possivelmente, superestimou os efeitos positivos da suplementação
Citando novamente Sherafati, N. e colegas, temos a revisão sistemática deles intitulada “Effect of supplementation with Chlorella vulgaris on lipid profile in adults: A systematic review and dose-response meta-analysis of randomized controlled trials”.
Nesta revisão, foram incluídos RCTs com duração de pelo menos uma semana, conduzidos com voluntários maiores de 18 anos e que mediram os níveis séricos de lipídios sanguíneos, incluindo colesterol total, triglicerídeos, LDL e HDL. Também foram incluídos RCTs com tratamento combinado, nos quais a única diferença entre os grupos foi a ingestão de Chlorella vulgaris (chv).
A amostra final foi composta por dez ensaios, dos quais seis foram do tipo duplo-cego e quatro que não realizaram o cegamento. A duração das intervenções variou entre três e oito semanas, com doses que variaram de 900mg a 5g ao dia.
Quanto ao risco de viés, os pesquisadores observaram que quatro estudos apresentaram baixo risco de viés. Entretanto, os outros seis apresentaram riscos altos ou pouco claros para, pelo menos, algum tipo de viés.
Após a análise, constatou-se que a suplementação de chv, em comparação ao placebo, resultou em uma redução significativa nos níveis de colesterol total. No entanto, a heterogeneidade entre os estudos também foi significativa – basicamente, quando há uma heterogeneidade considerável, é necessário questionar a validade de combinar resultados.
Por esse motivo, foram realizadas análises de subgrupo que identificaram que o sexo dos participantes; diferentes condições de saúde; as dosagens utilizadas; e os próprios valores basais de colesterol total foram os responsáveis pela heterogeneidade.
Além disso, com base nessas novas análises, observou-se um efeito redutor da suplementação nos RCTs conduzidos em indivíduos saudáveis; naqueles em que a dosagem administrada foi inferior a 1500 mg/d de Chlorella vulgaris; nos que foram submetidos a tratamentos combinados; e naqueles em que não foram controladas as medições basais.
Dados semelhantes também foram observados para o LDL, onde a suplementação de chlorella também resultou em uma redução significativa em comparação ao placebo. No entanto, a heterogeneidade entre os estudos foi, novamente, alta.
Em relação ao HDL e os triglicerídeos, não foram observados efeitos significativos da suplementação.
No entanto, antes de algum ávido defensor do suplemento proclame que a chlorella é eficaz para reduzir o colesterol total e o LDL, é importante destacar algumas ressalvas feitas pelos pesquisadores.
Primeiro, os autores reconhecem que a administração de chv em conjunto com tratamentos básicos (como medicamentos para redução de lipídios e atividade física) pode proporcionar um efeito sinérgico superior em comparação com a chv isolada. Nas análises de subgrupo realizadas, não foram encontrados efeitos significativos da prescrição isolada.
Além disso, os RCTs incluídos apresentaram diferentes desenhos metodológicos, tais como a presença ou ausência de cegamento, o que pode ter impactado nos resultados. Em alguns estudos, a adesão às intervenções não foi avaliada, o que impossibilitou a realização de análises de subgrupo. Se isso não bastasse, alguns ensaios não controlaram as medições basais do perfil lipídico, tornando impossível assegurar se houve alterações estatisticamente significativas devido à intervenção.
Caso ainda deseje consumir a chlorella, fique à vontade. No entanto, é importante ter em mente que os supostos “benefícios” estão mais baseados em um voto de confiança do que em evidências de boa qualidade. Tendo isso em mente, fica a indagação: será que não seria mais vantajoso aumentar o consumo de frutas, verduras, legumes e proteínas magras, em vez de investir em um suplemento tão caro? De acordo com as evidências, sim.
Mauro Proença é nutricionista
REFERÊNCIAS
GGALI. RESOLUÇÃO-RE No 3.728, de 24 de agosto de 2023. Disponível em: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=28/08/2023&jornal=515&pagina=81.
ANVISA. Fim do prazo para adequação de suplementos alimentares à RDC 243 /2018. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2023/fim-do-prazo-para-adequacao-de-suplementos-alimentares-a-rdc-243-2018.
Future Market Insights. Chlorella Market. 2023. Disponível em: https://www.futuremarketinsights.com/reports/chlorella-market.
BITO, T. et al. Potential of Chlorella as a Dietary Supplement to Promote Human Health. Nutrients. 2020 Sep; 12(9):2524. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7551956/.
SANAYEI, M. et al. The effect of Chlorella vulgaris on obseity related metabolic disorders: a systematic review of randomized controlled trials. J Complement Integr Med. 2021 May 5;19(4):833-842. Disponível em: https://www.degruyter.com/document/doi/10.1515/jcim-2021-0024/html#j_jcim-2021-0024_tab_001.
FALLAH, A. et al. Effect of Chlorella supplementation on cardiovascular risk factors: A meta-analysis of randomized controlled trials. Clin Nutr. 2018 Dec; 37(6 Pt A):1892 – 1901. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/29037431/#:~:text=Results%3A%20Meta%2Danalysis%20on%2019,%3C%200.001)%2C%20systolic%20blood%20pressure.
SHERAFATI, N. et al. Effect of supplementantion with Chlorella vulgaris on lipid profile in adults: A systematic review and dose-response meta-analysis of randomized controlled trials. Complement Ther Med. 2022 Jun:66:102822. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0965229922000243