Pseudociências na Copa do Mundo

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22 nov 2022
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bola de futebol

 

Maior e mais importante competição do futebol mundial, a Copa do Mundo, cuja 22ª edição começou neste domingo no Catar, também é uma grande vitrine para todo tipo de pseudociência. Sob a audiência de bilhões de fãs, alguns atletas ou mesmo equipes inteiras desfilam as mais variadas práticas duvidosas em busca daquele pequeno diferencial que, pensam, pode ajudar a trazer a taça, enquanto a mídia e até pesquisadores “sérios” lançam mão de diversas ferramentas, científicas ou não, numa tentativa de atrair a atenção e prever seus resultados.

Que o esporte profissional é um campo fértil para pseudociências não é novidade. Num mundo que centésimos de segundo podem ser a diferença entre a vitória e a derrota, qualquer ganho no desempenho é bem-vindo, mesmo em esportes coletivos como o futebol. Exemplos disso não faltam, como o caso do tenista sérvio Novak Djokovic, que além de adepto do movimento antivacina apregoa que a força do pensamento pode mudar a natureza da água e de alimentos, tornando-os mais nutritivos ou benéficos, e diz que o consumo de glúten pode comprometer a saúde, defendendo uma dieta sem a proteína comum em grãos como o trigo (o que só é recomendado para pessoas com condições específicas, como doença celíaca).

“Conheço algumas pessoas que por meio da transformação energética, por meio da força de orações, por meio do poder da gratidão, conseguiram transformar a mais tóxica das comidas ou talvez a água mais poluída na água mais curativa porque a água reage”, disse Djokovic em conversa transmitida pela internet com o amigo Chervin Jafarieh, um ex-corretor de imóveis cuja empresa Cymbiotika vende produtos como o suplemento Golden Mind, segundo ele um “formulado para provocar o ápice do desempenho mental e, mais importante ainda, fortalecer a estrutura do cérebro e proteger contra o declínio cognitivo do envelhecimento”.

Já o astro do futebol americano Tom Brady – mais conhecido no Brasil como o agora ex-marido da supermodelo Gisele Bündchen – transformou suas crenças em negócio em parceria com seu treinador pessoal Alex Guerrero, um “guru” dos exercícios autodidata investigado duas vezes pela Comissão Federal de Comércio dos EUA (FTC, na sigla em inglês), primeiro em 2005 por se passar por médico e alegar que poderia curar câncer, aids, esclerose múltipla, Parkinson e outras doenças com um suplemento alimentar batizado Supreme Greens, e depois em 2012, por vender uma bebida esportiva chamada NeuroSafe que, segundo ele, poderia prevenir concussões e, à época, foi endossada pelo próprio Brady. Juntos, eles criaram o TB12, método “holístico” unindo exercícios, dieta, hidratação e meditação que supostamente ajudou Brady a se manter como um dos mais longevos e bem-sucedidos quarterbacks do esporte, e que usam para vender de equipamentos a suplementos, além de sessões de treinamento em academias próprias e de terceiros nos EUA e em Porto Rico.

De volta ao “verdadeiro” futebol, temos nomes como o polonês Robert Lewandowski, que estreia na Copa no dia 22 contra o México. Eleito duas vezes o melhor jogador do mundo, em 2020 e 2021, Lewandowski é adepto de uma chamada “dieta invertida” criada por sua esposa, Anna, em que, entre outras coisas, começa as refeições pela sobremesa. Outro adepto de dietas não comprovadas que também está na Copa este ano é o lateral direito espanhol Dani Carvajal. Após seguidas lesões, Carvajal, a exemplo de Djokovic, resolveu tirar o glúten de sua alimentação, “sem trigo e com vegetais”.

“Ela é uma dieta rígida, mas tudo que me faça bem, é bom. Se tiver de comer brócolis de dia, de tarde e de noite, vai ser assim”, disse ele em novembro de 2021, antes de uma partida do Real Madrid pela Champions League.

Outra pseudociência que entra em campo na Copa é a talassoterapia, que tem entre seus adeptos o jogador francês Kylian Mbappé. Por causa dela, o jovem atacante do Paris Saint-Germain tem o costume de se cobrir com “lama, água do mar, algas marinhas, areia, plâncton e mais de oitenta outras espécies extraídas do oceano” que supostamente atuam como relaxantes para o corpo e a mente, além de alegados benefícios como “melhora o sistema locomotor”, “acelera o processo de redução de gordura” e “melhora a força física”.

Também comuns no meio esportivo profissional e que devem marcar presença nesta Copa são a crioterapia, a ventosaterapia e as chamadas fitas de kinésio. A primeira, como o nome indica, constitui na exposição do corpo inteiro a temperaturas que chegam a -150º Celsius numa espécie da “sauna gelada” que supostamente ajudaria a acelerar a recuperação de lesões, aliviar dores e reduzir a inflamação. Estudos e meta-análises, no entanto, não encontraram benefícios significativos da prática em qualquer destas alegações quando comparada um descanso deitado ou um simples banho frio de banheira, e em alguns casos observaram uma redução da força e potência muscular e da coordenação motora fina após o término da terapia, desaconselhando seu uso para quem precisa retomar rapidamente a atividade física, como num jogador de futebol durante o intervalo.

A ventosaterapia, por sua vez, ganhou atenção mundial nas Olimpíadas do Rio em 2016, quando o nadador americano Michael Phelps se alinhou para a largada das provas no Parque Aquático Maria Lenk exibindo grandes marcas circulares na pele de costas e ombros. Os hematomas são o único resultado prático da terapia, em que pequenos copos, geralmente de vidro, são colocados sobre músculos doloridos ou lesionados e depois é feita uma sucção usando calor ou aparelhos. Prática alternativa do tipo que diz manipular “energias vitais” e ajudar a “remover toxinas” do organismo como parte da “medicina tradicional chinesa” (que de “tradicional” não tem nada), a ventosaterapia não tem comprovação científica de qualquer benefício além de efeito placebo.

Nos campos da Copa também serão facilmente visíveis muitas das chamadas fitas de kinésio. Colados na pele dos atletas, estes acessórios, muitas vezes com cores brilhantes, supostamente ajudam a melhorar o desempenho e prevenir lesões, mas estudos e análises não encontraram diferenças significativas entre estas fitas e bandagens elásticas comuns usados há tempos por esportistas, e muito mais baratas.

 

Astrologia e adivinhação

 

Fora do gramado, a pseudociência aparece na forma de tentativas de prever os resultados da competição. Para além das apostas em bolões entre amigos, elas aparecem como curiosidades e entretenimento na cobertura do tornei pela mídia. É o caso, por exemplo, de matéria publicada no site da Folha de S.Paulo na semana passada, mais uma iteração da longa história de amor entre o jornalismo e a astrologia.

Partindo da pergunta “o hexa vem?”, o jornal traz uma análise do “mapa astral” da estreia da Seleção Brasileira na Copa nesta quinta-feira, 24 de novembro, às 16h, contra a Sérvia. Como era de se esperar devido à época do ano, ele traz o que a astróloga chama de um “stellium (acúmulo de planetas) na casa 7, no signo de sagitário: Sol, Lua, Vênus e Mercúrio” (ignoremos o fato de o Sol ser uma estrela, a e Lua um satélite...).

Segundo ela, esta concentração sugere “espírito de equipe” e “entusiasmo”, mas também traz o risco de “egos inflados, brilhantismos e síndrome de ‘o jogo está ganho’”, numa sequência de lugares comuns típica destes tipos de análise – afinal, estamos falando do torneio mais importante do mundo de um esporte coletivo, em que não devem faltar “espírito de equipe” e “entusiasmo” dos participantes, muitos deles estrelas do esporte mais popular do planeta, daí especialmente sujeitos a “egos inflados” ou “brilhantismo”.

Diante disso, a astróloga, claro, tergiversa e não responde à pergunta inicial. Depois de indicar que “os árbitros dos jogos serão os protagonistas e vão definir o jogo tanto quanto todo o time” nas partidas da seleção, mencionar uma certa “quadratura de Saturno e Urano” que pode trazer “surpresas, trocas, mudanças de planos, sustos e, pasmem, jogadas surpreendentes” e “retornos” de Saturno e Júpiter no mapa brasileiro, ele termina dizendo que “o Brasil tem chances de ganhar” (assim como qualquer outra das seleções favoritas da competição...), pois “se merecermos e fizermos um bom trabalho, os louros serão colhidos”.

Mas mesmo cientistas e instituições “sérias” acabam seduzidos pela adivinhação na Copa. Foi o caso de Joshua Bull, do Instituto de Matemática da venerável Universidade de Oxford, no Reino Unido. Especializado em modelagem, que geralmente aplica em pesquisas sobre câncer, ele explica em vídeo como criou um sistema que pudesse prever os resultados das partidas e, assim, do torneio. Após “rodar” o modelo 1 milhão de vezes para a fase de grupos e 100 mil para cada partida das fases de “mata-mata” (a partir das oitavas de final), ele chegou a uma boa notícia para nós brasileiros, e uma conclusão certamente mais corajosa que a da astróloga da Folha: o Brasil vai ser hexacampeão em uma final contra a Bélgica, após uma dura partida contra a tradicional rival Argentina na semifinal.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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