A proteína "S" não vai mexer no seu DNA

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24 jan 2022
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Em 4 de janeiro de 2022, o Ministério da Saúde organizou e promoveu a audiência pública sobre vacinação de crianças contra COVID-19. A audiência ofereceu plataforma para que militantes do movimento antivacinas praticassem todo tipo de distorção da evidência científica. Uma das apresentações, que tem circulado nas redes sociais e causado dúvidas na população, manipula resultados de estudos sérios e promove conclusões infundadas de pesquisas de baixa qualidade para vender a ideia de que as vacinas com tecnologia de mRNA (caso da Pfizer, aprovada para uso em crianças) poderiam causar danos ao DNA dos vacinados. Trata-se de uma ideia sem nenhuma base na realidade. Vamos ver porquê.

Um dos estudos enfatizados na apresentação tem como título SARS-CoV-2 Spike Impairs DNA Damage Repair and Inhibits V(D)J Recombination In Vitro. Este trabalho sugere que as proteínas spike (ou proteínas "S") do coronavírus poderiam impedir o reparo de eventuais danos causados ao DNA existente no núcleo celular. Consequentemente, poderiam atuar na resposta imune adaptativa (não se assuste com o jargão, vamos detalhar tudo daqui a pouco). Os autores também levantam a hipótese de que esse mesmo efeito poderia ser causado pelas proteínas spike produzidas após a vacinação com vacinas de mRNA (Pfizer e Moderna). Importante chamar atenção para o “in vitro” no título do estudo – que significa que os efeitos que os autores acreditam ter percebido foram detectados “em vidrinhos de laboratório”, não em organismo vivos. Já adianto que nada disso ocorre in pessoas. Se você já tomou sua vacina, seja ela qual for, mas principalmente a da Pfizer, o texto vai servir para deixá-lo menos preocupado, caso tenha se impactado com a fala do médico que, na audiência, tentou espalhar o terror falando de proteína spike, e ajudar a divulgar informação correta. Aos fatos, então.

 

 

Danos e reparos no DNA

Danos ao DNA podem acontecer de diversas formas, desde a exposição a materiais radioativos, raios ultravioleta vindos do Sol e, até mesmo, quando células do corpo humano estão se multiplicando naturalmente. Agora mesmo, tem um monte de lesão de DNA acontecendo em alguma célula sua. Seja o dano causado por agentes físicos ou químicos, a lesão no DNA pode causar problemas sérios, como o surgimento de câncer, caso o defeito não seja reparado e a célula passe a se multiplicar desenfreadamente.

Felizmente, temos um complexo sistema de reparo do DNA que é capaz não só de detectar onde os erros estão acontecendo, mas também de consertá-los muito rapidamente. Tudo isso é mediado por um conjunto enzimas que estão o tempo todo procurando sinais de danos e realizando o reparo. Em humanos, todo o processo ocorre no núcleo das células, que é onde o DNA está armazenado e bem protegido. O título do trabalho citado anteriormente, ao trazer a expressão “in vitro”, permite saber, logo de cara, que o estudo foi feito em cultura de células em laboratório. Não foi feito animais, também não acompanhou humanos infectados pelo SARS-CoV-2, ou que tenham recebido vacinas de mRNA.

A razão de realizar o tal estudo não fica clara, mas a ideia toda é a seguinte: os autores colocaram o gene que codifica para a proteína spike em um plasmídeo. Plasmídeos são moléculas de DNA circulares que, neste caso, são usadas para levar informação genética para o núcleo das células que servem de “cobaia” no teste. Com técnicas de biologia molecular é possível manipular esses plasmídeos e colocar a receita de uma infinidade de proteínas que será produzida no interior de células hospedeiras, como, por exemplo, a receita da proteína spike. Seria como infiltrar uma mensagem na linha de produção de um carro. A fábrica continuaria funcionando normalmente, mas passaria a produzir uma peça com a informação que chegou do espião infiltrado.

