As oitivas da CPI da Pandemia [i] foram palco de diversos discursos negacionistas de alguns depoentes e senadores da base governista. Ao mesmo tempo, acompanhar a CPI também tem sido uma oportunidade para desmascarar o negacionismo e discutir algumas características importantes da ciência. Neste artigo, serão abordados exemplos concretos de falas sobre o chamado “tratamento precoce” da COVID-19.
Ninguém assume a criança
Apesar das políticas públicas e da campanha explícita em favor do “tratamento precoce” serem de conhecimento público, é importante destacar que ninguém ligado ao Ministério da Saúde assumiu essa responsabilidade nos depoimentos. Ao ser indagado sobre o tema, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello reagiu da seguinte forma:
RENAN CALHEIROS – Então o Ministério da Saúde, sob sua orientação, orientou e recomendou o uso da cloroquina (...)
EDUARDO PAZUELLO – Não, senhor. Eu não recomendei o uso da hidroxicloroquina nenhuma vez.
RENAN CALHEIROS – E a nota informativa?
EDUARDO PAZUELLO – Ela não recomenda. Ela não recomenda. Ela faz um alerta. Ela apenas orienta doses seguras caso o médico prescreva. Isso não é uma recomendação por protocolo. [ii]
A mesma linha foi seguida pelo ex-secretário executivo Antônio Elcio Franco Filho, e pela secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Mayra Pinheiro. Já o atual ministro da saúde, Marcelo Queiroga, optou por não se posicionar em relação à ineficácia do “tratamento precoce” [iii].
A pseudocontrovérsia
Embora a ineficácia do tratamento precoce seja um consenso científico desde meados de 2020 [iv], por diversas vezes na CPI o senador Eduardo Girão tentou construir uma falsa controvérsia sobre a questão. Em diálogo com o senador, Natalia Pasternak explica por que o argumento dele não se aplica à ciência:
EDUARDO GIRÃO - Eu só tenho trazido aqui hoje alguns argumentos de médicos e pesquisadores que, infelizmente, não têm tido oportunidade de serem ouvidos, como eu disse aqui no início; cientistas que têm posições divergentes, diametralmente divergentes – e são muitos. E, pelo princípio do jornalismo, a gente tem que ouvir sempre os dois lados (...)
NATALIA PASTERNAK – Em relação ao que foi falado pelo senador Girão sobre os dois lados no jornalismo e o princípio do contraditório, é importante salientar que esses princípios do jornalismo – e da política também – de sempre observar o contraditório, eles não se aplicam para a ciência, porque a ciência é um processo investigativo dos fatos, da realidade, e daí não cabe o contraditório. A ciência não tem dois lados. E isso não é por desrespeitar opiniões alheias, mas pelo modo como a ciência trabalha, que é um processo empírico de investigação. Então, quando a gente fala que existem consensos científicos, eles são consensos. Um consenso científico como, por exemplo, de que o aquecimento global é real e é causado pelo homem, é um consenso científico. Podem até existir cientistas que contestem isso, mas, para que esse consenso seja derrubado, as evidências em contrário precisam ser muito robustas, precisam ser evidências extraordinárias. Como já dizia Carl Sagan, alegações extraordinárias precisam de evidências extraordinárias, senão continua valendo o consenso científico. [v]
Em outro diálogo com o mesmo senador, a Dra. Luana Araújo [vi] fala sobre a convergência das principais entidades científicas do mundo:
Isso posto, se o senhor não quiser levar a OMS em consideração, é de direito, mas, aí, a gente vai precisar ignorar o NIH, que é o serviço de saúde britânico; a gente vai precisar ignorar o CDC, que é o Centro de Controle e Prevenção de Doenças; a gente vai precisar ignorar a FDA, que é a agência americana de alimentos e drogas; a EMA, que é a agência europeia de medicações; e a IDSA, que é a Sociedade Americana de Doenças Infecciosas, porque todas, todas essas instituições, têm exatamente a mesma posição sobre o tratamento precoce. [vii]
A qualidade das evidências
Em um episódio marcante da CPI, quando o senador Alessandro Vieira pediu que a Dra. Nise Yamaguchi [viii] indicasse uma única publicação científica de alta qualidade em favor do “tratamento precoce”, ela gastou um longo tempo folheando uma grande pilha de papéis [ix]. Em um vídeo da secretária Mayra Araújo com o pesquisador Regis Andriolo, em uma espécie de treinamento para o depoimento da secretária, a famosa pilha de papéis foi mencionada:
Eu imprimi 2400 páginas de evidência mas eu sei que dentre essas que eu imprimi boa parte, se a gente for analisar, pode ter os mesmos conflitos que o senhor acabou de falar aqui, questões de metodologia inadequada, então o que eu levo para provar que nós estamos no caminho certo e que existe sim evidência? [x]
No mesmo treinamento, Mayra pede que Regis elabore algumas perguntas para serem repassadas para alguns senadores membros da CPI.
