Não existe desinformação "inofensiva", muito menos em saúde. Seja a mentira deliberada com interesses políticos e/ou econômicos, como a dos movimentos antivacina, ou equívocos e enganos do tipo "a homeopatia funciona porque funcionou em mim", ou "tem eficácia comprovada por evidências científicas robustas", a má informação disseminada em nossa sociedade, principalmente via internet, redes sociais e aplicativos de mensagens, afeta a conduta de pacientes, muitas vezes atrasando, e noutras até impedindo ou inviabilizando, o tratamento ou a prevenção contra as mais diversas condições e doenças. E este é um problema que se manifesta cada vez mais nos consultórios, como mostram duas pesquisas recentes com médicos brasileiros e americanos, mas continua em grande parte a ser ignorado ou tolerado pelas grandes empresas de tecnologia.
Conduzida pelo Instituto Questão de Ciência (IQC) - que publica esta Revista Questão de Ciência - em parceria com a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), a primeira destas pesquisas teve seus resultados preliminares divulgados no fim do mês passado. O levantamento, intitulado "Hesitação vacinal: por que estamos recuando em conquistas tão importantes?", ouviu cerca de mil médicos da especialidade espalhados pelo país e revelou uma forte influência de “informações não confiáveis” sobre o comportamento das famílias quanto à vacinação.
E, com isso, as crianças brasileiras ficam desprotegidas. Questionados sobre a frequência com que atenderam famílias que não cumpriram o calendário vacinal nos seis meses anteriores, quase a metade dos pediatras participantes (476) contaram ter passado por esta situação no consultório, numa média de 41 famílias com o calendário em atraso no período. Como justificativa, 19,83% das famílias disseram temer efeitos adversos das vacinas, e quase o mesmo número (19,65%) não confiar na segurança dos imunizantes. E isto foram apenas as respostas válidas no âmbito do levantamento. Como este campo no questionário era aberto, alguns médicos aproveitaram para fazer desabafos, conta Luiz Gustavo Almeida, coordenador de ações de educação do IQC e um dos responsáveis pela pesquisa.
Assim, outrora referência mundial em adesão à vacinação graças ao Programa Nacional de Imunizações (PNI), o Brasil vem observando nos últimos anos uma queda preocupante na cobertura vacinal. No caso do esquema inicial da vacina da poliomielite, dado a crianças no primeiro ano de vida, por exemplo, dados do SUS indicam que a cobertura despencou de 98,29% em 2015 para 77,2% no ano passado, após atingir mínima de 71,04% em 2021. Já a primeira dose da vacina tríplice viral, que protege contra sarampo, caxumba e rubéola e deve ser aplicada a partir dos 12 meses de idade, viu a cobertura cair de 96,07% em 2015 para 80,7% em 2022, também após atingir mínima em 2021, de 74,94%.
O ideal é que estas coberturas fiquem acima de 95%. A queda traz o risco da volta destas doenças ao país. No caso do sarampo, em 2016 o Brasil havia recebido da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) certificado de eliminação da doença após passar mais de um ano sem nenhum registro de casos "importados" e com os últimos casos "autóctones" - originados no próprio país - observados em 2000. Três anos depois, porém, o Brasil perdeu o certificado com a reintrodução e circulação do vírus, somando quase 40 mil casos confirmados entre 2018 e meados de novembro de 2019, de acordo com o último boletim epidemiológico sobre sarampo disponível do Ministério da Saúde.
Quanto à pólio, o último caso por poliovírus selvagem no Brasil ocorreu em 1989, e desde 1994 o país conta com certificado de área livre da circulação do patógeno, em conjunto com os demais países das Américas. Mas, dada a perda de cobertura vacinal, no ano passado a Opas passou a classificar o país com um dos com o maior risco de reintrodução da doença na região, ao lado de República Dominicana, Haiti e Peru.
Dificuldades na pandemia
A recente pandemia de COVID-19, por sua vez, foi acompanhada do que ficou conhecido como uma "infodemia". Da promoção de tratamentos inúteis - que no Brasil incluiu os infames "Kits Covid" contendo medicamentos sem comprovação científica e com eficácia descartada contra a doença, como a hidroxicloroquina e a ivermectina - ao medo infundado das vacinas, a desinformação afetou desde a adesão a medidas básicas de prevenção, como evitar aglomerações e o uso correto de máscaras, até à própria vacinação, num perigoso desenrolar da hesitação vacinal que tanto expõe a população infantil brasileira, como mostrou a pesquisa do IQC com a SBP.
Cenário que também foi visto nos EUA, onde o ex-presidente Donald Trump foi um dos primeiros promotores da cloroquina como uma "solução mágica" para a COVID-19, sendo rapidamente imitado pelo então presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Lá, como cá, a desinformação atrapalhou o trabalho dos médicos e profissionais que procuraram combater a doença e prevenir sua disseminação com base em evidências científicas, mostra pesquisa da consultoria americana Morning Consult a pedido da também americana de Beaumont Foundation.
No levantamento, que ouviu 806 médicos americanos que dedicam pelo menos metade de seu tempo à prática clínica e 2.210 adultos em amostras representativas da categoria e da população geral dos EUA, quase três em cada quatro dos profissionais de saúde (72%) relataram que a desinformação sobre a COVID-19 dificultou o cuidado com os pacientes, levando a desfechos negativos, fruto da quase onipresença das mentiras e equívocos espalhados sobre a doença: 44% dos médicos indicaram que mais da metade das informações que viram, leram ou ouviram de seus pacientes em seus consultórios ao longo da pandemia estavam erradas, 38% que de metade a três quartos das informações estavam erradas e 6% que de 76% a toda informação trazida pelos pacientes estava errada.
E não é uma questão exclusiva da COVID-19. Embora altas proporções de médicos tenham dito que a desinformação sobre vacinas da COVID-19 (84%) e tratamentos para a doença (82%) seja um grande problema, eles também expressaram muita preocupação com a desinformação envolvendo temas como perda de peso (79%), suplementos dietéticos (77%), saúde mental (72%), outras vacinas (67%), câncer (47%) e diabetes (46%).
Além disso, a desinformação em saúde está minando a confiança do público na profissão médica. Ainda de acordo com a pesquisa Morning Consult/de Beaumont Foundation, mais de dois em cada três médicos ouvidos (68%) julgam que esta confiança caiu nos últimos dois anos, no que concordaram 21%¨dos adultos americanos, fenômeno que atingiu mais os que se declararam eleitores republicanos (30%) - partido do ex-presidente Trump - do que democratas (14%).
A explicação para isso pode estar em outra parte da pesquisa, que procurou identificar quais as fontes de informação sobre saúde que médicos e público procuram e em que mais confiam. Enquanto 89% dos profissionais disseram que frequentemente têm como referência periódicos médicos ou científicos, apenas 26% dos adultos americanos em geral consultaram este tipo de fonte. Para o público, a principal fonte foi a internet (66%), que mais da metade (54%) também elegeu como a mais confiável. E embora muitos médicos também tenham reconhecido recorrer a buscas na internet (84%), só uma minoria (22%) considera a rede uma fonte confiável.
Descompasso se manteve no subgrupo das redes sociais. Entre os adultos americanos em geral, 24% disseram terem buscado frequentemente informações sobre saúde no Facebook, 9% no LinkedIn e 12% no Twitter, contra respectivamente 12%, 11% e 8% dos médicos. Enquanto para 11% do público em geral o Facebook é um fonte confiável de informação, 1% o LinkedIn e 4% o Twitter, nenhum dos médicos elegeu qualquer das redes sociais como boa referência.
Circulação livre
Dado que torna ainda mais preocupantes os resultados de um estudo também recente que analisou anúncios de tratamentos "alternativos" contra o câncer nas plataformas sociais da Meta, empresa de tecnologia controladora do Facebook, Instagram e Messenger, publicado no JMIR Infodemiology. Lançado em 2021, o periódico de acesso aberto tem como foco justamente a nascente disciplina da "infodemiologia", cujo interesse cresceu na esteira da infodemia associada à pandemia de COVID-19.
O estudo liderado por Marco Zenone, da Faculdade de Políticas de Saúde Pública da prestigiada London School of Hygiene and Tropical Medicine, no Reino Unido, coletou uma amostra de 310 anúncios pagos veiculados entre 6 e 12 de dezembro de 2021 nas três plataformas sociais da Meta por 11 clínicas oferecendo abordagens ou tratamentos ditos "alternativos" contra câncer, compreendendo qualquer terapia sem embasamento científico, já refutada, não comprovada ou ainda em estágios iniciais de pesquisa sendo aplicada fora do contexto de ensaios clínicos controlados e devidamente registrados.
Destas clínicas, quatro eram sediadas nos EUA, outras quatro no México, duas na Espanha e uma na Tailândia. Seus "cardápios" de tratamentos que vão de terapias celulares e imunoterapias não especificadas - para as quais as clínicas não demonstram ter capacidade técnica - às terapias "suspeitas" habituais, incluindo diversas opções de ozonioterapia, hipertermia, ervas, vitaminas, medicina vibracional, "energética", magnética, entre outras, além de algumas criadas especificamente para atrair vítimas de câncer, como as toxinas de Coley e o chamado Protocolo Budwig.
"Os anunciantes enquadram seus serviços como que preenchendo uma lacuna, uma vez que a medicina convencional esgota suas opções de tratamento, e procuram se diferenciar dos provedores de serviços médicos baseados em evidências científicas que dão diagnósticos terminais, depreciando a eficácia de seus tratamentos contra o câncer (por exemplo, radioterapia e quimioterapia) e seu cuidado e compaixão para com seus pacientes", descrevem os autores do estudo. "Os anunciantes apelam aos seus potenciais pacientes com câncer por meio da 'scienceploitation' ('exploração da ciência', em tradução livre), que ocorre quando noções científicas populares são usadas para tirar vantagem do capital social associado a elas para induzir o interesse do consumidor em seus produtos ou serviços, podendo criar falsos entendimentos e/ou propondo falsas conexões".
Os pesquisadores identificaram oito estratégias básicas usadas pelas clínicas de tratamentos alternativos do câncer para atingir esses objetivos. Para começar, 93,2% dos anúncios trazem imagens ou textos dando a entender que são provedoras de cuidados médicos legítimos e qualificadas para administrar ou aconselhar terapias contra a doença, como pessoas vestidas como profissionais de saúde, suas supostas credenciais e os equipamentos hospitalares de que dispõem. Muitas vezes, porém, estas credenciais não qualificavam os profissionais para orientar tratamentos de câncer, ou mesmo efetuar qualquer intervenção médica, incluindo naturopatas, quiropratas e outros praticantes da chamada "medicina alternativa".
Outra tática comum, observada em 65,5% dos anúncios, é tentar convencer os pacientes, principalmente os que encaram prognósticos ruins por enfrentarem casos agressivos, avançados ou terminais de câncer, que existem opções "eficazes" no mercado e a não desistirem de buscar a cura - especialmente a que oferecem. Neste sentido, muitas vezes (54,2%) os anúncios também traziam supostos testemunhos de uma ou mais pessoas que se trataram na clínica e se beneficiaram das terapias oferecidas, ou até mesmo foram "curadas" - o que 25,8% dos anúncios dizem que as clínicas alternativas são capazes de fazer, contra qualquer evidência científica de que de fato o façam ou possam fazer.
Na tentativa de atrair pacientes, as clínicas alternativas também muitas vezes (39%) anunciaram ter uma abordagem "holística" do câncer, prometendo também cuidar de sua "saúde emocional" e enfrentar eventuais traumas que estejam "atrapalhando" a capacidade do paciente de lutar contra a doença. Assim, frequentemente (26,1%) os anúncios traziam linguajar relacionado aos cuidados que têm como o "bem-estar" dos pacientes, enfatizando terem como um de suas prioridades construírem "relações que abençoem todos os envolvidos", como apareceu textualmente em um deles.
