ETs e espíritos no Senado Federal

Apocalipse Now
2 jul 2022
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disco voador

 

Há pouco mais de uma semana, em 24 de junho de 2022, o Senado Federal em Brasília realizou uma audiência pública em homenagem aos 75 anos do nascimento da moderna ufologia, com o avistamento de luzes estranhas no céu pelo americano Kenneth Arnold (1915-1984), em 1947. A iniciativa partiu do senador Eduardo Girão (Podemos-CE), mesmo responsável pela audiência sobre constelação familiar, realizada em março.

A audiência repercutiu pouco fora do meio ufológico brasileiro, embora pelo menos um ufólogo americano relativamente famoso nas redes sociais, Jeremy McGowan, tenha tentado acompanhar o evento ao vivo, online, abandonando a audiência quando um dos participantes começou a falar sobre vida inteligente em Saturno. “Isto é uma farsa ou um circo”, tuitou.

A menção ao gigante gasoso (incapaz de suportar vida como a conhecemos e que, investigado durante mais de uma década pela sonda espacial Cassini, nunca revelou nenhum sinal de atividade alienígena) ocorreu no contexto de uma apresentação de “evidências” ufológicas vindas do mundo espiritual.

As notas taquigráficas da audiência registram copiosos elogios ao médium Chico Xavier (1910-2002), citado por um dos depoentes como “abnegado médium, amigo e apóstolo do Cristo em tempos modernos”.

Existe uma peculiaridade antropológica aí. A ufologia nacional é fortemente influenciada por misticismos pseudocientíficos dos séculos 18, 19 e 20, como teosofia, antroposofia e o espiritismo. O próprio senador Girão, por exemplo, recomendou efusivamente o documentário “Data Limite”, uma produção baseada em profecias de Chico Xavier. Outro participante da audiência, num só fôlego, passou de considerações sobre universos paralelos, tecnologia nuclear e stealth para mediunidade. A ufologia brasileira, ao menos no recorte apresentado no Senado, é uma seção (dissidência?) do movimento espírita.

 

Separação incompleta

A ligação entre mediunidade e a crença em vida inteligente em outras partes do Sistema Solar era comum no século 19 – as supostas viagens interplanetárias de uma médium europeia inspiraram até mesmo um clássico da psicologia, o livro “Da Índia ao Planeta Marte”, de Théodore Flournoy (1854-1920). No mundo de língua inglesa, o que poderíamos chamar de “corrente principal” da comunidade ufológica foi aos poucos se afastando dessa sensibilidade esotérica e espiritualista, assumindo ares técnico-científicos e pondo de lado a linguagem explicitamente mágica ou religiosa, que ficou restrita a grupos menores e considerados, mesmo dentro da cultura ufológica, excêntricos.

Processo semelhante não houve no Brasil, por razões históricas. A revista O Cruzeiro – durante décadas, o veículo de comunicação mais popular do país –, que basicamente inventou a ufologia brasileira na década de 1950, jamais se furtou, nas caudalosas “reportagens” que publicou sobre o tema, a misturar alienígenas com espíritos, paranormalidade e esoterismo, reforçando e reafirmando, em vez de diluir, a confusão original.

Na audiência pública, imagens produzidas pelo Telescópio Espacial Hubble e citações de Chico Xavier sobre vida em Saturno ou os exilados de Capela (“E aí surgiram quatro grandes grupos étnicos exilados do sistema estelar de Capela aqui, na Terra, a começar pelos arianos, que começaram, há 12 mil anos, a habitar a região do Pamir; depois, os hindus. Eles se fundiram depois na civilização indo-védica, também conhecida como indo-europeia. Depois vieram os egípcios; e, por últimos, os hebreus, todos eles como vindos de Capela”) tiveram exatamente o mesmo peso.

