Em menos de 30 dias, esta Revista Questão de Ciência publicou nada menos do que três resenhas de supostos “documentários”, disponíveis em serviços de streaming ou redes sociais, que sistematicamente mentem, falsificam e distorcem fatos históricos e científicos para promover a paixão ideológica de seus produtores – trate ela de civilizações perdidas do passado, medo de vacinas ou os supostos superpoderes da mente humana.
As três produções que discutimos recentemente são apenas, claro, a proverbial ponta do iceberg. Do terraço das produções de luxo da Netflix aos porões dos vídeos desmonetizados do YouTube, o condomínio dos “documentários” que não documentam, mas usam a gramática do audiovisual para desinformar – os desinformentários –, que já começa a se parecer como Hotel Infinito do matemático David Hilbert, que mesmo lotado sempre acha espaço para mais um hóspede.
A apropriação da linguagem cinematográfica ou televisiva para criar “não-ficção ficcional” provavelmente é tão antiga quanto o próprio cinema e a televisão, mas o desinformentário vai além do erro honesto (por exemplo, quando o documentarista David Attenborough caiu na conversa do “macaco aquático”) ou da propaganda explícita, como nos antigos filmes nazistas, onde o viés da apresentação é um dado óbvio.
O desinformentário despreza a verdade sem se apresentar como propaganda: nesse aspecto, é uma versão ainda mais cínica do velho infomercial, aqueles programas de manhã cedo na TV a cabo em que atletas “espontaneamente” elogiam a bicicleta ergométrica ou o suplemento vitamínico do patrocinador.
Seu objetivo é gerar audiência ou vender uma ideologia (ou gerar audiência vendendo uma ideologia), e as condições de produção do mundo contemporâneo, com sua economia da atenção, tornam-no quase inevitável. A emergência da TV por assinatura, do streaming e das redes sociais baseadas em vídeo, como YouTube, junto com o barateamento dos equipamentos – todo celular é também uma câmera – elevaram o problema a proporções pandêmicas. Vivemos a Era do Desinformentário.
Susto recente
A situação se agrava pelo fato de que a amplificação audiovisual do descompromisso com a verdade vai além das paixões ou obsessões ideológicas individuais – o que poderíamos chamar, talvez, do efeito “um celular na mão e uma ideia errada na cabeça”, e que anima boa parte das produções antivacinas, por exemplo – e constitui verdadeiro modelo de negócio.
A confluência de fatores que redundam na situação atual é fácil de mapear: a multiplicação dos canais e o ciclo midiático de 24 horas, sete dias por semana, exigem uma multiplicação quase mágica dos conteúdos; o barateamento das tecnologias audiovisuais não é acompanhado pelo barateamento de outros insumos (transporte, alimentação, capital humano); sensacionalismo vende; malucos com ideias esquisitas costumam ter mais horários livres, mais fome de palco e dizer coisas mais chocantes e interessantes do que especialistas de verdade.
Tudo isso aponta para um modelo onde, no limite, a programação se reduz a um ou dois caras sentados numa sala, jogando conversa fora e mostrando, de vez em quando, imagens de arquivo ou de domínio público – devidamente retiradas de contexto. Para isso funcionar, a conversa fiada tem de ser sensacional (“e se houver menções veladas a armas nucleares na Bíblia?”) e as imagens de arquivo, fascinantes e intrigantes – talvez algumas esculturas astecas e pirâmides maias?
Nem todo desinformentário tem valores de produção tão precários, no entanto. Alguns são até bem caprichados. Recentemente, a comunidade científica do mundo anglófono viu-se pegando em armas contra a série de pseudoarqueologia “Revelações Pré-Históricas” exibida na Netflix, por falsificar o registro histórico e promover uma leitura racista e supremacista da evolução das civilizações. Mas como Jason Colavito aponta em artigo recente, o furor chega tarde: falsificações muito piores, com leituras racistas muito mais explícitas, são, há mais de uma década, o arroz-com-feijão de canais por assinatura como History ou Discovery.
Disruptivo
No History, “Alienígenas do Passado”, que apresentou sua décima-oitava temporada neste ano, recicla interminavelmente o tropo de que indígenas do Novo Mundo, povos africanos e da Oceania seriam idiotas demais para desenvolver civilizações ou erigir monumentos por conta própria. O Travel Channel, subsidiária do Discovery Channel e parte do mesmo conglomerado que controla a CNN, produziu em 2018 uma minissérie estrelada pela atriz Megan Fox que, em um dos episódios, “investiga” a tese de que as Américas foram colonizadas, na pré-história, por gigantes bíblicos – um tema recorrente na mitologia dos supremacistas brancos nos Estados Unidos, usado para fazer pouco caso das culturas indígenas.
“Sejamos brutalmente honestos”, escreve Colavito. “’Revelações Pré-Históricas’ não é nem de longe o pior programa do gênero (...) especificamente, não oferece muito estímulo para as ideias fixas da guerra cultural da direita que ganharam tanto espaço nos últimos anos. ‘Alienígenas do Passado’ é muito pior”. A questão é que canais como History e Discovery já não são há tempos levados a sério pelo público mais qualificado, mas a Netflix ainda é vista como um espaço de prestígio, logo “Revelações Pré-Históricas” choca sensibilidades.
Nesse aspecto, pode-se dizer que o desinformentário é um formato midiático “disruptivo”, e sem metáfora – seguindo bem de perto o conceito original apresentado na teoria da disrupção, para qual uma tecnologia ou modelo de negócio é “disruptivo” quando cresce e se estabelece atendendo a uma faixa de público normalmente desprezada pelos grandes nomes do setor e então, de repente, parece “irromper do nada” e começa a devorar a parte “nobre” do mercado. Qualquer semelhança com a trajetória dos movimentos políticos de extrema-direita talvez não seja mera coincidência.
Em busca de...
A opção preferencial da TV por assinatura pela pseudociência em geral, e pela pseudoarqueologia e pseudo-história em particular, realizando a prestidigitação de transformar hipóteses já descartadas, ou que nunca foram levadas a sério por pesquisadores competentes, em “controvérsias” que o telespectador é convidado a resolver sem sair da poltrona, não é exatamente nova. Eu me lembro de assistir, num quarto de hotel, lá se vão uns 20 anos, a programas sobre a presença da Arca da Aliança na Etiópia.
O desinformentário disruptivo é a culminação de uma longa trajetória. O “marco zero” costuma ser identificado com a produção de 1973 “Em Busca dos Astronautas do Passado”, filme americano para TV produzido por Alan Landsburg, apresentado por Rod Serling, baseado as ideias de Erich von Däniken.
Talvez graças à reputação de Serling (famoso como criador das séries de TV “Aém da Imaginação” e “Galeria do Terror”), o filme conta com participações de Wernher von Braun, pai do programa espacial dos Estados Unidos, e de Carl Sagan. Von Braun e Sagan são as únicas vozes céticas do programa, cujo sucesso levou a outros filmes especiais para TV e, por fim, à criação da série “Em Busca De...”, apresentada por Leonard Nimoy entre 1977 e 1982.
Revisto hoje em dia, “Em Busca dos Astronautas do Passado” chama atenção pelo número de vezes em que a narração se refere aos supostos alienígenas pré-históricos, civilizadores de negros primitivos e indígenas embasbacados, como sendo sábios “de pele clara”.
Figuras com biografias como as de Serling ou Nimoy dificilmente poderiam ser classificadas como racistas ou supremacistas, e seu envolvimento com esses temas provavelmente veio de uma afinidade por ficção científica somada a um desejo de olhar para o passado sob um prisma romântico e misterioso. Mas como o arqueólogo Sean Rafferty argumenta de modo convincente em seu livro “Misanthropology”, racismo e nacionalismo estão na própria tessitura da pseudoarqueologia: é uma disciplina que nasce do desejo de certos grupos de colonizar a história de outros, seja para diminuí-los, ou por engrandecimento próprio.
Sua primeira Era de Ouro veio no rastro da expansão colonial europeia, como tentativa de minimizar os feitos e a capacidade intelectual dos povos conquistados, atribuindo suas construções e conhecimentos a alguma “raça perdida” (em geral, de pele branca e origem bíblica). Esse mito estruturante ainda se faz presente, mesmo quando o mote da raça superior nórdica é sublimado (ou suplementado) na forma de influência extraterrestre.
Ideias que aos olhos de fãs de ficção científica de cinquenta anos atrás poderiam soar apenas “românticas” – interessantes e intrigantes, com a evocação da Atlântida ou de povos maravilhosos de outros planetas – trazem sugestões muito diferentes quando interpretadas por quem prefere acreditar que a Humanidade pode ser dividida em raça mestra e povos inferiores.
Os desinformentários sobre saúde (de que já tratamos aqui e aqui, por exemplo) são mais obviamente perigosos, mas os que falsificam o passado também trazem riscos. Ao habituar o público a ver culturas e povos tradicionais como entes passivos, à espera de missionários, anjos ou astronautas que lhes tragam cultura, ciência e civilização, abrem caminho para preconceito, complacência e, no limite, genocídio.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)