Quando a insensatez aparenta dar uma trégua, sou surpreendido por fantasmas de um passado recente. Neste caso, acredito que houve uma tentativa – falha – do Monstro do Espaguete Voador (FSM) provar sua existência e tornar meus dias mais estressantes.
As invencionices que tratarei hoje utilizam, como de praxe, do mesmo modus operandi citado em outros textos (roupagem científica, citação de artigos pouco relevantes, um segredo oculto que só os detentores da verdade conhecem).
Mas como esse texto nasceu?
Tendo em mente que o FSM opera de maneiras escusas, participei de dois eventos independentes, mas que apresentaram a mesma problemática “Água Medicinal/Água Alcalina”. Ainda mais inacreditável, ganhei de presente a obra “Um inimigo do povo”, do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828-1906) – o motivo do presente ser tão curioso será explicado a seguir.
Resumo
A peça retrata a cidade de Molendal, conhecida por suas águas medicinais. Essas águas são um importante recurso para a cidade, atraindo turistas e contribuindo para a economia local.
Contudo, a paz é interrompida quando o Dr. Tomas Stockman (personagem principal e médico-chefe das termas), desconfia da qualidade da água e realiza testes, descobrindo que ela está infectada e representa risco para a saúde.
A situação causa um conflito entre os interesses da cidade – que depende da água para gerar receita – e do médico, que entende sua responsabilidade sanitária.
Enquanto um dos lados defende a continuidade do funcionamento das termas para movimentar a economia, o outro se desdobra para explicar a necessidade de uma reforma do encanamento, o que seria suficiente para tratar a infecção.
Dada a existência de vontades diametralmente opostas, o personagem principal enfrenta o prefeito, o jornal e a cidade e, como recompensa, é considerado um inimigo do povo (persona non grata).
Qual a relação?
O presente me foi dado no município de Águas de São Pedro que, curiosamente, apresenta muita similaridade com a cidade da obra. Como descrito na página oficial da cidade:
“O Fontanário é o local onde podem encontrar-se as três fontes de águas medicinais da cidade: Fonte da Juventude: (água sulforosa) indicada para o tratamento de reumatismo, diabetes, alergia, asma, colites, moléstias da pele, intoxicação e inflamação; Fonte Gioconda: (água sulfatada sódica radioativa) indicada para o tratamento de fígado, vesícula biliar e intestinos; Fonte Almeida Salles: (água bicarbonatada sódica) indicada para o tratamento de azia, excesso de acidez gástrica, diabete e cálculos renais. É possível degustar as águas minerais e medicinais no local ou engarrafar em vasilhames para que as pessoas levem para uso semanal”.
A cidade apresenta ainda o Spa Thermal Dr. Octávio Moura de Andrade, basicamente um local que mistura práticas válidas e com embasamento científico (fisioterapia) e pseudociências atrozes (terapia de florais e Reiki). Para que não me acusem de distorção, citarei, novamente, o site oficial da cidade:
“O poder de remissão de dores e doenças por meio dos banhos com água sulforosa atrai a atenção de turistas do mundo todo. O espaço é de propriedade pública onde se pode tomar banhos de imersão com a água da Juventude e usufruir vários serviços disponíveis diariamente aos visitantes. Para o uso das águas medicinais e de seus tratamentos, existe um atendimento médico que orienta os usuários no próprio SPA. A Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares de 2006 estabelece que a utilização de águas medicinais e sua aplicação em tratamentos de saúde são um potencial terapêutico para recuperar, manter e promover a saúde.”
E continua:
“... podem ser encontrados na cidade para tratamentos estéticos e banhos oferecidos no SPA Thermal Dr. Octavio de Moura Andrade: Banhos de imersão com Água Juventude e Sauna completa; Massagem relaxante: Massagem para gestante; Massagem com cânfora e óleos essenciais; Massagem com óleos aromáticos; Massagem com sais; Massagem shiatsu e do-in; Banho de espuma; Fisioterapia; Estética facial; Lama facial; Lama Corporal; Acupuntura; Hidratação facial e corporal; Drenagem linfática; Auriculoterapia; Terapia com florais, Reiki..”
A maioria das alegações terapêuticas relacionadas à ingestão dessas águas – grifo na palavra ingestão – carece de embasamento científico, o que serve de prelúdio para uma reinterpretação do famoso trilema atribuído – talvez de maneira errônea – a Epicuro:
A administração municipal não sabe que as alegações de benefício de suas águas são infundadas, e por isso não as corrige; ou
A administração municipal sabe que as alegações de benefício de suas águas são infundadas, mas não quer corrigi-las; ou
A administração municipal sabe que as alegações de benefício de suas águas são infundadas, gostaria de corrigi-las, mas não pode.
Deixo ao leitor a prerrogativa de decidir qual das três é mais plausível – e, no caso das opções “não quer” e “não pode”, quais as razões.
E, adiantando-me a possíveis contra-argumentos:
Alguns veículos midiáticos noticiam casos excepcionais de pessoas que tiveram melhoras em seus quadros de saúde após banhos e ingestão de águas termais. Entretanto, é necessário reafirmar que experiências anedóticas não são – e nunca serão – evidências científicas sólidas.
E, como mencionado em artigo anterior, não devemos cometer o erro de confundir ausência de evidência com evidência de ausência. Talvez algum benefício, para além do relaxamento dos banhos ou de um eventual efeito antiácido da ingestão, exista, mas para se afirmar isso com honestidade, são necessários os elementos usuais: ensaios clínicos randomizados, duplo-cegos, com grupo controle, grande número de participantes e, claro, que seja replicável.
Água ionizada
Retornando da viagem, fui surpreendido por mais um momento de estresse. Desta vez, os protagonistas foram os vendedores de aparelhos ionizadores de água.
Para quem não está familiarizado, ionizadores são equipamentos, geralmente acoplados a torneiras, que prometem filtrar contaminantes e, por eletrólise (processo em que uma corrente elétrica é usada para mover íons), torna a água “alcalina, mais hidratante, leve e antioxidante” (palavras de uma fabricante, não minhas).
Obriguei-me a ler os artigos publicados no blog de uma empresa que oferece o produto e, como era de se esperar, encontrei um conteúdo ou sem referências bibliográficas, ou que apelava a estudos medíocres – os quais serão abordados no próximo tópico –, estultices velhas conhecidas e seguidamente desmentidas (não existe vibração curativa pela água e ambientes ácidos não são mais suscetíveis a doenças) e, o que me deixou mais irritado, promessas que simplesmente são impossíveis de cumprir.
Uma das publicações alega que o consumo de água magnesiana (adicionada de magnésio) previne diabetes, problemas cardíacos, pressão alta, doenças relacionadas ao intestino, osteoporose e ALZHEIMER, uma condição cruel para a qual a ciência desconhece meios eficazes de prevenção ou cura. Se alguém tiver prova válida de que água mineralizada – seja por magnésio, ouro, urânio, o que quer que seja – evita o Alzheimer, essa pessoa está perdendo tempo vendendo filtros de água: deveria apresentar suas evidências à comunidade científica e esperar o inevitável Nobel de Medicina.
Já tratamos disso diversas vezes na RQC, mas é sempre bom relembrar. Apesar da aparência dócil das terapias alternativas, elas podem ser extremamente prejudiciais à saúde de quem decide segui-las, visto que se aproveitam da fragilidade emocional – ou, nesse caso, de um receio futuro – das pessoas e influenciam, diretamente, na decisão de continuar ou abandonar um tratamento com respaldo científico.
Claro, alguém poderia argumentar que isso é um direito legítimo de escolha – o que eu concordo –, contudo, isso minimiza a culpa daquele que promoveu a substância/tratamento. O direito de o paciente tentar qualquer coisa, mesmo que seja bobagem, não pressupõe o direito de terceiros de promover e vender quaisquer bobagens.
O caso da jovem australiana Jess Ainscough, também conhecida como “Wellness Warrior”, é um exemplo emblemático desses perigos. Para os que não acompanharam a história, resumo, o artigo de 2015 do oncologista David Gorski para o blog Science-Based Medicine.
Jess faleceu de um câncer extremamente raro (sarcoma epiteloide) que acometeu sua mão e braço esquerdo. O que a tornou famosa foi a abordagem que seguiu no combate à doença.
O médico encarregado do seu caso recomendou a amputação do braço até a altura do ombro – mesmo sendo uma intervenção drástica, a cirurgia para a remoção do tumor e de uma parte significativa do tecido ao redor é o tratamento recomendado para prolongar a sobrevivência.
Ao invés disso, Jess optou por seguir o protocolo Gerson – um assunto que merece um texto separado e que, infelizmente, chegou ao Brasil. Basicamente, o protocolo consiste de sucos naturais, suplementos de vitaminas, dieta restritiva baseada em vegetais e enemas de café – uma solução de água e café introduzida por via retal, para “desintoxicar” o organismo.
O tratamento perdurou por dois anos e Jess acreditou que havia controlado a doença. Mas isso era uma ilusão, que lhe custou a vida.
E os tais estudos?
Quando afirmei a mediocridade dos estudos que defendem a água ionizada, fui sincero. A fabricante cita três referências em seu texto intitulado “Mentiras sobre a água alcalina” – seria uma mensagem subliminar disfarçada? –, sendo um ensaio clínico randomizado e duplo-cego e dois estudos de revisão (um focando, somente, em estudos in vitro e modelos animais e o outro em ensaios realizados in vitro, em humanos e animais).
As revisões afirmam que o hidrogênio molecular, presente na água alcalina, é o responsável pelo efeito biológico e terapêutico. Contudo, ao se aprofundar em ambas, fica claro que a maior parte dos resultados obtidos – positivos, por sinal – refere-se ou a modelo animal, ou in vitro ou, ainda, em ensaios clínicos randomizados duplo-cegos com baixíssimo número de voluntários. Em outras palavras, há um longo caminho a ser percorrido antes de decretarmos algum benefício da substância.
A pior parte é que essas revisões mostram muito mais responsabilidade do que o ensaio clínico. Neste, TANAKA, Y. et al (2018) tentaram avaliar efeitos na saúde, incluindo sintomas gastrointestinais, em indivíduos saudáveis que ingerem água eletrolisada e alcalina (AEW). O estudo perdurou por quatro semanas, contou com 60 voluntários, divididos em dois grupos, um que consumia água AEW e outro que consumia água da torneira. Como protocolo, os participantes foram instruídos a consumir 200ml de água logo ao acordar e mais 300ml ao longo do dia. Como avaliação, os pesquisadores realizaram coletas de sangue, avaliações de performance física e aplicaram questionários.
Ao final, os autores observaram que não houve um efeito claro que evidenciasse os benefícios da água AEW para a maioria dos desfechos estudados. Contudo, identificaram, com base nos questionários, uma melhora em variáveis subjetivas – qualidade do sono e “acordar sentindo-se bem”. Visto que a água AEW apresenta hidrogênio (substância antioxidante), os pesquisadores especularam que os efeitos observados são decorrentes de uma redução de estresse oxidativo. Os defeitos do estudo são numerosos demais para mencionar, e incluem uma quantidade absurda de variáveis subjetivas (além das relacionadas à qualidade do sono havia outras – por exemplo, sensação de estômago pesado), o que multiplica a chance de resultados “positivos” surgirem por mero acaso.
Mesmo com essa superprodução de oportunidades, praticamente todos os indicadores apontaram igualdade entre os dois grupos. Isso não impediu os autores de concluir que o consumo de água AEW, diariamente, melhora a saúde e a capacidade de exercícios, mesmo em indivíduos saudáveis que não têm sintomas gastrointestinais. Com toda a certeza, essa análise não foi influenciada pelo conflito de interesse de um dos autores que trabalha para a Panasonic Inc (uma empresa que todos conhecemos e que também atua no ramo de ionizadores de água).
E, para fechar o assunto – com base na evidência disponível até agora –, trago a conclusão da revisão sistemática realizada por SUNARDI, D. et al (2022):
“Os estudos disponíveis que analisamos não demonstraram evidência convincente para apoiar a ideia de prevenir doenças, melhorar performance, ou, ainda, curar doenças ao consumir água alcalina, oxigenada ou desmineralizada. Não obstante, estudos observaram efeitos adversos no consumo de água desmineralizada no longo prazo. Essa revisão sugere que águas alcalinas, oxigenadas, desmineralizadas não são superiores, quando comparadas, à água mineral.”
Alcalina, de novo?
Sim, eu sei que a RQC e outros sites especializados em ciência já se ocuparam dessa temática. Contudo, ao me aprofundar no assunto, ficou evidente – com base em pesquisas de mercado – um aumento nas vendas de água alcalina.
Segundo o Statista (portal online que fornece dados a respeito de setores industriais, economia digital global, mídia e setores varejistas), The Alkaline Water Company (uma gigante no ramo de águas alcalinas) teve receita recorde em 2022, passando de US$ 46 milhões (2021) para, aproximadamente, US$ 60 milhões. Ou seja, o setor está – infelizmente – crescendo.
Deixo, para finalizar, o magnífico artigo “Água alcalina não cura nada e nem devolve a juventude”, de autoria da médica e professora de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo Alicia Kowaltowski – uma das melhores explicações que desmonta, por completo, a falácia da água alcalina ser mais saudável do que água comum.
Mauro Proença é nutricionista
Referências
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Águas de São Pedro. Spa Thermal. Disponível em:https://www.aguasdesaopedro.sp.gov.br/portal/turismo/0/9/336/spa-thermal.
ORSI, C. A armadilha muito cara da medicina vibracional. 2023. Disponível em: https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2023/04/24/armadilha-muito-cara-da-medicina-vibracional
SALAMON, M. The Truth behind Three Natural Cancer “Cures”. 2015. Disponível em: https://www.mskcc.org/news/truth-behind-three-natural-cures
GORSKI, D. The Gerson Protocol, cancer, and the death of Jess Ainscough, a.k.a “The Wellness Warrior”. 2015. Disponível em: https://sciencebasedmedicine.org/the-gerson-protocol-and-the-death-of-jess-ainscough/.
KANGEN. Mentiras Sobre a Água Alcalina. 2023. Disponível em: https://kangensaude.com.br/5-mentiras-sobre-a-agua-alcalina/.
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TANAKA, Y. et al. Daily ingestion of alkaline electrolyzed water containing hydrogen influences human health, including gastrointestinal symptoms. Med Gas Res. 2018 Oct-Dec; 8(4): 160-165. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6352572/.
SUNARDI, D. et al. Health effects of alkaline, oxygenated, and demineralized water compared to mineral water among healthy population: a systematic review. Rev Environ Health. 2022 Dec 27. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/36571558/.
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