O universo da chamada “medicina alternativa” é pleno de alegações inverossímeis para efeitos extraordinários. Na homeopatia, por exemplo, substâncias diluídas ao extremo de inexistirem nas soluções resultantes ainda assim seriam capazes de tratar todo tipo de condição, de soluços a câncer. Não é raro, porém, que estas argumentações encontrem pontos em comum e se misturem, com uma justificativa pseudocientífica apoiando outra, num frágil castelo de cartas que desaba ao menor escrutínio.
É o caso da “terapia neural”, abordagem do subtipo “holística” que une princípios de fisiologia e biofísica e procedimentos comuns na medicina convencional a conceitos de “energia vital” típicos de orientalismos – como o “qi” chinês - para dizer que todas doenças, em especial as crônicas, são provocadas por perturbações no fluxo desta energia que, claro, podem ser sanadas por meio das técnicas por ela utilizadas. Técnicas que, resumidamente, consistem de injeções em regiões e tecidos variados do corpo em que haveria “bloqueios” deste fluxo de energia, atrapalhando o funcionamento do sistema nervoso autônomo. Qualquer semelhança com acupuntura, quiropraxia, terapias magnéticas, Reiki ou outras práticas envolvendo alguma forma sobrenatural de “bioenergia” não é mera coincidência.
Antes de prosseguirmos, porém, um alerta. Um primeiro problema da terapia neural é que seu nome suscita confusão com linhas de pesquisa legítimas na medicina convencional. Elas incluem, por exemplo, o uso de células-tronco na regeneração de nervos lesionados - alvo de experimentos com pessoas paralisadas devido a acidentes, e que tiveram entre seus principais defensores o ator americano Christopher Reeve (1952-2004), que interpretou o Super-Homem nos anos 1980 - e tratamentos em desenvolvimento para doenças neurodegenerativas, como o Mal de Alzheimer e Parkinson.
Assim, uma busca por “neural therapy” ou “terapia neural” em bases de dados científicas como a MedLine retorna milhares de estudos nestas e outras áreas, dificultando a localização, identificação e verificação de pesquisas relativas especificamente à prática alternativa, da qual trata este artigo. Desenvolvida inicialmente na Alemanha, onde é a prática complementar mais aplicada por profissionais de saúde, com ou sem formação médica, esta, que passará a ser referida apenas como "terapia neural", ainda é pouco conhecida fora de alguns países da Europa Central e América hispânica, de onde começou a se infiltrar no Brasil.
História confusa
A própria história do desenvolvimento da terapia neural também é um tanto confusa e obscura. Ela começa em meados dos anos 1920, com o médico alemão Ferdinand Huneke (1891-1966) e seu irmão Walter (?-?). De acordo com os relatos disponíveis, uma irmã da dupla sofria com fortes enxaquecas. Ferdinand um dia, por engano, administrou nela, por via intravenosa, uma injeção de procaína, anestésico local desenvolvido não muito tempo antes com indicação de aplicação intramuscular. Para surpresa dele, as dores de cabeça da irmã desapareceram, bem como sua depressão e outros sintomas físicos e mentais, fenômeno que os irmãos creditaram à procaína.
Daí a dupla começou a explorar uma possível ação sistêmica do anestésico, supostamente tratando diversos pacientes que sofriam com condições diversas, numa abordagem conhecida como terapia segmental. Neste tipo de prática, tomaram por base o trabalho do neurologista britânico Henry Head (1861-1940), que entre o fim do século 19 e começo do século 20 foi um dos pioneiros no estudo do sistema somatossensorial, tendo associado a sensibilidade excessiva e dor em algumas regiões da pele a doenças viscerais, isto é, nos órgãos internos, no que ficaram conhecidas como “zonas de Head”.
Este tipo de associação acabou sendo usado para dar uma aura científica a toda uma gama de terapias alternativas que têm em comum o princípio da reflexologia, segundo qual uma ação em determinados pontos do corpo é capaz de tratar e curar órgãos ou outras estruturas e tecidos distantes. Este tipo de crença está na base de um sem-número de práticas pseudocientíficas que têm como ponto de partida em geral mãos, pés ou orelhas, mas também outras partes do corpo, que recebem nomes como “chakras”, “meridianos”, etc., e nas quais são aplicadas desde só a pressão dos dedos a agulhas, ventosas, choques elétricos, etc. Como descreve Peter Dosch (1915-2005), médico alemão discípulo dos irmãos Heneke no principal manual sobre a prática da terapia neural, de sua autoria:
“Os irmãos Huneke deixaram claro para nós que a ação curativa da fisioterapia, balneoterapia, e outras terapias de ação periférica como acupuntura, vacinações Ponndorf, massagens e todas terapias de estimulação dermal ou tonal, incluindo Kneipp, ondas curtas, ultrassom, e terapia radiográfica, e mesmo os efeitos da quiropraxia, são de última forma baseadas em um mesmo princípio comum. Todas elas fazem uso das vias reflexivas do sistema neurovegetativo ao produzirem um estímulo terapêutico no sistema nervoso, cuja resposta a este estímulo libera uma reação curativa. Vistas sob esta luz, todas estas terapias podem também ser consideradas ‘terapia neural’ em um sentido mais amplo”. (Tradução própria, a partir do texto em inglês)
Mas foi só nos anos 1940 que os irmãos Huneke teriam feito a outra “descoberta” que se tornou pedra de toque da sua prática. Segundo um relato, então Ferdinand foi procurado por uma mulher que se queixava de dores no ombro direito, resultado de uma artrite capsular. Na época, o tratamento envolvia a retirada de qualquer estrutura que pudesse estar alimentando a inflamação, o que fez com que ela tivesse todos os dentes e amígdalas removidas. Apesar disso, a paciente não apresentou melhora, o que fez os médicos especularem que a fonte estaria na região de uma antiga osteomielite em sua perna esquerda, e considerassem a amputação.
