Levantamento sobre testes clínicos conduzidos no Canadá, publicado recentemente no periódico Facets, envolvendo milhares de trabalhos científicos, indica que apenas 3% dos testes clínicos controlados e randomizados, conduzidos exclusivamente em centros de pesquisa canadenses entre 2009 e 2019, atenderam conjuntamente às exigências internacionais de registro prévio (47%), comunicação de resultados no site de registro (12%) e publicação na literatura científica (48%). Dos estudos multinacionais, envolvendo colaboração entre instituições canadenses e de outros países, a taxa de obediência a todos os três requerimentos ficou em 42%, com 74% tendo registro prévio, 75% comunicação e 65% publicação.
Esses números evidenciam um enorme desperdício do tempo – quando não da saúde – de milhares de voluntários, envolvidos em trabalhos de pesquisa cujos resultados jamais vieram a público e, portanto, não contribuíram para o avanço da ciência e da medicina: dos estudos com mais de 500 voluntários inscritos, apenas 48% cumpriram todos os três critérios e 20% jamais geraram um artigo científico. Um participante de teste clínico ouvido pela imprensa canadense para comentar esses números declarou sentir-se “traído” pela comunidade científica.
Para quem prefere ver o copo meio cheio, a boa notícia é que a observância das normas torna-se mais frequente à medida que os estudos envolvem mais voluntários e chegam às etapas mais cruciais. A taxa de respeito às três regras é de 48% nos trabalhos com mais de 500 participantes, mas de somente 8% nos com menos de 99. E os testes de fase 3, a última antes da aprovação da terapia para uso, têm taxa de observância plena de 49%, ante 4% dos de fase 1.
Riscos e distorções
Testes clínicos controlados e randomizados (RCTs, na sigla em inglês) são a melhor fonte de informação sobre a eficácia e a segurança de medicamentos e terapias – desde que bem planejados, bem conduzidos e reportados com transparência. Para tentar garantir isso, normas internacionais determinam que todo RCT seja registrado numa base de dados pública antes mesmo da inscrição do primeiro voluntário; que um resumo dos resultados seja publicado no site do registro até um ano depois do encerramento do trabalho; e que todos os resultados completos sejam publicados na literatura científica até, no máximo, dois anos após a conclusão do estudo.
O registro prévio, além de submeter planejamento e metodologia ao escrutínio crítico da comunidade científica, ajuda a inibir dois comportamentos deletérios: “pescaria” de dados e o apagamento de resultados.
Há suspeita de “pescaria” quando, por exemplo, a pesquisa de um medicamento para depressão se transforma, no meio do caminho, num estudo sobre cura da calvície ou controle da pressão arterial. Isso levanta a suspeita de que o desfecho inicial previsto não foi bem-sucedido e que os autores saíram “pescando” coincidências, em sua base de dados, para tentar “salvar” o trabalho. Com o registro prévio, fica mais fácil detectar esse tipo de manobra. Apagamento é a simples omissão de resultados de pesquisa considerados, por um motivo qualquer, inconvenientes. Mais uma vez, o registro prévio ajuda a reconhecer a burla.
Já a publicação informa à comunidade científica o resultado do trabalho. Além das razões óbvias – o conhecimento, uma vez gerado, deve ser disseminado –, é importante destacar que a integridade do registro científico e, no caso específico da medicina, a confiabilidade das decisões tomadas por médicos e gestores públicos, depende da publicação de todos os estudos. A omissão de parte dos resultados obtidos em RCTs faz com que tentativas de avaliar “o que a ciência realmente diz” sobre tratamentos e medicamentos produzam respostas potencialmente distorcidas, porque parte da evidência relevante não se encontra disponível e, portanto, não pode ser levada em conta.
O trabalho canadense é apenas o mais recente a tentar quantificar o problema. Estudo de 2019 apontava que apenas 39% das pesquisas médicas encabeçadas por universidades alemãs tinham resultados publicados dentro do prazo normativo de dois anos.
Vieses
Dois fenômenos (às vezes tratados como uma coisa só) representam riscos constantes à integridade da literatura científica: o “efeito gaveta” e o “viés de publicação”. “Efeito gaveta” é a tendência de manter inéditos – isto é, “engavetados” – resultados considerados frustrantes pelos pesquisadores, seus patrocinadores, ou ambos. Já o viés de publicação é a tendência dos periódicos científicos de abrir espaço preferencialmente para resultados “sexy”, surpreendentes ou revolucionários.
As normas de registro, comunicação e publicação são ferramentas para combater esses desvios. A baixa adesão às regras detectada nos estudos envolvendo instituições canadenses (e, antes disso, alemãs) mostra que tanto o efeito gaveta quanto o viés de publicação seguem produzindo ruído na literatura científica.
Os autores do artigo canadense apontam, com sensatez cristalina, que a existência de normas nada significa se a obediência a elas não for exigida e fiscalizada – e que a falha em monitorar a adesão às regras gera desperdício de recursos e pode ter consequências “profundas” para a ciência e a sociedade.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)