“Erros foram cometidos”

Apocalipse Now
27 out 2024
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Uma das coisas mais frustrantes de trabalhar com promoção, divulgação e ensino de pensamento crítico e da importância da atitude científica – “siga a evidência!” – no dia a dia é lidar com o que acabei apelidando de Muralha Egocêntrica, que se ergue sempre que os fatos ameaçam colidir com alguma convicção emocional um pouco mais forte.

Vejamos, por exemplo, o caso do princípio “o plural de relato isolado não é informação”: o que isso quer dizer é que, não importa quantas historinhas de que “A” curou “B” estejam circulando por aí, sem controles adequados é impossível afirmar que “A” realmente tem algum efeito sobre “B”.

Isso acontece, entre outras razões, porque vieses cognitivos tendem a esconder ou a minimizar os exemplos negativos – todas as vezes em que “A” não curou, ou mesmo agravou, “B” – e a exagerar os supostos casos de sucesso. Por isso, controles são necessários.

Praticamente todo mundo é capaz não só de entender o princípio geral, mas também de aceitar sua aplicação em casos históricos exemplares como as sangrias medievais, a fosfoetanolamina sintética para câncer, a cloroquina para COVID-19 – mas basta mencionar alguma pseudoterapia ou crendice bem aceita pela cultura brasileira, como psicanálise, homeopatia, astrologia ou acupuntura, e logo vem a resposta: “mas funcionou comigo/minha sogra/meu cachorro!”.

Como se esse argumento, cujo caráter falacioso era reconhecido por todos até dois segundos atrás, tivesse de repente, por algum tipo de mágica, recebido o poder epistêmico de uma demonstração euclidiana.

Agora, tente lembrar o interlocutor de que ele está usando o mesmo tipo de conversa que desprezava – com razão, pois trata-se de um raciocínio inválido – quando vinha dos cloroquiners na pandemia, e veja a Muralha Egocêntrica erguer-se nos milímetros que separam a córnea da pálpebra, como uma membrana protetiva de concreto armado. E a reação seguinte será ou de indignação (“está me chamando de bolsomínion?”) ou uma mudança abrupta de assunto.

 

Voz Exonerativa

A edição mais recente do livro “Mistakes Were Made... But Not By Me” (“Erros Foram Cometidos… Mas Não Por Mim”), dos psicólogos Carol Tavris e Elliot Aronson saiu em 2020, mas se quisessem (e tivessem tempo) os autores poderiam lançar suplementos mensais. É uma obra sobre a psicologia do autoengano e, mais especificamente, do autoengano que serve à vaidade e aos objetivos daquele que engana a si mesmo.

A frase “erros foram cometidos”, explicam os autores, é um clichê da política americana, a ponto de um jornalista ter apelidado a expressão, num trocadilho com “voz passiva”, de “voz exonerativa” – no caso, do político exonerando-se da responsabilidade por algum deslize. Henry Kissinger era um famoso usuário da fórmula.

Tavris e Aronson citam ainda um cardeal católico comentando casos de abuso sexual de crianças (“se viermos a descobrir que erros foram cometidos...”) e o McDonald’s se desculpando por não avisar vegetarianos do uso de ingredientes de origem animal em suas batatas fritas (“erros foram cometidos na comunicação”... ).  

No Brasil, o caso mais infame neste século talvez seja o do presidente Lula em 2005, dizendo-se “traído” ao comentar o escândalo do Mensalão: “Quero dizer a vocês, com toda a franqueza, eu me sinto traído. Traído por práticas inaceitáveis das quais nunca tive conhecimento”. Traído, veja bem, não por pessoas (com nome, sobrenome, CPF), mas por “práticas”.

Em tempos recentes, a Voz Exonerativa tem cada vez mais aparecido acompanhada pelo Erro Fundamental de Atribuição – a ideia geral de que quando “eles” fazem alguma coisa errada, é porque são canalhas mal-intencionados, mas quando “nós” fazemos alguma coisa errada, é porque não tivemos outra escolha, fomos forçados, o sistema é podre, foi autodefesa, foi pela liberdade, foi por uma boa causa etc. Em tempos de polarização aguerrida, a combinação ideal parece ser exonerar-se para o público externo e “atribuir-se” para o interno.

 

Memória

Alguém poderia argumentar que estou misturando alhos com bugalhos – que a Voz Exonerativa é uma estratégia cínica, enquanto o Erro Fundamental de Atribuição é um fenômeno sincero: a pessoa, ou grupo, realmente acredita na própria pureza, e na corrupção irredimível da Treva.

Mas ocorre que a Voz Exonerativa também pode ser sincera. Ou, no mínimo, tornar-se sincera com o passar do tempo. Tavris e Aronson descrevem como memórias tendem a ser reescritas e suavizadas com o passar do tempo, até o ponto em que “erros foram cometidos” deixa de ser uma desculpa e vira (na cabeça do “agente da exonerativa”) uma representação fiel dos fatos.

“Memórias frequentemente são podadas e moldadas com um viés de fortalecimento do ego que borra as bordas de eventos passados, suaviza a culpa, e distorce o que realmente aconteceu”, escrevem. “Com o passar do tempo, à medida que as distorções egocêntricas entram em ação e nos esquecemos de eventos passados, podemos vir a acreditar, pouco a pouco, em nossas próprias mentiras”.

E o fenômeno não se restringe a agentes políticos: os autores citam um estudo clássico de 1979 em que maridos e esposas responderam (separadamente) que fração das tarefas domésticas cada um realizava. A soma das estimativas de ambos tendia a dar mais do que 100%, o que sugeria que pelo menos um dos membros do casal estava exagerando o grau de envolvimento com os afazeres domésticos. “É tentador concluir que um dos cônjuges está mentido, mas o mais provável é que cada um se lembre de um modo que enfatiza a própria contribuição”, escrevem Tavris e Aronson.

O estudo encontrou o mesmo tipo de efeito em grupos de trabalho e em times esportivos bem-sucedidos (as pessoas se lembram mais e melhor de suas contribuições e atuações quando a tarefa é executada com sucesso, ou o jogo termina em vitória, do que quando o serviço fracassa, ou o time perde).

 

Erguendo a muralha

Minha impressão é de que a Muralha Egocêntrica contém doses generosas tanto de Erro Fundamental de Atribuição quanto do viés egocêntrico da memória, que desempenha um papel tão crucial na sedimentação da Voz Exornerativa.

Quando os outros tratam evidência casuística como definitiva ou de peso, eles obviamente estão errados (ou são ignorantes, ou não entendem como uma pesquisa de verdade funciona, ou lhes falta letramento científico). Quando eu apresento a minha evidência casuística, é porque tenho muito bons motivos, minha evidência é especial, meu caso é diferente.

Há dois mecanismos para a formação de convicções, o intelectual (você entende que alguma coisa é verdade) e o emocional (você sente que alguma coisa é verdade). O emocional não só tende a ser mais forte, como muitas vezes engana o intelectual – o entusiasmo por uma ideia ou conceito produzindo uma ilusão de entendimento – ou até derruba a chave do senso crítico.

Qualquer um preocupado em manter uma boa higiene cognitiva deveria estar atento para isso – e pelo menos hesitar quando o Erro de Atribuição e/ou a Voz Exonerativa aparecerem na ponta da língua.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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