E aí já começamos a entender algumas das limitações do estudo. Primeiro, que eles utilizaram uma cultura de células de rim humano, e não células pulmonares, o que faria muito mais sentido biológico, quando falamos de SARS-CoV-2. Além disso, é importante ressaltar que o ensaio encontra-se totalmente fora do contexto biológico de uma infecção natural pelo vírus, ou de quando recebemos uma vacina de mRNA. Durante uma infecção viral, diversos aspectos da biologia da célula são completamente modificados, o que não acontece quando injetamos um plasmídeo nessas células.

Os autores também não dizem qual a quantidade de proteína spike produzida com o plasmídeo e não relacionam essa quantidade à presente numa infecção natural ou na vacinação, então não é possível saber se o efeito observado por eles é causado por um excesso de proteína spike específico do experimento. E a quantidade, no contexto biológico, é importante. Se você ingerir muito sal certamente suas células terão problemas, mas a ingestão de uma quantidade moderada é essencial. O certo seria controlar a produção da proteína spike – o que seria possível fazer, caso tivessem utilizado um plasmídeo adequado – e reportar a partir de que ponto observaram todos os efeitos relatados no estudo.

É importante entender também qual foi uma das formas que eles usaram para medir a suposta interferência da spike no reparo do DNA. Aí que está outro ponto muito questionável do estudo. Os autores não avaliaram o efeito da interferência da proteína S (como a spike também é chamada) diretamente no DNA da célula de rim humano. Eles colocaram um terceiro material genético dentro da célula, também na forma de plasmídeo, mas já com uma lesão no DNA. Esse material genético é especial, porque brilha! Mas só brilha quando está intacto, não quando está danificado. Portanto, o estudo mostra a atividade das enzimas de reparo de DNA não no material genético próprio das células de rim, mas em um DNA-alvo danificado e introduzido artificialmente.

Se antes o experimento já apresentava condições que o colocavam em outro planeta em relação ao que realmente acontece quando uma pessoa é infectada pelo vírus ou toma vacina, agora ele foi parar em outra galáxia.

 

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A outra maneira de medir o reparo foi induzir danos no DNA da célula com agentes químicos e físicos e depois verificar se eles tinham sido consertados. Mas não precisamos entrar em detalhes desta parte do experimento, tendo em vista que os autores deixaram as enzimas de reparo agirem por pouco tempo, e isso gera um viés enorme.

Já dá para perceber que o estudo não simula em nada uma infecção natural, nem o efeito da tecnologia mRNA usada em vacinas. Mas vamos em frente.

Resumindo, a sequência do experimento era a seguinte:

 

1. Cultivar células de rim humano em laboratório

2. Transferir o plasmídeo para a produção de proteína S

3. Transferir o plasmídeo lesado que brilhará caso seja reparado

 

Na condição controle, os autores apenas não realizaram o segundo passo, para mostrar que, na ausência da proteína S, o mecanismo de reparo não era afetado. Em células de rim. Usando plasmídeos, algo que nem o vírus, nem a vacina, utilizam. E nada de teste em animais ou humanos. Com isso, os pesquisadores mostraram que, nas situações em que a proteína S estava presente em grande quantidade, no núcleo das células, o reparo do DNA (do plasmídeo brilhante) era menos eficiente. Para determinar como a proteína spike inibiria as vias de reparo do DNA, os autores analisaram a interação da spike com as proteínas BRCA1 e 53BP1, que são duas importantes moléculas envolvidas neste processo. Funcionam como se fossem os primeiros trabalhadores que chegam para reparar uma estrada com buracos. Sinalizam o local para que os outros trabalhadores, que são responsáveis por de fato tapar o buraco, saibam onde o trabalho precisa ser feito. Mutações nessas proteínas, ou algo que impeça sua atividade, estão envolvidas no desenvolvimento de diversos tipos de câncer. No artigo, os autores apontam para um outro efeito que poderia prejudicar o sistema imune adaptativo e em que essas duas proteínas sinalizadoras estão envolvidas, as recombinações V(D)J. Essas recombinações são extremamente importantes na formação de células B e células T do sistema imune, que estão envolvidas na produção de anticorpos e no reconhecimento de antígenos, respectivamente. Antígenos são agentes – vírus, bactéria, molécula, pedaço de molécula – que chamam a atenção do sistema inume.