O que, de certa forma, faz sentido, já que ambas as bases de evidência, tal como utilizadas no Senado, são igualmente irrelevantes para a questão dos óvnis. Se tivessem sido apresentadas as imagens feitas pelo Hubble de astros do Sistema Solar, elas poderiam contar como evidência negativa (o telescópio espacial jamais fotografou um único disco voador), mas o senador Girão optou por afirmar que “em função do campo profundo do Hubble, os cientistas estimam que o Universo observável tem mais de 200 bilhões de galáxias”.

A estimativa está, de fato, ultrapassada: dados mais recentes põem o número de galáxias no Universo observável na casa dos trilhões. Os números (literalmente) astronômicos são usados para escorar o argumento de que seria altamente improvável estarmos “sozinhos do Universo” ou, como o senador Girão diz, “esses dados são suficientes para assegurar que, estatisticamente, é impossível a existência de vida inteligente apenas no planeta Terra, que não passa de um minúsculo grão de poeira diante da magnífica grandeza do Universo visível”.

 

Falácias

O que pode soar razoável, mas se revela uma falácia em vários níveis – especialmente quando a ideia é usar extraterrestres para explicar luzes estranhas que as pessoas veem no céu. Afinal, o que o tamanho do Universo e a probabilidade de haver vida inteligente em outros planetas tem a ver com a probabilidade de aquela foto borrada que tirei ontem ser uma nave alienígena? Pensando bem, quase nada.

A cadeia de argumentos “Universo enorme = vida inteligente = óvnis são ETs” só soa plausível porque quem a apresenta queima etapas, esconde elos cruciais do raciocínio, sem que a audiência perceba; com isso, embute pressupostos altamente questionáveis.

disco voador

O primeiro é equacionar “vida” com “vida inteligente”. Mesmo se aceitarmos que um Universo tão grande deve, provavelmente, conter mais seres vivos além dos que evoluíram por aqui, na Terra “seres vivos” é uma categoria que inclui tardígrados, bactérias, bromélias. Seres humanos somos uma minoria, e imaginar que a inteligência, tal como a entendemos, é uma característica necessária ou inevitável da evolução é ou preconceito religioso (o ser humano como produto inevitável, porque “imagem de Deus”) ou só arrogância mesmo.

Dizer “é razoável supor que existe vida abundante lá fora” é diferente de dizer “é razoável supor que existe vida racional abundante lá fora”. Aqui na Terra existem muito mais espécies capazes de voar (só de pássaros, são cerca de 10 mil) do que capazes de projetar naves espaciais (apenas uma, a humana).

Pior. Para o argumento que vai do Universo abundante à abundância de discos voadores sustentar-se, não só vida racional, mas vida racional com vontade, recursos e meios de criar e usar uma tecnologia de viagens espaciais precisa existir em outros lugares. É só pensar um pouco sobre a história humana para ver que não há nada de “inevitável” na decisão de empreender viagens ao espaço. Nós mesmos fomos até a Lua há 50 anos, e desde então não demos mais nenhum passo além.

Também é preciso supor que viagens a distâncias interestelares ou intergalácticas, que se medem em anos-luz (um ano-luz é a distância que a luz percorre em um ano, e corresponde a aproximadamente 9 trilhões de quilômetros) sejam possíveis e praticáveis. A distância média quer nos separa dos demais sistemas planetários da nossa galáxia é de pouco mais de 2 mil anos-luz. A galáxia mais próxima de nós está a 25 mil anos-luz. As leis da física, como as conhecemos hoje, sugerem que não é possível percorrer distâncias assim em intervalos de tempo menores do que alguns milênios (ou centenas de milhões de anos, caso a ideia seja trocar de galáxia).

Ainda é preciso somar a tudo isso a hipótese de que o povo capaz e disposto a realizar esse tipo de viagem, caso exista, está interessado em vir exatamente até aqui, com tantas outras estrelas e planetas à disposição. E, vindo aqui, não esteja muito preocupado nem em se esconder (porque, afinal, suas naves são avistadas o tempo todo) e nem em se revelar (porque os ETs, afinal, não anunciaram sua presença de forma clara e pública).

Mais outra: que a comunidade internacional de astrônomos, milhares de pessoas em todo o mundo especializadas em olhar para o céu, dedicadas a identificar corretamente e catalogar tudo o que existe lá – planetas, estrelas, luas, galáxias, asteroides etc. – jamais tenha notado o tráfego de naves alienígenas pela vizinhança ou que, tendo-o notado, esteja participando de uma grande conspiração global de acobertamento.

Levando tudo isso em conta, o argumento da “alta probabilidade” derrete.

Implícito na sequência de apresentações de casos supostamente inexplicados exibida durante audiência, o outro principal argumento em defesa da hipótese “óvnis são ETs” reduz-se à falácia do apelo à ignorância: “já que ninguém é capaz de explicar o que é este fenômeno visto no céu, então ele é uma nave de outro planeta”. Isso tem tanta lógica quanto dizer que “já que ninguém é capaz de explicar o que é este fenômeno visto no céu, então ele é o trenó do Papai Noel”.

disco voador

Discutir cada um dos casos citados ocuparia muito mais espaço do que o disponível aqui, mas pelo menos um deles, o do disco voador de Trindade, é uma fraude comprovada. E vamos ressaltar outra vez: “sem explicação conhecida” é diferente de “vale a minha explicação favorita”.

Na ausência de evidências contundentes, o melhor que se pode fazer é deixar a questão em aberto, ou adotar uma explicação provisória baseada no balanço das probabilidades: maus entendidos, erros observacionais ou mesmo fraudes deliberadas – enfim, coisas que acontece todos os dias, o tempo todo, em inúmeros contextos – são muito mais prováveis, dada a ausência de exemplos concretos e claros, a escala imensa do Universo, a diversidade da vida (que não tem motivo para privilegiar espécies que gostam de viajar pelo espaço) e as leis da física, do que visitantes de outro mundo.

 

Céticos

Claro, raciocínios assim não chegaram nem perto do Senado Federal em 24 de junho (ou, pelo que se deduz do estado atual da política brasileira, na maior parte do tempo). Um argumento cético surgiu na sessão de perguntas e respostas, vindo do público, apontando que a ufologia – ou, ao menos, o tipo de ufologia apresentado durante a audiência pública – não consegue ser levada a serio porque não segue o método científico.

O desafio foi respondido com evasivas (“certos fenômenos desafiam o método científico”), negação (“ufologia é ciência pura”) e conspiração (“queremos que os documentos da Força Aérea Brasileira sejam abertos”). Sobre esse último ponto, há anos que a FAB liberou para o Arquivo Nacional inúmeros documentos sobre óvnis no Brasil.

O senador Girão também citou algumas vezes a audiência púbica conduzida nos EUA sobre o mesmo tema. Lá, no entanto, especialistas do Departamento de Defesa foram ouvidos e disseram que não há evidência de presença extraterrestre ligada a óvnis – a preocupação maior parece ser com tecnologias de imageamento que produzem falsos positivos, isto é, imagens de coisas que não estão lá, ou tiram objetos comuns de contexto (confundindo estrelas com drones, por exemplo).

Mick West, um dos principais pesquisadores de óvnis em atividade nos Estados Unidos atualmente – seu site Metabunk é um tesouro de análises de vídeos “misteriosos” –, também acompanhou pelo menos parte do evento brasileiro, e tuitou sua perplexidade: “Esta audiência brasileira de óvnis parece ser de velhos ufólogos brasileiros discutindo casos antigos (...) Haverá material novo? Declarações militares? Declarações do governo? Vídeos?”

Não, não houve. A audiência pública no Senado brasileiro, diferentemente da americana, não foi um evento para que representantes eleitos do povo pudessem questionar autoridades ou altos funcionários, mas sim uma reunião de velhos amigos para trocar cumprimentos, elogios e reminiscências, propagar especulações pseudocientíficas e fazer proselitismo místico-religioso com dinheiro público.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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