No sétimo capítulo de “O Falcão Maltês”, o autor Dashiell Hammett conta, pela voz do detetive Sam Spade, a história de um homem, Charles Flitcraft, que depois de, por um fio, sobreviver a um acidente que poderia muito bem ter sido fatal, decide mudar radicalmente de vida – a ponto de abandonar a família (esposa e filhos), a casa, o carro, os negócios e a própria identidade. Nas palavras de Hammett/Spade, nos momentos após o acidente, Flitcraft “sentiu como se alguém tivesse tirado a tampa da vida e lhe mostrado o mecanismo interno”.
No entanto, cinco anos depois do evento momentoso, Spade, que havia sido contratado para encontrar o homem desaparecido, descobriu Flitcraft vivendo uma vida idêntica à que havia abandonado – com outra esposa, outros filhos, outra casa e outro carro mas, em essência, a mesma vida burguesa, sonolenta e acomodada de antes. “Acho que ele nem notou que havia voltado naturalmente à mesma rotina”, pondera o detetive.
A história de Charles Flitcraft aparece perto do fim de “O Falcão Maltês” e, ao menos para mim, é um dos trechos mais memoráveis da obra, que com frequência aparece nas listas dos melhores romances de mistério já escritos. A passagem me veio imediatamente à lembrança quando vi, na última semana, o título do New York Times chamando atenção para o fato de que, agora em março, o início da pandemia e os primeiros lockdowns completam quatro anos.
Velhos hábitos
Spade conta que, após seu acidente, Flitcraft havia “vagado por algum tempo”, antes de “sossegar e casar-se de novo”. Falando sobre a primeira e a segunda esposas, o detetive diz que, a despeito de não se parecerem fisicamente, no fundo “eram mais semelhantes do que diferentes. Você sabe, o tipo de mulher que joga golfe e bridge e gosta de novas receitas de salada”. Difícil encontrar uma metáfora melhor para o mundo pós-pandêmico: depois de “vagar um pouco”, acabamos sossegando e voltando ao golfe e às receitas de salada.
A COVID-19, é claro, continua entre nós, e ainda faz vítimas – em número muito menor, graças às vacinas, mas faz. As condições geopolíticas, ambientais, climáticas, demográficas e sanitárias que viabilizaram e moldaram a pandemia seguem inalteradas, se é que não mudaram para pior.
Nenhuma medida drástica ou inovadora foi tomada para reduzir o ritmo de devastação dos hábitats naturais e a destruição da biodiversidade, que aumentam a probabilidade de encontros entre seres humanos e patógenos emergentes; governos autoritários e pouco transparentes, que podem, com impunidade, mentir, distorcer e esconder dados estatísticos e epidemiológicos importantes para o controle de emergências sanitárias globais não só ficaram mais fortes como vêm aumentando em número; parte importante da luta contra a mudança climática acabou sequestrada pelo “Big Oil”, e a ideia de “transição energética” corre o risco de se reduzir a mero jogo de cena, uma anódina operação de marketing combinada entre indústria do petróleo e Estados nacionais de espírito “desenvolvimentista”.
Predisposições ideológicas e comportamentos que agravaram a crise, como a disposição “libertária” do indivíduo que rejeita, por princípio, qualquer tipo de responsabilidade pela saúde do próximo ou pelo bem comum, continuam fortemente representadas na sociedade. Assim como a segunda esposa de Flitcraft era diferente da primeira, mas essencialmente igual, o mundo pós-pandêmico pode parecer diverso do que existia até 2019, mas no fundo ainda é o mesmo.
Houve um momento, durante a pandemia, em que se assistiu a um surto de otimismo a respeito da percepção pública da ciência e da possibilidade de progresso no universo da comunicação de ciência. Nestes aspectos, também, o que se vê, passados quatro anos, é um retorno ao statu quo ante – quando não, o agravamento de uma situação prévia já bem pouco promissora.
Mercado
Já expressei, em outras oportunidades, meu ceticismo pessoal quanto à interpretação oba-oba, triunfalista, usualmente dada a pesquisas de percepção pública que mostram forte “apoio popular” à ciência e ao investimento em pesquisa científica.
Minha impressão particular é de que a maior parte do público diz ser “a favor” da ciência do mesmo jeito que se diz “a favor” das borboletas ou das abelhas: de modo automático, irrefletido, porque é a coisa “fofa” a dizer. Mas a verdade é que se a ciência (ou as borboletas, ou as abelhas) desaparecessem, poucos iriam notar ou, notando, iriam se incomodar. As consequências, em qualquer um dos casos, seriam graves e trágicas, mas poucos também iriam, de imediato, associar o efeito à causa.
Impressão pessoal é, sem dúvida, a forma mais chumbrega de argumento que há, mas até que a Avenida Paulista seja tomada por multidões exigindo a recomposição do orçamento do MCTI e o ensino da evolução tenha o mesmo tipo de apoio público, político e institucional que o ensino religioso, reservo-me o privilégio de manter a minha.
A pandemia acrescentou uma camada extra de complexidade ao problema. Com a forte valorização da marca “ciência” no discurso público, em meio aos debates acirrados sobre propostas de tratamento para a doença e a discussão das vacinas para a COVID-19, veio junto um esforço, igualmente forte, para esgotar o termo, reduzindo a palavra “ciência” a um significante vazio que políticos, charlatões, publicitários e influenciadores pudessem preencher com qualquer coisa que houvesse no estoque de suas lojinhas. E assim foi feito.
Como resultado, agora mesmo parte importante do público cujo interesse em algo chamado “ciência” é genuíno, e não apenas declarado da boca para fora, talvez seja composta pelo que, a rigor, são aficionados de pseudociências e de interpretações negacionistas de fatos e teorias científicas.
Não que esse problema não existisse antes: escrevendo em 2011, no livro “Science in a Democratic Society”, o filósofo Philip Kitcher já lamentava que “para cada cientista julgando uma controvérsia, existe um cientista igual e contrário”. Mas no mundo pós-pandêmico, o mercado de formas – por falta de expressão melhor – “alternativas” de ser “a favor da ciência” atinge pujança e proporções inéditas.
Novos vícios
Antes da pandemia, em todo o mundo e, com particular intensidade, no Brasil, o jornalismo científico e de saúde vinha passando por uma fase de contração. Tínhamos publicações sendo fechadas, jornalistas especializados perdendo emprego, o espaço dedicado ao assunto nos veículos de grande circulação encolhendo.
Tudo isso, somado a uma confusão cada vez maior entre a cobertura jornalística legítima de ciência e a produção de conteúdo de entretenimento (no caso das ciências físicas) ou da cobertura de ciência e o marketing de produtos (no caso das ciências da saúde). Nas assessorias de imprensa, consolidava-se a relação incestuosa entre divulgação científica e marketing institucional – com a ciência servindo de mero pretexto para “dourar a pílula” da propaganda, do culto à personalidade e do autoelogio.
Com a emergência sanitária global, depois de um primeiro momento desesperador em que esses problemas, bem como velhos vícios (o de tratar opiniões isoladas de especialistas como equivalentes ao consenso científico, o de sempre buscar automaticamente o “cientista igual e contrário”), agravaram-se de modo perigoso, uma espécie de aura de bom-senso desceu sobre a imprensa. Quase ao mesmo tempo, articulações informais de comunicadores independentes, em geral competentes, também se apresentaram para a luta.
No Brasil, com as fontes oficiais entregues ao mais abjeto negacionismo, esses dois movimentos foram essenciais para garantir a circulação da informação correta e, com isso, salvar vidas. Mas, em meio ao bom combate, os velhos vícios persistiam, apenas momentaneamente atenuados, e as sementes de novos vícios eram plantadas. Agora, vemos a colheita.
A confusão (às vezes acidental, às vezes deliberada) entre ciência, marketing e entretenimento ressurge, profunda e arraigada: dado o movimento de hipervalorização e simultâneo esvaziamento semântico de termos como “ciência” e “científico” no discurso popular, distinções antes cruciais entre meios e fins – esta divertida narrativa serve à ciência ou serve-se dela? – dissolvem-se no ar, e qualquer tentativa de chamar atenção para o problema é tratada como reacionarismo, rabugice e fata de contato com o “espírito dos tempos”. Entre os novos vícios, destacam-se o uso sistemático de níveis de popularidade como indicadores de competência, e a divulgação sensacionalista de resultados preliminares e pré-prints.
A pandemia, por algum tempo ao menos, tirou a tampa da ciência e mostrou ao mundo o mecanismo interno. Houve uma tomada de consciência da importância dos testes clínicos controlados, do perigo de fiar-se na palavra de “gênios” grandiloquentes, do fato de que nem todos os estudos nascem iguais, da necessidade de buscar o sentido geral da literatura científica de boa qualidade, e não supervalorizar resultados sensacionais isolados.
Mas a emergência passou, a tampa caiu de volta no lugar e, quase sem perceber, voltamos a uma versão (piorada) da velha rotina.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)