Os resultados sugerem que a proteína spike do SARS-CoV-2 inibiria o reparo de danos ao DNA dificultando a interação destas duas proteínas (BRCA1 e 53BP1) com o DNA danificado. Ou seja, a spike atuaria impedindo que os trabalhadores sinalizassem a estrada esburacada. Sem sinalização, as enzimas de reparo não sabem onde está o buraco. E você deve estar se perguntando o que tudo isso quer dizer, então? E a resposta é… NADA!

 

Fora de contexto

Já disse que o estudo foi feito em células de rim? Então, por isso é importante lembrar das aulas de biologia do colégio e recordar em qual local as células B e T são produzidas, que é na medula óssea. As células T ainda precisam migrar para o timo e amadurecer. Até o momento, foram reportados mais de 300 milhões de casos de COVID-19 em todo o mundo e nenhum estudo encontrou o vírus na medula óssea ou no timo. Nem evidência que ele infecta células B ou T. Os próprios autores do estudo reconhecem isso. Porém, isso não impediu que sugerissem cenários e eventos absurdos, na discussão e conclusão do trabalho.

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Perguntas interessantes deveriam ter sido feitas para os autores durante a revisão pelos pares. Por exemplo: por que células de rim? Ou o que aconteceria se o experimento desse às enzimas de reparo mais tempo para trabalhar? O reparo aconteceria? A proteína spike fica no núcleo por quanto tempo em quantidade suficiente para inibir o reparo? Qual a quantidade mínima para que a spike iniba o reparo? Ou ainda, as infecções naturais causam esse tanto de acúmulo de proteína S observado no trabalho de vocês? E em relação às vacinas, a proteína S é encontrada no núcleo das células após a vacinação? Nessa quantidade que vocês mostraram com o plasmídeo? Nada disso foi sequer abordado.

Em relação ao evento de recombinação V(D)J temos um cenário ainda mais complexo. Esse mecanismo produz células T e B que têm o potencial de reconhecer e produzir anticorpos contra antígenos que nunca vimos na vida ou que sequer existem na Terra, e que talvez nunca venham a existir. E faz isso o tempo todo, não só quando estamos infectados por algum patógeno.

Toda vez que células B ou células T “bebês” estão sendo formadas há uma quebra programada do DNA. É nesse passo que as proteínas sinalizadoras são importantes. Quando esse DNA é reparado, ocorre a formação de uma nova sequência de DNA, inédita, o que muda a receita do código em locais bem específicos, possibilitando a identificação de uma infinidade de antígenos pelas células T e a produção de uma outra infinidade de anticorpos pelas células B. Para exemplificar melhor os eventos de recombinação V(D)J, imagine que existam 1.000 células B e 1.000 células T recém-formadas e já maduras. Não são mais bebês. Estão em fila e pedimos para que mostrem suas mãos. Vamos perceber que a região do braço é constante e muito semelhante entre as células do mesmo grupo. Porém as mãozinhas das células são diferentes umas das outras. Elas não são modulares como as nossas mãos, com dedos que podemos mover de acordo com a forma do objeto que queremos segurar, ou identificar pelo tato. Elas são fixas, mas produzidas em posições diferentes por conta desse processo de quebra e reparo do DNA, que gera uma nova receita para mãozinhas exclusivas para cada célula.

Então, observamos que numa célula os “dedos” estão travados num  “C”, na outra fazem um “V”, em outra, um chifrinho de rock’n roll e a última da fila está fazendo uma saudação vulcana. Mas nenhuma está fazendo arminha, é importante dizer. Pode acontecer, mas não no nosso exemplo.