Menos comuns, mas ainda usadas com frequência nos anúncios, foram tentativas das clínicas de trazer legitimidade para seus tratamentos ou abordagens, seja com referências textuais ou imagens que remetam à ciência ou organizações científicas e de pesquisa conhecidas, como "Havard", "Nobel" ou "Nasa" (23,2%), seja afirmando se manterem em dia com o que de mais avançado exista na tecnologia (20,3%) com palavras como "inovação", "descoberta", "pioneiro", "revolucionário", entre outras. Por fim, uma pequena proporção dos anúncios (13,9%) também destacou que além de tratar o câncer é preciso entender porquê ele se desenvolveu, o que as clínicas usam para promover abordagens como "desintoxicação" - a popular "detox".
Limpando as timelines
Diante disso, os pesquisadores sugerem um endurecimento dos padrões da Meta para a aprovação e manutenção de anúncios, principalmente em relacionados à saúde, em suas plataformas sociais, já que ao prover opções de direcionamento deste tipo de conteúdo a empresa se torna, em parte, responsável pela disseminação da desinformação ou informação enganosa que ele carrega. Segundo eles, atualmente a identificação e remoção deste tipo de anúncio depende de denúncias de usuários ou da imprensa, numa vigilância supervisionada por sistemas de inteligência artificial "que não enfrenta, nem é capaz de enfrentar, o problema".
"Hoje a Meta exige um processo de autorização, com 'permissões por escrito' ou procedimentos de inscrição para um grupo selecionado de propagandas (por exemplo, remédios de prescrição médica, tratamento de vícios, criptomoedas, questões sociais, eleições, política, farmácias online, apostas online e encontros amorosos)", enumeram. "Expandir este processo de autorização para todas propagandas médicas pode potencialmente limitar a disseminação de anúncios médicos falaciosos ou abusivos como os identificados neste estudo. O processo de aprovação não deve se basear apenas em ferramentas de inteligência artificial, mas ser coordenado por profissionais médicos qualificados. Medidas desencorajadoras fortes, como o banimento e a denúncia de anunciantes que violam a lei e as políticas da plataforma também pode ajudar a limitar esta prática nociva".
Os pesquisadores, porém, não estão otimistas de que terão suas recomendações atendidas. Lembram que embora autoridades nacionais possam regular e intervir sobre práticas e anunciantes dentro de suas áreas de jurisdição, as plataformas sociais têm alcance transnacional, o que faz da Meta e outras big techs as únicas partes com a competência e capacidade de policiar suas redes. Tal ação, no entanto, entraria em confronto com os próprios modelos de negócio destas empresas, baseados na venda de espaço publicitário e promoção do tráfego de usuários sob diversas formas.
"Atacar de fato a questão dos anúncios enganosos requer examinar e confrontar o conflito entre os interesses do negócio das mídias sociais e da saúde pública", escrevem os autores do estudo. "Os anúncios enganosos em saúde são apenas um dos sintomas de uma grande infraestrutura que busca o lucro e que está em conflito com objetivos da saúde pública. Mas a resposta das autoridades de saúde pública, e da Meta, tem sido aceitar este sistema como um status quo, buscando maneiras de ter melhorias incrementais sem reconhecer ou admitir que este modelo de negócios é em si nocivo. É importante entender que há uma responsabilidade compartilhada entre anunciantes e as plataformas sociais, com ambas se beneficiando enormemente dos anúncios enganosos que são repassados para o público. Isto exige coragem política, e o uso de meios eficazes para coibir estas práticas prejudiciais".
Isso não quer dizer, no entanto, que governos e autoridades sanitárias não possam fazer nada. Exemplo disso é a França, cujo Parlamento aprovou por unanimidade no início deste mês uma lei para regular a atuação dos chamados "influencers" nas redes sociais. O texto proíbe os influenciadores digitais de promoverem produtos e serviços considerados de risco, o que inclui procedimentos estéticos com prescrição reservada a profissionais de saúde, ou a interrupção de tratamentos médicos. Eles também não podem azer propaganda de serviços de apostas, investimentos em criptomoedas ou outros produtos financeiros de alto risco, ou produtos contendo tabaco ou nicotina. Os infratores estão sujeitos a multas de até 300 mil euros (cerca de R$ 1,6 milhão) e penas de prisão de até dois anos.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência