Supostas “Terapias Mitocondriais” fazem promessas contraditórias

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29 mai 2023
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Cachinhos Dourados

 

Mitocôndrias estão cada vez mais populares: todo dia um colega ou conhecido me encaminha um novo “suplemento mitocondrial”, uma suposta “terapia mitocondrial” ou “dieta mitocondrial”. Há também artigos populares sobre como “ativar suas mitocôndrias” e até mesmo um curso para médicos sobre “medicina mitocondrial”, dado por uma médica que se diz especialista em mitocôndrias, mas de quem curiosamente eu, uma médica-cientista que dedicou a vida a estudar mitocôndrias, nunca ouvi falar.

O encanto pelas mitocôndrias não me surpreende, pois dediquei mais de três décadas da minha vida ao estudo destas simpáticas organelas (partes das células):  são fascinantes! Mas me surpreendo com o reducionismo da ideia de que basta mencioná-las em meio a alguma fórmula mágica para encontrar a solução de uma diversidade de condições físicas.

É verdade que quase tudo na vida de um ser humano passa pelas diversas funções das mitocôndrias. Estas partes das nossas células, mais conhecidas pelo fato de produzir energia (na forma da “moeda energética celular”, a molécula de adenosina trifosfato, ou ATP), fazem muito mais. Ocupam mais ou menos um quarto do volume da maioria das nossas células, um reflexo de que têm funções muito diversas e importantes. Entre elas, regular a vida e a morte celular (por mecanismos de morte importantes para prevenir o câncer, por exemplo), regular a quantidade de cálcio na célula, regular a produção de radicais livres, produzir membranas, produzir grupos heme (importantes em antioxidantes e no transporte de oxigênio) e regular a síntese de várias moléculas.

Passos iniciais da síntese de glicose no fígado, processo que é importante para a manutenção dos níveis deste açúcar no sangue e o funcionamento do cérebro, ocorrem na mitocôndria. Também ocorrem na mitocôndria etapas importantes e iniciais da síntese e conversão entre aminoácidos, que constroem proteínas, e dos ácidos graxos que constroem gorduras. As mitocôndrias ocupam muito espaço nas células porque têm muitas e diversas ocupações.

Para fazer tudo isso, mitocôndrias têm alta complexidade. Contêm cerca de 1.500 proteínas diferentes, todas desempenhando funções distintas. Além disto, abrigam vários lipídeos, metabólitos e pequenas moléculas. Seria inocente acreditar que um suplemento qualquer, contendo uma molécula ou coleção de moléculas específica e limitada, seria capaz de modular toda esta complexidade de forma a melhorar todas as diversas funções das mitocôndrias. Mais inocente ainda seria achar que tal suplemento funcionaria de forma “cirúrgica”, interferindo apenas nos processos desejados.

Não existem milagres em biologia! Medicamentos, que são moléculas com alvos específicos nos nossos corpos, cuidadosamente desenhadas e extensamente estudadas, modulam processos muito específicos nas células, e assim podem combater aspectos diferentes das doenças para os quais são receitados. Por outro lado, suplementos, ao oferecer mais de algo que já temos ou adquirimos pela alimentação, mas sem alvos específicos nem processos patológicos para os quais são foram devidamente testados (e muito menos uma regulamentação que garanta que funcionem), raramente promovem benefícios, exceto, é claro, enriquecer um mercado extremamente lucrativo.  

Apesar disto, alguns dos componentes normais das mitocôndrias, como a Coenzima Q 10 (CoQ10), têm aparecido como forma de suplemento nas farmácias, supostamente para melhorar a função mitocondrial e nos dar mais energia. É fato que nossas mitocôndrias precisam de CoQ10 para sintetizar ATP, mas também é fato que, com a exceção de um grupo muito pequeno de pessoas com doença genética rara que afeta a síntese desta molécula, humanos são perfeitamente capazes de produzir CoQ10 nas quantidades necessárias e suficientes para as mitocôndrias funcionarem adequadamente.

Mas será que não é melhor tomar um suplemento para aumentar a CoQ10 nas nossas células, só para garantir? A resposta para quase qualquer componente das nossas células em pessoas saudáveis (sem deficiências diagnosticadas) é não. Isto porque a maioria dos componentes celulares não obedece ao preceito de “quanto mais melhor”. Muito pelo contrário: quase todos os componentes celulares são prejudiciais tanto no excesso quanto na escassez, devendo, portanto, estar presentes segundo o preceito da Cachinhos Dourados, na medida certa. E as células possuem mecanismos chamados homeostáticos, selecionados através de milhões de anos de evolução, para garantir que a produção de moléculas como CoQ10 ocorra exatamente nessa medida, dentro da faixa “Cachinhos Dourados” de que nossas células precisam.

Um outro exemplo do princípio “Cachinhos Dourados” na função mitocondrial é o ferro. Precisamos deste elemento para que nossas mitocôndrias sejam capazes de fazer ATP, e precisamos obtê-lo na dieta. Quando testamos o sangue para ver se temos anemia, quantificamos o ferro no sangue. Se ele está em falta na circulação,  também está em falta nas mitocôndrias em todas as células, e a geração de energia é prejudicada. No caso de falta de ferro, suplementar é importante. Mas se dermos ferro para pessoas que já têm o elemento em quantidade suficiente, o que vier em excesso não será incorporado nas mitocôndrias, mas poderá participar de reações que geram radicais livres danosos. Assim como vários outros componentes celulares, precisamos de ferro na medida certa, nem demais, nem de menos. No caso de pessoas saudáveis, estes níveis são controlados automaticamente pelas  células.

A grande maioria dos suplementos mitocondriais tem, inclusive, uma propaganda que não somente é enganosa, mas internamente contraditória: promete emagrecimento ao mesmo tempo que promete dar “mais energia”. Esta é, para qualquer um que entenda princípios de metabolismo, uma promessa paradoxal. Isto porque a mitocôndria gera energia a partir da quebra de nutrientes (carboidratos, proteínas e lipídeos). Ou seja, se se está dando “mais energia” para ela, se está dando mais nutrientes.

A quantidade de ATP gerada numa célula obedece a princípios de Cachinhos Dourados: se é verdade que pouco ATP mata células, também é verdade que não é possível armazenar ATP para além do necessário. Quando temos nutrientes demais (energia demais), a mitocôndria exerce outra de suas funções importantes, que é transformar o excesso em gorduras. A mitocôndria não somente queima gorduras, mas também participa da sua produção – elas não somente promovem emagrecimento, mas também engordam. E engordar não é uma coisa ruim: se gordura demais realmente não é saudável, de menos também é pouco saudável.

Animais de laboratório modificados para não ter gordura corporal são diabéticos (fazer gordura ajuda a controlar os níveis de açúcar no sangue), e pessoas com lipodistrofia (doença que dificulta a síntese de gorduras) sofrem com muitas alterações metabólicas altamente indesejáveis. Suplementos e terapias mitocondriais fazem promessas paradoxais e infundadas. Valem-se de propaganda enganosa que inclui alguns termos técnicos e uma organela verdadeiramente importante para vender coisas sem embasamento científico, e que em nada contribuem para a saúde. Da próxima vez que quiser dar mais energia para suas mitocôndrias, economize dinheiro com os suplementos: basta comer (na medida certa!).

Alicia Kowaltowski é professora de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo

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