Esse é o motivo de algumas pessoas já terem anticorpos contra a spike do SARS-CoV-2 e de o sistema imune ser capaz de detectar o vírus, mesmo sem tê-lo encontrado antes. Se algum ser extraterrestre trouxer algum vírus desconhecido da raça humana para a Terra, é provável que muitas pessoas tenham anticorpos e células que reconheçam esse vírus também, por pura sorte.

Como já mencionado, todo esse processo ocorre na medula óssea ou no timo. Não há evidências que a infecção natural ou as proteínas spike produzidas pelas vacinas cheguem a esses locais. Além disso, a maior parte da recombinação e reparo V(D)J ocorreu antes da exposição ao vírus, e portanto a supressão da recombinação teria poucas consequências práticas, mesmo que a proteína S chegasse a entrar nessas células por algum outro mecanismo ainda desconhecido.

O que é lamentável no artigo é a conclusão e a discussão apresentadas logo no último parágrafo do resumo: “Nossas descobertas revelam um potencial mecanismo molecular pelo qual a proteína spike pode impedir a imunidade adaptativa, e ressalta os potenciais efeitos colaterais das vacinas baseadas em proteína spike”.

Essa frase virou um mantra para grupos antivacinas e médicos que sabem muito pouco sobre biologia molecular e sistema imune.

Quando você é infectado ou vacinado, células T e células B continuam sendo produzidas. Consequentemente, anticorpos também são produzidos. Não há nenhuma evidência que mostre um impedimento da produção de anticorpos em nenhum caso, seja por vacinação ou por infecção natural. Portanto, a justificativa do estudo é infundada e as conclusões não fazem nenhum sentido biológico quando confrontadas ao que estamos observando e vivendo já há dois anos.

Experimentos in vitro são um excelente ponto de partida, quando bem-feitos, mas as conclusões têm que ser extremamente cautelosas, ainda mais quando se busca imaginar o que permitem dizer a respeito do que acontece em seres vivos. E nenhum pesquisador sério escreveria uma barbaridade destas, com base num estudo destes, no resumo ou na conclusão.

Mas esse grupo de pesquisadores fez. E o que é ainda pior, os revisores do artigo deixaram passar e o editor aceitou publicar uma bobagem dessas.

Se escrevo uma besteira desse tamanho para a Revista Questão de Ciência o Carlos Orsi, editor-chefe, me coloca no cantinho da vergonha. Infelizmente o estrago que um artigo desse faz é muito pior do que apenas a constatação de que os autores são ruins e que o periódico Viruses tem um processo de revisão pelos pares, no mínimo, medíocre. O artigo já foi lido por mais de 670 mil pessoas e é utilizado por médicos e grupos antivacinas que leram apenas a interpretação dos resultados em algum buraco da internet.

A relevância biológica do artigo é zero. As conclusões precisam ser sustentadas pelos dados, isso é básico na ciência e, neste caso, não são.

Esse é o nível dos argumentos que foram parar no debate promovido pelo Ministério da Saúde. O médico que, ali, fez alarde com esse estudo ainda apontou conclusões que nem mesmo os autores ousaram tirar. O trabalho não fala nada sobre proteína spike estar envolvida em processos de carcinogênese, mas, mesmo assim, diante de milhares de pessoas, o médico fez tal afirmação. Se a intenção não é causar pânico infundado e contribuir para a morte de crianças que poderiam ser salvas se vacinadas, estes, de qualquer maneira, são os efeitos esperados.

O artigo científico em si só serve como lição de como não fazer um estudo.

Por fim, o artigo recebeu um alerta de preocupação. É o primeiro passo para a retratação – isto é, a exclusão do rol de pesquisas científicas válidas. Um dos autores relatou que tem preocupações sérias sobre:

1. A metodologia empregada no estudo

2. As conclusões

3. Consideração insuficiente da equipe e dos recursos do laboratório

 

Não sei ao certo o que este último ponto significa. Talvez nem o autor.

 

Luiz Gustavo de Almeida é doutor em microbiologia e atual coordenador nacional do Pint of Science no Brasil

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