A saída dos negacionistas
Se os negacionistas não se consideram negacionistas, como eles justificam o desprezo pelas evidências mais robustas? Para o senador Luis Carlos Heinze, a explicação está em uma conspiração promovida pela Big Pharma:
Esses médicos estão usando esse tratamento aqui. São dezenas, milhares de médicos que estão fazendo esse tratamento no Brasil e estão achando resultados positivos. E o caso da Aids? O cara não procurava Aids. Usou um remédio de câncer, e hoje está curando a Aids. Estão usando isso aqui e está dando resultado. Então, a Big Pharma, senhoras e senhores, a Big Pharma está norteando isso aqui. Um mercado bilionário, trilionário de vacinas está norteando isso aqui e assassinando reputações. [xi]
Uma triste conclusão
Em condições normais, o negacionismo provoca danos no entendimento e no respeito do público pela ciência. No contexto de uma pandemia como a da COVID-19, como resume Natalia Pasternak, a situação é ainda mais grave:
Isso é negacionismo, senhores. Isso não é falta de informação. Negar a ciência e usar esse negacionismo em políticas públicas não é falta de informação, é uma mentira e, no caso triste do Brasil, é uma mentira orquestrada, orquestrada pelo governo federal e pelo Ministério da Saúde. E essa mentira mata, porque ela leva pessoas a comportamentos irracionais, que não são baseados em ciência. Isso não é só para a cloroquina. A cloroquina aqui é apenas um exemplo. Isso serve para o uso de máscaras, isso serve para o distanciamento social, isso serve para a compra de vacinas que não foi feita em tempo para proteger a nossa população. Esse negacionismo da ciência perpetuado pelo próprio governo mata. [xii]
Leonardo Gabriel Diniz é professor do Departamento de Física do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais
NOTAS
[i] Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar as ações e omissões governamentais no enfrentamento da pandemia da COVID-19.
[ii] Notas taquigráficas, CPI da Pandemia, 10ª reunião, 19/05/2021. Disponível em:
<https://www25.senado.leg.br/web/atividade/notas-taquigraficas/-/notas/r/9996>.
[iii] Ele argumentou que, na qualidade de ministro, não poderia se posicionar até que a Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS) analisasse a questão.
[iv] Natalia Pasternak e Carlos Orsi (2021). Disponível em:
[v] Notas taquigráficas, CPI da Pandemia, 19ª reunião, 11/06/2021. Disponível em:
<https://www25.senado.leg.br/web/atividade/notas-taquigraficas/-/notas/r/10033>.
[vi] Nome indicado pelo ministro Marcelo Queiroga para assumir a Secretaria de Enfrentamento à COVID-19 do Ministério da Saúde. Apesar da indicação, sua nomeação foi barrada.
[vii] Notas taquigráficas, CPI da Pandemia, 15ª reunião, 02/06/2021. Disponível em:
<https://www25.senado.leg.br/web/atividade/notas-taquigraficas/-/notas/r/10022>.
[viii] Médica defensora do tratamento precoce e suspeita de compor um gabinete paralelo que auxiliou o governo nas ações de enfrentamento à pandemia.
[ix] A cena descrita pode ser visualizada no canal do YouTube da TV Senado. Disponível em:
<https://youtu.be/NHpZA7n3yic>.
[x] O treinamento secreto de Mayra Pinheiro, a Capitã Cloroquina. The Intercept Brasil. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=ED3ileeMcyc&t=505s>.
[xi] Notas taquigráficas, CPI da Pandemia, 15ª reunião, 04/05/2021. Disponível em:
<https://www25.senado.leg.br/web/atividade/notas-taquigraficas/-/notas/r/9972>.
[xii] Notas taquigráficas, CPI da Pandemia, 19ª reunião, 11/06/2021. Disponível em:
<https://www25.senado.leg.br/web/atividade/notas-taquigraficas/-/notas/r/10033>.