Antibiótico preventivo? Cuidado com essa ideia

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17 mai 2024
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A menos que você viva em uma bolha, é impossível não estar ciente da situação calamitosa que o estado do Rio Grande do Sul está enfrentando. Infelizmente, até o momento em que escrevo, em 10 de maio, as enchentes atingiram 437 dos 497 municípios, afetando aproximadamente 1,9 milhão de pessoas e deixando 116 mortos, 143 desaparecidos e 70 mil desabrigados. Quando você estiver lendo este artigo, os números provavelmente serão ainda maiores.

Diante deste cenário, é impossível evitar um mix de sentimentos, variando de empatia por aqueles que perderam tudo e indignação com nossos governantes, que fecharam os olhos para os problemas climáticos, não implementaram ações de prevenção – somente três deputadas gaúchas destinaram recursos para prevenção de desastres -  e, para se eximir da culpa, ficam dando desculpas como “não tínhamos como prever essa catástrofe”.

Adianto que este texto não irá abordar a questão climática. A RQC tem INÚMEROS artigos formidáveis sobre o assunto, como “A conta chegou no clima?“ de autoria de Cesar Baima, e outros dois específicos sobre o Rio Grande do Sul, “Preparação para desastres, uma nova ciência para novos tempos” e “A tragédia das chuvas, a Bíblia e o acaso” – todos merecem ser lidos.

Neste texto, tratarei do risco de aumento da leptospirose devido às enchentes, e do parecer técnico publicado pela Sociedade Brasileira de Infectologia que discute a quimioprofilaxia (isto é, o uso de medicamentos – no caso, anitibióticos – como preventivo) para esta doença. Resumo breve: a nota faz uma recomendação muito limitada de uso, restrita a grupos de alto risco.

 

O que é leptospirose?

A leptospirose é uma doença zoonótica, ou seja, uma doença infecciosa onde um patógeno (bactéria, fungo, vírus) é transmitido de um animal para um ser humano. É causada pelas bactérias do gênero Leptospira, que se reproduzem nos rins de mamíferos infectados e são excretadas na urina, contaminando o ambiente e, assim, outros animais. Segundo a estimativa realizada por Costa, F. et al na pesquisa intitulada “Global Morbidity and Mortality of Leptospirosis: A systematic review”, a cada ano esta doença acomete mais de 1 milhão de pessoas e mata quase 59 mil

A contaminação em humanos pode ocorrer por duas vias: pelo manuseio de um animal  infectado, sendo os principais vetores ratos e outros pequenos roedores; ou pelo contato com água e solo contaminados pela urina desses animais – nesse caso, a bactéria pode entrar pela mucosa ou por feridas na pele.

O artigo “Leptospirosis: risk factors and management challenges in developing countries” aponta ainda que a bactéria consegue sobreviver por semanas ou meses no ambiente em que foi excretada – lama, rios, lagos, etc. - desde que este apresente condições sombreadas, quentes e úmidas. 

Os sintomas iniciais da doença costumam ser febre, náusea, dor de cabeça e muscular. A leptospirose pode ainda atacar os rins e os pulmões, levando à insuficiência respiratória e morte por asfixia.

Em situações extremas, como inundações, há uma maior probabilidade de águas do esgoto e da chuva se misturarem. Isso não só auxilia a sobrevivência da bactéria, mas também aumenta o risco de exposição humana ao patógeno. Também, durantes períodos de calamidade, ocorre uma precarização das condições de higiene e o aumento do contato entre animais infectados e humanos.

Aprofundando nesse aspecto, Naing, C. et al publicaram um artigo intitulado “Risk factors for human leptospirosis following flooding: A meta-analysis of observational studies”, com o objetivo de sintetizar as evidências sobre os fatores de risco associados à leptospirose humana após inundações.

 

A nota

A Sociedade Brasileira de Infectologia, em conjunto com a Sociedade Gaúcha de Infectologia e a Secretaria de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul, emitiram uma nota técnica indicando a quimioprofilaxia (utilização preventiva de medicamentos para impedir o desenvolvimento de uma doença ou infecção) para grupos considerados de alto risco, como as equipes de socorristas e civis com exposição prolongada à água das enchentes.

A nota destaca que  a profilaxia não é 100% eficaz, e que é necessário utilizar equipamentos de proteção individual (EPIs) pra evitar contato com água e lama contaminadas.

Logo no início deste documento, as entidades destacam em negrito que não se recomenda o uso de antimicrobianos – antibióticos – como preventivo de rotina. Mas apontam que um guia de tratamento da OMS de 2003 indica que a medida profilática pode ser realizada em situações de alto risco e apresenta uma tendência de benefício, mesmo que esses estudos tenham um baixo número de participantes, falhas de randomização e outras limitações importantes.

Apesar de compreender que a situação extraordinária pode requerer medidas pouco ortodoxas, é importante destacar que não pode, a rigor, falar em “tendência de benefício” quando os estudos analisados são fracos e limitados: uma dúzia de estudos ruins não vale um estudo bom. Se todos os estudos sobre um determinado assunto sofrem do mesmo tipo de viés, todos apontarão na mesma direção – a direção errada.

 

A revisão da Cochrane

Win, T. et al. realizaram uma revisão sistemática intitulada “Does the use of antibiotics prevent leptospirosis?” com o objetivo de avaliar os benefícios e os danos da profilaxia com antibióticos para a leptospirose humana.

Para isso, os autores identificaram ensaios clínicos randomizados em diferentes bancos de dados publicados até o dia 17 de abril de 2023.

Dentro desta análise, foram incluídos apenas ensaios randomizados que avaliaram antibióticos para a prevenção da leptospirose em comparação com placebo, outro antibiótico ou nenhuma intervenção. Não houve restrições quanto à idade, sexo, ocupação ou comorbidade dos participantes.

Ao aplicar esses critérios de inclusão, a busca resultou em 2.477 estudos. No entanto, após a eliminação de estudos duplicados e outros que não pareciam relevantes com base em seus resumos, a amostra final foi composta por cinco ensaios.

Todos foram conduzidos em áreas com leptospirose endêmica (infecção presente em uma região específica) e envolveram 2.593 voluntários, cujas idades variavam de 10 até 80 anos. Esses estudos compararam antibióticos (doxiciclina, azitromicina ou penicilina) com placebo, ou entre si, e apresentaram alto risco de viés.

Como resultado, observou-se que a doxiciclina, em comparação com o placebo, pode ter um efeito pequeno ou indiferente na mortalidade geral. Contudo, a evidência para isso foi classificada como de baixa certeza pelo sistema GRADE (sistema de classificação da qualidade de um conjunto de evidências em revisões sistemáticas e outras sínteses de evidências).

Além disso, os antibióticos profiláticos podem ter pouco ou nenhum efeito na leptospirose confirmada por testes de laboratório, uma medida utilizada para confirmar suspeitas da infecção. Entretanto, essa evidência foi classificada como de muita baixa certeza. Esse efeito também foi observado no diagnóstico clínico independentemente da confirmação laboratorial, mas, mais uma vez, a evidência foi considerada de baixa certeza.

Igualmente importante, verificou-se que a utilização de antibióticos, em comparação com o placebo, pode aumentar os eventos adversos não graves, como queimação, vômitos, dor estomacal. Contudo, a evidência para isso também é de baixa certeza.

Não obstante, ao comparar a doxiciclina com a azitromicina, observou-se que os resultados encontrados eram muito semelhantes aos da comparação com o placebo.

Constatou-se que a doxiciclina pode exercer um efeito pequeno ou irrelevante para o diagnóstico de leptospirose e para os eventos adversos não graves. As evidências para todos os desfechos analisados foram consideradas de muito baixa certeza.

Por fim, os autores concluem que, de acordo com os dados encontrados, continua incerto se a profilaxia com doxiciclina é eficaz na redução da mortalidade em comparação com o placebo. Além disso, não foi possível determinar se a utilização precoce dos antibióticos gerou efeitos de profilaxia na infecção por leptospirose, ou se poderiam aumentar o risco geral de eventos adversos não graves.

Em outras palavras, não há evidências suficientes para apoiar ou refutar a utilização profilática de antibióticos para a prevenção da leptospirose.

 

O que fazer?

Seria prepotência da minha parte afirmar qual é a melhor estratégia a ser seguida nesse momento de crise, dado que eu também não sei.

Ao restringir a indicação da profilaxia com antibióticos a casos bem definidos de pessoas expostas a situações de alto risco de leptospirose, a nota pelo menos desarma eventuais tentativas de influencers de promover “kits enchente” baseados em antibióticos para todos. No entanto, parece-me que a nota técnica, sem uma explicação mais detalhada e um maior destaque para as frases “não é 100% eficaz” e “é necessária uma avaliação médica criteriosa do risco dessa exposição”, poder acabar estimulando algumas pessoas a fazer automedicação.

Infelizmente, não há uma regra de ouro que possa nos guiar. O que sabemos é que a utilização de EPIs e evitar o contato com água, lama e solos contaminados continuam sendo as medidas preventivas mais importantes para leptospirose.

 

Mauro Proença é nutricionista

 

REFERÊNCIAS

DAL PIVA, J. Só 3 deputadas gaúchas enviaram verba para prevenção de desastres. 2024. Disponível em: https://iclnoticias.com.br/deputadas-gauchas-emendas-desastres-2024/.

 

COSTA, F. et al. Global Morbidity and Mortality of Leptospirosis: A Systematic Review. PLoS Negl Trop Dis. 2015 Sep; 9(9): e0003898. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4574773/#:~:text=Overall%20leptospirosis%20was%20estimated%20to,and%2058%2C900%20deaths%20each%20year.

 

GOARANT, C. Leptospirosis: risk factors and management challenges in developing countries. Resp Rep Trop Med. 2016; 7: 49-62. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6028063/.

 

NAING, C. et al. Risk factors for human leptospirosis following flooding: A meta-analysis of observational studies. PLoS. 2019; 14(5): e0217643. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6541304/.

 

SBI e SGI. Nota Técnica Conjunta da Sociedade Brasileira de Infectologia, Sociedade Gaúcha de Infectologia e Secretaria da Saúde do Estado do Rio Grande do Sul: Indicações de Quimioprofilaxia na Leptospirose. 2024. Disponível em: https://infectocast.com.br/nota-tecnica-atualizada-sobre-quimioprofilaxia-na-leptospirose-orientacoes-importantes-para-profissionais-de-saude-em-areas-de-risco/.

 

WIN, T. et al. Does the use of antibiotics prevent leptospirosis? Cochrane Database of Syst Ver. 2024, Issue 3. Art. No.: CD014959. Disponível em: https://www.cochrane.org/CD014959/LIVER_does-use-antibiotics-prevent-leptospirosis#:~:text=%E2%80%93%20Antibiotics%20probably%20do%20not%20reduce,are%20more%20quality%20trials%20published.

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