De início, Ferdinand tentou tratá-la injetando anestésicos no ombro afetado e seu entorno, sem sucesso. Algumas semanas depois, porém, ela retornou ao seu consultório, indicando que a região da cicatriz de sua antiga osteomielite havia ficado irritada e inchada, quase a impedindo de andar. Ele então injetou os anestésicos diretamente na cicatriz na perna da mulher, o que, de acordo com seu relato, fez a dor no ombro passar imediatamente, bem como curou os problemas no local. Esta teria sido sua primeira observação do que ficou conhecido na prática como “fenômeno em segundos” (Sekundenphaenomen, no original em alemão) ou “reação relâmpago”. Em busca de uma explicação, Huneke teorizou que o fenômeno seria originário de sua ação em pontos de bloqueio no fluxo de energia no corpo que chamou de “campos de interferência” (Störfelder, também no original em alemão), nos quais haveria uma redução (normalmente) ou aumento (menos frequente) do potencial elétrico da membrana das células e/ou da temperatura locais.
Assim, de acordo com os adeptos da terapia neural, não só qualquer doença pode ser creditada a um conjunto de “campos de interferência”, como por ser tratada pela injeção de anestésicos nestes locais. Estes locais, por sua vez, podem estar em qualquer parte no corpo, mas geralmente aparecem em pontos de traumas físicos anteriores, como cicatrizes e antigas fraturas, embora também possam ser fruto de traumas emocionais, concomitantes ou não a ferimentos físicos, e se manifestarem em dentes, órgãos internos, gânglios e os mais variados tecidos.
Falta de evidências
Como acontece com muitas práticas de “medicina alternativa”, a terapia neural tem muitas alegações de sucesso no tratamento dos mais diversos tipos de doenças, mas poucos - na verdade, praticamente nenhum – estudos científicos independentes e de qualidade que mostrem sua eficácia para qualquer condição. Assim, em grande parte os estudos existentes, citados e referenciados pelos adeptos da terapia neural para convencer potenciais pacientes, seguem à risca o roteiro básico de outros tratamentos pseudocientíficos, da aromaterapia com óleos essenciais à homeopatia: metodologias falhas e incapazes de estabelecer uma relação causa-efeito no experimento realizado; viés confirmatório, isto é, realizados com o muitas vezes declarado intuito de “provar” que tratamento funciona, e não submetê-lo à prova; e publicados basicamente só em periódicos de baixa qualidade, dedicados justamente à “medicina alternativa”, “práticas complementares” e áreas de “conhecimento” correlatas.
Mas mesmo quando os estudos procuram evitar algumas destas armadilhas, assumindo aparente forma de estudos clínicos controlados ou ensaios duplo-cegos com placebo, padrão ouro nas pesquisas de novos tratamentos e medicamentos, estes problemas aparecem. É o caso, por exemplo, de muito citado artigo de uso da terapia neural no tratamento da esclerose múltipla, publicado em 1999 no “The Journal of Alternative and Complementary Medicine” (nenhuma surpresa aí). Sem randomização dos pacientes, dos quais apenas uma amostra muito pequena (21) teria tomado parte do ensaio duplo-cego; e com critérios de desfecho subjetivos, baseados em escalas de incapacitação, e não em indicadores clínicos objetivos, ainda assim seus autores afirmam que a prática é eficaz e traz benefícios, tanto de curto quanto longo prazo, às vítimas da doença, que até hoje carece de uma cura comprovada e conta apenas com tratamentos protelatórios ou sintomáticos. Assim, também nenhuma surpresa que até hoje não haja qualquer indicação de replicação, ou mesmo tentativa de replicação, de tais resultados.
Pior é quando mesmo os estudos citados pelos adeptos da terapia neural sequer reconheçam sua eficácia. Em outra pesquisa sob disfarce de um suposto ensaio clínico duplo-cego, um grupo de pesquisadores no Canadá avaliou a eficácia de um conjunto de práticas alternativas, entre elas a terapia neural, no tratamento de dor crônica resultante de herpes zoster. Publicado em 2012 no periódico “Alternative Medicine Review” (mais uma vez, nenhuma surpresa aí), o estudo afirma que os recipientes do conjunto de terapias – que, no final, foram todos os pacientes participantes – relataram uma redução nos níveis de dor segundo escala pré-estabelecida. Ou seja, mais uma pesquisa sem randomização adequada, com critérios de desfecho subjetivos e, ainda mais, autorreportados, o que aumenta o risco de viés.
Mas para além de impossibilitar qualquer tentativa de análise do papel específico da terapia neural nos resultados "positivos" altamente suspeitos, o estudo claramente menospreza esse suposto efeito, quando os autores, em sua discussão, afirmaram textualmente:
“A contribuição de cada um dos cinco tratamentos é desconhecida. A experiência clínica ganha no período pós-ensaio nos leva a especular que a ventosaterapia com sangria pode ser o elemento terapêutico mais essencial… A terapia neural, embora usada estritamente como anestesia local e sem a pretensão de ser parte da terapia em si, é parte necessária do protocolo para facilitar a ventosaterapia com sangria”.
Conclusão: uma injeção de analgésico, por óbvio, alivia momentaneamente a dor local, mas não há evidências de que possa ter alguma ação sistêmica de longo prazo. Até o momento, não existem estudos que mostrem que a terapia neural seja eficaz no tratamento de qualquer condição, tampouco indicações de plausibilidade física ou biológica de seus alegados mecanismos de ação, o que a coloca no rol de prática no mínimo questionável, se não completamente pseudocientífica.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência