Diversos autores já chamaram atenção para o fato de que, pelo menos desde o Iluminismo, doutrinas esotéricas e pseudociências (que muitas vezes distribuem-se ao longo de um contínuo, como o que vai do espiritualismo à parapsicologia e à ufologia) tendem a carregar consigo, como se fossem amostras congeladas no tempo, a ciência popular da época em que foram elaboradas.
Assim, por exemplo, o éter luminífero, substância hipotética que serviria de meio de propagação para a luz – como o ar é o meio de propagação do som –, supostamente dotada de propriedades misteriosas e paradoxais, foi alvo de intensa especulação no mundo científico entre o fim do século 19 e início do 20, até que sua existência foi descartada por experimentos cruciais e pela Teoria da Relatividade de Einstein, mas sobrevive no vocabulário esotérico como componente do “corpo etéreo”.
Fenômeno parecido ocorre com vocábulos como “fluido” e toda a família semântica do magnetismo (“magnético”, “magnetizado”, etc.) que, em contextos mágicos e pseudocientíficos, seguem significando mais ou menos o que significavam para os cientistas entre os séculos 18 e 19.
Essa regularidade histórica permite arriscar prever que as perversões atuais da física quântica continuarão no jargão da pseudociência ainda por um bom tempo, talvez até bem depois de a física de verdade ter renovado por completo seu vocabulário.
Raças futuras
Não são apenas conceitos e léxico ultrapassados das ciências físicas que se perpetuam assim, como parte do “conhecimento” esotérico, mas da história e das ciências sociais, também. Já escrevi sobre como a teosofia e a antroposofia, doutrinas populares no início do século passado e influentes até hoje, incorporaram o racismo pseudocientífico de seu tempo – a ideia de que a Humanidade progride por meio da substituição de raças “menos evoluídas” por outras “mais avançadas”.
No Brasil da voracidade antropofágica, essa ideia foi digerida com os temperos da “democracia racial”, da exaltação da mestiçagem, com acompanhamento do mito do “país do futuro”, dando origem à certeza – propalada por profetas “científicos” de lavra doméstica – de que a próxima grande raça, encarregada de levar a Humanidade para a utopia final e definitiva, surgiria em Terra Brasilis, e não sem uma pequena ajuda de discos voadores vindos do centro da Terra, guiados pelo Rei do Mundo, Melquisedeque (personagem enigmático citado no Velho Testamento, Gn. 14:18).
Na década de 1950, a tolice cósmica não só teve ampla circulação no país, ocupando dezenas de páginas em três edições consecutivas de O Cruzeiro, então o periódico jornalístico mais popular do país, como foi influenciar um dos mais importantes proponentes internacionais da hipótese da Terra Oca, o americano Walter Siegmeister, que escrevia com o pseudônimo de “Dr. Raymond Bernard” e vivia no Brasil – por acreditar que o Hemisfério Sul iria sobreviver à 3ª Guerra Mundial.
Esferas ocas
Há toda uma família de hipóteses que propõem a ideia – demonstravelmente falsa, diante de fatos bem conhecidos como a densidade do planeta, sua atração gravitacional, dados sismológicos etc. – de que a Terra seria uma esfera oca, e que um outro mundo, habitável, existe em seu interior.
O conceito foi popular no século 19, tendo encontrados fervorosos defensores e inspirado obras de ficção como “O Relato de Arthur Gordon Pym” (Edgar Allan Poe) e “Viagem ao Centro da Terra” (Jules Verne). Um grupo de excêntricos baseado nos Estados Unidos chegou a fundar uma comunidade, nas primeiras décadas do século passado, predicada não apenas na crença de que a Terra é oca, mas também de que habitamos seu interior.
Em 1963, Bernard publicou no EUA o livro “The Hollow Earth”, uma espécie de clássico absoluto sobre o tema, citado em praticamente todas as obras de referência posteriores. No capítulo sétimo, Siegmeister/Bernard afirma que “a teoria de que os discos voadores vêm do interior da Terra e não de outros planetas originou-se no Brasil”. E cita como fonte o livro “Dos Mundos Subterrâneos para os Céus: Discos Voadores”, de O.C. Huguenin, que teria encontrado numa livraria de São Paulo em 1957.
Livro misterioso
Na literatura anglófona sobre o assunto, esse livro brasileiro é ou ignorado ou tratado como um mistério absoluto – um autor importante, que aborda o tema da Terra Oca sob um ponto de vista cultural e antropológico, Walter Kafton-Minkel, escrevendo nos anos 1980, diz que “procurou exaustivamente pelo livro” sem encontrá-lo, e que o texto de Bernard seria “a única evidência de que a obra existe”.
Em minha recente passagem pelo Brasil, no entanto, consegui obter um exemplar dessa obra mítica – via Estante Virtual, conveniência que não estava ao alcance de Kafton-Minkel quarenta anos atrás. Trata-se de um trabalho curto, 106 páginas em formato de bolso, datada de 1956 e sem crédito para a ilustração de capa. Na folha de rosto traz a reprodução de um dos quadros de uma tira de “Flash Gordon no Planeta Mongo”, história em quadrinhos de 1934 em que aparecem naves semelhantes a discos voadores.
