Estudo publicado em maio de 2020 nos EUA mostrou que a população negra apresentava 3,7 vezes mais probabilidade de morrer de COVID-19 do que a média nacional. A população latina, o dobro. Dados no Reino Unido são similares, mostrando que a pandemia impactou mais comunidades negras e asiáticas do que a população branca. O relatório britânico também mostrou que agentes de saúde de grupos marginalizados tinham mais dificuldade em serem ouvidos quando requisitavam acesso a testes e equipamentos de proteção.
Que racismo e preconceito dificultam o acesso à saúde pública não é novidade criada pela pandemia. Relatório de 2015 do Departamento de Saúde e Serviço Social dos EUA já trazia a informação de que homens e mulheres pretos têm menor expectativa de vida, maior probabilidade de desenvolver pressão alta, ansiedade e depressão, e menos acesso a imunizações.
No Brasil, talvez motivado por preocupações semelhantes, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) emitiu diretriz sugerindo ao Ministério da Saúde (MS) “(re)conhecer as manifestações da cultura popular dos povos tradicionais de matriz africana e as Unidades Territoriais Tradicionais de Matriz Africana (terreiros, terreiras, barracões, casas de religião, etc.) como equipamentos promotores de saúde e cura complementares do SUS”. A ideia parece muito razoável, e abordei o tema na minha coluna semanal do jornal O Globo, em que apresentei o exemplo da Nigéria, onde o envolvimento de líderes islâmicos numa campanha de vacinação levou a uma relação virtuosa, de confiança, entre as congregações e a saúde publica. O CNS aponta, e eu ressaltei na coluna, que muitas vezes o local de culto oferece ao fiel a primeira oportunidade de articular suas queixas de saúde física ou mental, e que uma parceria bem estruturada entre o SUS e lideranças religiosas poderia ampliar o acesso à saúde pública.
Fiz, contudo, uma crítica à interpretação dada pelo Ministério da Saúde que, segundo manifestações publicadas na imprensa, entendeu o apelo do CNS como um pedido de inclusão dos conhecimentos tradicionais de fundo religioso no Plano Nacional de Políticas Integrativas e Complementares (PNPIC). Esta crítica foi lida por alguns como uma manifestação de intolerância para com a religiosidade afro-brasileira, o que representa grave distorção do sentido geral do texto: o problema apontado é o risco de se borrar a distinção entre religião e medicina – qualquer religião. A leitura do MS seria igualmente intolerável se a diretriz se referisse a templos evangélicos, capelas católicas, sinagogas, ashrams etc.
A infeliz coincidência de a coluna ter sido publicada logo após a trágica morte da líder quilombola Mãe Bernardette certamente agravou ânimos, principalmente entre os que ignoram as rotinas de produção de um jornal impresso – o texto havia sido entregue dias antes da data prevista de publicação. A foto e a linha fina que inicialmente acompanharam a versão online do artigo foram escolhas editoriais, não da autora, e foram trocadas prontamente após meu pedido com a ponderação de que, do jeito como estava, o enquadramento editorial mostrava-se desrespeitoso para com a religião em destaque.
A crítica fundamental à interpretação do MS para a diretriz, ponto central da coluna, foi afogada pelo redemoinho de ódio das redes sociais, onde o oportunismo da sinalização de virtude bloqueia qualquer possibilidade de debate produtivo.
Vale a pena, então, tentar trazer a conversa de volta a seu eixo legítimo: as práticas integrativas e complementares (PICs) existem no SUS sob a rubrica da Atenção Básica de Saúde. Ao todo hoje são 29 PICs, entre elas práticas como florais, banhos de lama, picadas de abelha, homeopatia e constelação familiar. Rotular a rica cultura religiosa afro-brasileira como “mais uma PIC” é reducionista e desrespeitoso.
Fazendo um exercício de quais os potenciais desdobramento de incluir os conhecimentos tradicionais religiosos – de qualquer matriz – como PIC, podemos imaginar alguns cenários. Incluir uma religião como PIC abre precedentes para que todas as outras crenças e locais de culto reivindiquem reconhecimento dentro do Sistema Único de Saúde. Poderíamos assim facilmente ter conhecimento tradicional evangélico, católico, judaico ou islâmico como PIC.
Fora o enorme vespeiro ético e epistêmico a ser criado – religião não é medicina, medicina não é religião: medicina é guiada por evidências; religião, por fé –, cabe lembrar que as PICs são financiadas pelo orçamento da Atenção Básica de Saúde, cuja destinação é decidida nos municípios, ao sabor das pressões políticas locais. Não é preciso muita imaginação para supor que, nesse cenário, a entrada de entes religiosos no SUS priorizará as denominações dominantes em cada reduto eleitoral, e empurrando as minoritárias ainda mais para a margem.
Seria muito mais produtivo pôr o populismo de lado e trabalhar para construir parcerias funcionais entre lideranças religiosas e a atenção básica, estabelecendo laços de confiança e comunicação que serão tão mais fortes quanto for a consciência de que cada lado da aliança tem um papel que é só seu.
Natalia Pasternak é microbiologista, presidente do Instituto Questão de Ciência, professora adjunta em Columbia University, professora convidada da FGV-SP. É membro do Committee for Skeptical Inquiry (CSI), colunista do jornal O Globo e coautora de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e “Contra a Realidade” (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto).