Evolução, DNA, comportamento: uma relação complicada

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5 ago 2021
gorila verde

 

São os fatores genéticos ou ambientais que mais influenciam o comportamento humano? Os traços herdados ou as experiências de vida: quem desempenha um papel mais importante na formação de sua personalidade? O debate natureza versus criação é antigo, multidisciplinar e centrado nas contribuições relativas da herança genética e dos fatores ambientais para o desenvolvimento humano. Alguns filósofos, como Platão e Descartes, sugeriram que certas características são inatas — isto é, manifestam-se independentemente das influências ambientais. Os nativistas assumem a posição extrema de que a herança genética é a influência predominante sobre todos, ou a maioria, dos comportamentos e características.

Outros filósofos, como Aristóteles, acreditavam no que ficou conhecido como “tábula rasa”, o que sugere que a mente começa como uma lousa em branco. De acordo com essa noção, tudo o que somos e todo o nosso conhecimento é determinado pela experiência: todos, ou a maioria, dos comportamentos resultam do aprendizado. Empiristas extremos acreditavam que as pessoas podiam ser treinadas para fazer e se tornar qualquer coisa, independentemente de sua genética.

Afinal, o que tem mais relevância na formação do comportamento? O que herdamos geneticamente ou a maneira como fomos criados? A resposta clássica para essa questão tão crucial se resume a uma única palavra: depende. Sendo menos simplistas, vamos elaborar um pouco melhor, ainda que fiquemos longe da profundidade que o tema merece.

 

 

Epigênese e preformismo

Duas hipóteses deram o pontapé inicial para as ideias que tentam explicar o comportamento humano. A epigênese, nome dado à hipótese elaborada pelo filósofo grego Aristóteles (384-322 AEC), propõe que o organismo se desenvolve gradualmente, a partir de uma massa amorfa. Aristóteles propôs a teoria a partir de suas observações em embriões de galinhas. Já o preformismo propunha que todas as formas já existiam, predefinidas – por exemplo, o espermatozoide carregaria uma versão em miniatura do animal que viria a se formar.

No caso de humanos, este pequeno ser foi denominado homúnculo. O desenvolvimento de um embrião seria apenas o homúnculo crescendo e todas as características do ser já estariam definidas desde a concepção

Hoje sabemos que a epigênese se aproximou muito mais do que de fato acontece. O espermatozoide e o óvulo unidos formam o zigoto, que é uma célula muito diferente do que nos tornamos, e novas estruturas vão sendo formadas progressivamente. Também sabemos que não existe nenhum homúnculo no esperma. Porém, um aspecto da ideia por trás do preformismo ainda prevaleceu por muito tempo.

Claro, o mecanismo não é o mesmo, nada de homúnculo. Mas e o comportamento humano? Será que toda a informação armazenada no material genético, no momento em que o zigoto é formado, já não basta para explicar tudo sobre o ser humano? O genoma seria um manual de instrução, e já nasceríamos predestinados a nos comportar de maneira previsível. E caso isso for verdade, um computador suficientemente sofisticado seria capaz de interpretar, prever e computar todas as interações entre os produtos dos genes e estimar como seriam as características físicas, fisiológicas e comportamentais da pessoa que ainda vai nascer.

Ou será que, como prega a teoria da tábula rasa, ideia também defendida por Aristóteles, nascemos como uma tela em branco? Desta forma, precisamos apenas controlar o ambiente familiar e a educação para produzir um novo Pelé ou uma nova Marie Curie. Eis que surge o debate entre o inato versus o aprendido.

 

Inato e aprendido

A oposição entre os conceitos de “natureza” e “educação” é antiga, e aparece já no diálogo platônico Protágoras, onde Sócrates (470-399 AEC) discute se uma pessoa pode aprender a ser virtuosa. William Shakespeare (1564-1616), em sua peça “A Tempestade”, faz um personagem referir-se a outro como “um demônio inato/em cuja natureza a educação não pega”. A dicotomia, como problema científico, foi popularizada por Francis Galton (1822-1911), o fundador moderno da eugenia e da genética comportamental, ao discutir a influência da hereditariedade e do ambiente no avanço social.

Hoje, o debate já superou a defesa dos extremos. A maioria dos especialistas acredita que tanto a natureza (o inato) quanto a criação (o aprendido) influenciam o comportamento e o desenvolvimento do ser humano. Como veremos a seguir, dependendo do autor a balança tende a pender mais para um lado do que para o outro.

O inato se refere a todos os genes e fatores hereditários que influenciam quem somos – desde características físicas, como, por exemplo, a cor dos olhos, até características cognitivas, como inteligência. Aprendido se refere a todas as variáveis ambientais que impactam quem somos, incluindo nossas experiências na primeira infância, como fomos criados, nossas relações sociais e a cultura circundante.

Como representantes modernos das linhas de pensamento temos de um lado a sociobiologia, fundada pelo biólogo e naturalista Edward Osborne (E.O.) Wilson. Wilson usou a sociobiologia e os princípios evolutivos para explicar o comportamento dos insetos sociais (como formigas) e, em seguida, para entender o comportamento social de outros animais, incluindo os humanos, estabelecendo assim a sociobiologia como um novo campo científico.

Em seu livro “Sociobiology: The New Synthesis”, publicado em junho de 1975, Wilson argumentou que todo comportamento animal, incluindo o dos humanos, é produto da hereditariedade, estímulos ambientais e experiências passadas, e que a mente humana é moldada tanto pela herança genética quanto pela cultura, mas com uma influência maior da primeira. Wilson sugere em um dos capítulos do livro que há limites para o peso que fatores sociais e ambientais podem ter sobre o comportamento humano e, em uma previsão controversa, sugeriu que a sociologia e outras áreas de humanas em breve seriam todas substituídas pela biologia evolutiva.

A ideia básica de aplicar regras de evolução darwiniana para explicar o comportamento de outros animais é bastante difundida e aceita. Os atributos utilizados pela sociobiologia para explicar o comportamento dos animais são:

 

Herdabilidade de características comportamentais – por exemplo, fêmeas de diversas aves herdam a tendência de escolher machos que tenham as penas mais vistosas para acasalar.

Gradualismo – o processo de mudanças evolutivas acontece em incrementos graduais e lineares ao longo do tempo, não em saltos.

Adaptacionismo – tudo o que surge pela evolução tem que ter alguma explicação adaptativa, “servir para alguma coisa”, um motivo para que tal característica fosse selecionada e mantida.

 

 

E são exatamente estes pontos da sociobiologia que são contestados por cientistas de outras áreas.

Algumas hipóteses sociobiológicas são formuladas apenas a partir do pressuposto de que determinado comportamento “só” poderia ser explicado caso houvesse um fator genético muito forte favorecendo o sucesso reprodutivo de seus portadores. Mas esse pressuposto é dado axiomaticamente, a priori, sem apoio em nenhuma evidência corroborativa concreta para o caso específico.

Por exemplo, para explicar se o comportamento das aves fêmeas em escolher machos mais coloridos tem um componente genético, sociobiólogos deduzem que tal comportamento tem que ser herdável, ou seja, está nos genes. Logo, se o comportamento for mais adaptativo (isto é, ajudar quem o manifesta a ter mais filhotes que sobrevivem até a idade reprodutiva), a frequência com que os genes aparecem na população aumentará, e isso explicaria como o comportamento tornou-se dominante.

Em toda essa cadeia de raciocínio, fica faltando, porém, um pequeno detalhe: onde estão os genes responsáveis exclusivamente pelo tal comportamento, e quais são eles? Portanto, diversas hipóteses do campo sustentam-se mais em elucubrações do que em evidências testáveis. Em outras palavras, muitas hipóteses da sociobiologia “fazem sentido”, mas “fazer sentido” não basta em ciência: contos mitológicos também têm coerência narrativa, afinal.

Contrário ao gradualismo temos evidências de espécies que permaneceram sem qualquer tipo de mudança, inclusive no genoma, por milhões de anos, como é o caso de uma espécie de samambaia que se mantém inalterada há 180 milhões de anos. Há inclusive a hipótese de que longos períodos de estabilidade evolutiva são seguidos por mudanças drásticas em um curto período, para então voltar a ter uma longa estabilidade.

Por fim, para contestar o adaptacionismo, vamos olhar as ideias de um biólogo que chacoalhou a sociobiologia.

 

 

Richard Lewontin

O próximo ponto da sociobiologia a receber críticas substanciais é o adaptacionismo, brilhantemente questionado pelo matemático e biólogo evolucionista Richard Lewontin (1929-2021), que faleceu recentemente, em 4 de julho. Lewontin criticava duramente os colegas que inventavam teorias apetitosas para explicar o comportamento de animais e que extrapolavam as conclusões para explicar o mesmo comportamento em humanos. Por exemplo, gorilas apresentam o comportamento de infanticídio, logo deve ter um gene (ou conjunto de genes) responsável por explicá-lo. Portanto, humanos que cometem infanticídio devem fazê-lo por culpa, em parte, dos genes. Para Lewontin, nem todo comportamento ou característica de uma espécie é adaptativo. E a crítica vem exatamente bater em cima das narrativas, sem evidências experimentais, elaboradas para explicar como e por que isso ou aquilo seria adaptativo.

Em conjunto com Stephen Jay Gould (1941-2020), Lewontin elaborou uma analogia para explicar a manutenção, através das gerações, de características que não têm função específica, e que simplesmente “pegam carona” em outras características, essas sim selecionadas: as enjuntas.

Em arquitetura, a enjunta é o espaço triangular situado entre dois arcos e que não tem função nenhuma na sustentação do arco. Simplesmente estão lá para preencher o espaço e, às vezes, recebem alguma decoração, como uma pintura ou escultura.

enjunta

Um exemplo de enjunta em seres humanos é o queixo. Somos os únicos primatas com queixos e diversas hipóteses folclóricas tentaram explicar por que temos queixos e qual seria a função adaptativa do queixo. O que melhor explica é que em algum momento houve uma seleção na nossa espécie que favoreceu indivíduos com um focinho menor. Então pela seleção de outra característica, o queixo ficou ali, como uma enjunta. Como bem disse o biólogo francês François Jacob, “a evolução não é um inventor, evolução é um funileiro”. Evolução não trabalha para otimizar toda e qualquer característica.

Grande parte do pensamento da sociobiologia se baseia na ideia de competição. Toda e qualquer vantagem que surgir em uma população vai aumentar o número de descendentes dos que a possuem, uma dianteira que só poderá ser reduzida ou ampliada por mais adaptação. Toda cooperação, nesse enfoque, é apenas momentânea e egoísta, visando apenas o bem do indivíduo e de seus parentes próximos. Para Lewontin, explicar toda a complexidade do comportamento humano por reducionismo genético representava uma forma de validar e sustentar o argumento da predestinação das pessoas, e de que a desigualdade social é um produto biológico natural e, portanto, impossível de combater.

Lewontin também criticava a ideia de analisar separadamente gene, organismo e ambiente. Em seu livro “A Tripla Hélice: Gene, Organismo e Ambiente”, discorre exatamente sobre isso e questiona inclusive a ideia de aptidão. Em inglês o termo é “fitness”, derivado da palavra “fit”, que significa se encaixar, ajustar, acomodar. Portanto, um organismo só teria sucesso caso se encaixasse em algum buraco no ambiente, com a forma exata do próprio organismo.

Para Lewontin, não existia organismo sem ambiente e, também, não existia ambiente sem organismo. Propõe até que deveríamos abolir a ideia de preservar o ambiente, no sentido de não provocar alterações. Na verdade, o que deveríamos pensar, como seres humanos, seria como modificar o ambiente de forma sustentável para as próximas gerações.

gorila yellow

Em seu trabalho sobre raças humanas, Lewontin mostrou que existe uma variabilidade genética extremamente alta entre indivíduos de uma mesma raça, mas que, contrariando o que era senso comum, a diferença genética entre indivíduos de raças distintas não era muito maior. Com isso Lewontin levanta a tese da rejeição completa do conceito de raça, por ausência de significado biológico: seria uma construção social destrutiva das relações humanas.

 

Política

Podemos observar que as duas linhas de pensamento, com ênfase no inato ou na criação, também têm motivações políticas quando o assunto é o comportamento humano. A política e interesses de classe não entram no debate quando discutimos por que alguns gorilas praticam infanticídio. Porém, quando se trata de humanos e a pergunta é se ter famílias chefiadas por machos dominantes é “natural”, “genético” ou “adaptativo”, as duas linhas de pensamento sugerem implicações muito diferentes.