A primeira – e possivelmente única – edição é de 1957. Não há informações sobre o autor, mas uma pesquisa na Biblioteca Nacional (BN) permite inferir, com alguma segurança, que se tratava do jornalista fluminense Orlando Carlomagno Huguenin, nascido em março de 1917.
Há pouca informação sobre ele disponível online: era enxadrista (ficou em segundo lugar no campeonato de xadrez do jornal em que trabalhava, “A Manhã”, em 1951, e dois problemas de xadrez de sua autoria foram publicados em 1981); foi candidato a vereador em 1954, pelo Partido da Representação Popular (PRP), encabeçado pelo pai do fascismo brasileiro, Plínio Salgado; enquanto candidato, declarou-se comprometido com o programa político da Liga Eleitoral Católica. Casado, teve pelo menos um filho. Não encontrei obituário nos arquivos da BN.
A obra
“Dos Mundos Subterrâneos...” é escrito no estilo, grandiloquente e recheado de falsa modéstia, típico do jornalismo brasileiro dos anos 1950 (Huguenin só se refere à obra como “despretensioso livro”). O autor mostra-se devoto da Sociedade Teosófica Brasileira, fundada por Henrique José de Souza, e que até hoje existe, mas com o nome de Sociedade Brasileira de Eubiose.
A exposição segue o padrão geral das obras de proselitismo pseudocientífico: começa pedindo ao leitor mente aberta e espírito crítico para depois empurrar-lhe goela abaixo afirmações dogmáticas sem nenhum apoio em evidências – e quando levanta alguma questão retórica sobre a validade do que afirma, Huguenin responde a si mesmo com um toque de escárnio para com a “ciência exata” que, segundo ele, sempre muda de ideia.
No entanto, ao contrário de outras obras do memo tipo, que em geral são até corretas ao descrever princípios básicos da ciência – antes de fugirem por alguma tangente maluca – “Dos Mundos Subterrâneos...” constrange logo de cara. Huguenin escreve que é improvável que os discos voadores venham de outros planetas porque “existe entre qualquer corpo celeste e seu vizinho uma ‘barreira de vácuo’; e ao penetrar nesta a aeronave explodiria”. Difícil saber se a “barreira de vácuo” aí é pura ficção científica ou uma incompreensão atroz do que ocorre no fenômeno da descompressão explosiva, mas de qualquer modo, trata-se de uma ideia sem nenhum nexo.
Brasil utopia
A tese apresentada é a de que os óvnis são emissários do Rei do Mundo, que habita o interior da Terra, e que em harmonia com ele a Sociedade Teosófica Brasileira vem “dedicando-se à Grande Obra de preparação da ‘sementeira’ para o surgir da nova civilização que se irradiará do Brasil e das Américas para o mundo”.
Esse papel do Brasil como núcleo original de um mundo utópico pós-apocalíptico e de uma “nova raça” ocupa boa parte do livro.
A fusão antropofágica de mitos díspares é vertiginosa: o avatar Maytreia (uma figura messiânica do budismo) é identificado com a esperada segunda vinda do Jesus do cristianismo (uma mistura que a Teosofia “clássica” já propunha) e sua chegada, com o início do ciclo de Aquário, que Huguenin marca para a primeira década do século 21, acontecerá em Minas Gerais, lançando a Humanidade numa nova Era de Ouro. Falando em profecias furadas, acrescento que ele previu a revelação pública do Rei do Mundo, por meio de uma cadeia mundial de rádio e TV, para 1956.
Há uma tentativa tíbia de oferecer argumentos. “Achamos oportuno, contudo”, escreve o autor, “lembrar o desusado e crescente interesse que, de tempos para cá – sobretudo depois da última guerra –, o Brasil vem despertando até mesmo entre povos mais distantes”, interesse que teria “aspectos sentimentais e espirituais bem acentuados”. Huguenin então reproduz despacho de agência de notícias internacional descrevendo um grupo esotérico britânico que se dizia interessado em emigrar para a América do Sul.
Bernard, por sua vez, parecia predisposto a aceitar a ideia de uma utopia racial sul-americana. Ele já havia tentado criar uma “raça perfeita” no Equador e vivia, desde 1955, em Santa Catarina, buscando estabelecer uma comunidade esotérica. Segundo Kafton-Minkel, ele se oferecia para vender, a americanos interessados em escapar do holocausto nuclear, terrenos em Joinville. O quanto era golpe imobiliário e o quanto era ilusão sincera? Ou talvez um golpe imobiliário sugerido por uma ilusão sincera? Difícil saber.
Kafton-Minkel escreve que Bernard ficou convencido, por suas conversas com teosofistas brasileiros, que a entrada para o paraíso subterrâneo estaria escondida em algum ponto do sertão brasileiro. “Ele nunca abandonou a busca”, escreve o autor.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)