Não é interessante que, no meio do debate sobre inato ou aprendido, o conceito de evolução de dois dos principais nomes de cada linha enfatizem exatamente as visões políticas de cada um?

E.O. Wilson, fundador da sociobiologia, é um homem branco do Alabama, estado que fica ao Sul dos Estados Unidos e conhecido pelo pensamento conservador. Sua noção de evolução enfatiza o quão natural é um sistema que premia desigualdades. Algumas de suas ideias também naturalizam o sistema social em que ele mesmo se mais beneficia.

Enquanto Lewontin era marxista. Os humanos deveriam abandonar o conceito de raças, favorecer o comportamento de cooperação, direcionar as mudanças no ambiente, e as mudanças deveriam seguir um padrão de calmaria com saltos rápidos e pontuais, não graduais.

 

 

Os erros de Lewontin

Como toda boa ciência que se ajusta com o passar do tempo, hoje sabemos que, mesmo que as diferenças genéticas entre populações humanas sejam mínimas, como o próprio Lewontin apontava, somos capazes de usar o DNA para identificar o local de origem das pessoas e seus ancestrais. Portanto, mesmo as pequenas diferenças nos ajudam a contar a história da espécie humana e não devem ser descartadas como irrelevantes logo de cara. Lewontin também argumentava que a seleção natural acontecia no cromossomo inteiro e não em genes individuais, o que é falso.

Atualmente, temos dois padrões consolidados e complementares para analisar a importância da genética e do ambiente no comportamento humano: o estudo em gêmeos (idênticos ou não) e o Estudos de Associação Ampla do Genoma (GWAS em inglês). Esta última é uma metodologia usada para detectar associações entre variações genéticas e uma determinada característica de interesse.

O estudo com gêmeos idênticos permite minimizar a confusão entre genética e ambiente. Afinal, gêmeos univitelinos possuem praticamente 100% de identidade entre seus genomas. Diversos tipos de experimentos já foram feitos com gêmeos. Irmãos que foram criados na mesma casa, irmãos criados em casas diferentes, por pais de todo o tipo de perfil e idade. O resultado? Recentemente, uma revisão reuniu as 10 principais descobertas replicadas da genética comportamental.

Nenhuma característica comportamental se mostrou 100% herdável. Todos os traços psicológicos mostram influência genética significativa e substancial, com uma herdabilidade variando, em média, de 30% a 50%. Por exemplo, em metanálises avaliando a inteligência geral, as estimativas de herdabilidade são normalmente cerca de 50% em estudos de gêmeos idênticos. Além disso, todos os estudos analisados concluem que não existe um único gene que explicaria um fator cognitivo específico: não existe “o” gene da inteligência, ou da timidez, ou da esquizofrenia.

É preciso também ter uma cautela ainda maior quando estudos se propõem a comparar a influência da herdabilidade entre populações distintas. A herdabilidade nos dá uma estimativa (de 0% a 100%) de quanto da variação (física ou comportamental) observada entre os indivíduos em uma população é baseada na variação genética entre esses indivíduos, em um ambiente que é largamente compartilhado por todos.

gorila green

 

Comparar populações diferentes, em ambientes diferentes ou épocas diferentes gera fatores de confusão extras. Por exemplo, uma população que enfrentou um longo período de guerra pode apresentar uma herdabilidade de estatura menor do que uma população pacífica, porque a altura média dos indivíduos da primeira pode ter sido afetada pela escassez de alimentos: uma vez que a população volte a ter acesso a nutrientes em abundância para seus filhos, a altura das novas gerações pode disparar – graças à mudança ambiental.

A espécie humana é única, assim como todas as outras espécies também. Demorou quase 4 bilhões de anos, mas o DNA finalmente construiu uma máquina de sobrevivência inteligente o bastante para tomar consciência do jogo da evolução. Somos a primeira espécie a encontrar nosso “criador”, e o que temos em comum com outras espécies são as regras evolutivas que ainda não foram totalmente elucidadas, mas não é porque gorilas cometem infanticídio que devemos naturalizar o mesmo comportamento em humanos. Como em qualquer jogo complexo, regras iguais podem gerar uma infinidade de partidas e desfechos diferentes.

 

Luiz Gustavo de Almeida é doutor em microbiologia e atual coordenador nacional do Pint of Science no Brasil

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