Um artigo publicado em 1876 na revista The American Naturalist, descrevendo a origem e o desenvolvimento dos museus de ciência, comenta brevemente que Carl Lineu (1707-1778) teve, certa vez, de fugir às pressas, durante a noite, da cidade alemã de Hamburgo, depois de provar que uma hidra empalhada – um monstro de sete cabeças, coberto de escamas – pertencente ao prefeito local, que pretendia vendê-la a colecionadores, era uma fraude, feita a partir de pedaços de doninhas costurados juntos, com escamas de pele de cobra coladas por cima.
Esse Lineu é, caso alguém esteja se perguntando, o mesmo que criou o sistema de classificação dos seres vivos em gênero e espécie, sistema que ajudou a organizar a imagem que os cientistas – na época, ainda “filósofos naturais” – tinham do mundo e que os estudantes de biologia aprendem até hoje.
O caso da hidra de Hamburgo ocorreu em 1735, quando Lineu ainda não havia obtidio seu doutorado e meses antes da publicação da primeira edição da obra que imortalizaria seu nome, o “Sistema da Natureza” (a edição considerada como “marco inicial da nomenclatura zoológica” é a décima, de 1758; Lineu seguiria atualizando o livro em novas edições até 1768).
A menção do caso em American Naturalist é breve. Outras fontes, como o livro “Monsters”, de Stephen T. Asma, dão mais detalhes a respeito da aventura da hidra e do pedigree do monstro. Quando Lineu o encontrou ela era, como já foi dito, propriedade do prefeito (ou burgomestre) de Hamburgo, que a adquirira havia pouco tempo.
O político tinha grandes esperanças para o espécime, que era famoso – havia sido, por exemplo, retratado no “Thesaurus”, um compêndio sobre maravilhas da natureza produzido pelo zoólogo holandês Albertus Seba (1665-1736) em 1734, livro ricamente ilustrado e bilíngue: o texto está em holandês e latim.
A origem da criatura grotesca é incerta. Ela teria sido roubada do altar de uma igreja de Praga durante o cerco imposto à cidade em 1648, em meio à Guerra dos Trinta Anos, pelo conde sueco Hans Christoff von Königsmarck (1600-1663), e por caminhos incertos chegou às mãos do burgomestre de Hamburgo.
A biografia clássica de Lineu, “The Compleat Naturalist”, escrita pelo artista Wilfrid Blunt (1901-1987), conta que o político alemão tinha grandes esperanças para a peça. Informes da época sugeriam que o rei da Dinamarca havia manifestado interesse em comprá-la, e sua oferta de 30.000 táleres (algo como US$ 1 milhão em dinheiro de hoje), tinha sido recusada. O burgomestre era ganancioso e esperava ofertas melhores.
Lineu, no entanto, não ficou impressionado. O simples fato de a hidra ter sete cabeças disparou sinais de alerta para o naturalista, que mesmo ainda sendo jovem já contava com uma fama razoável. Levado para ver a monstruosidade pelo editor de uma revista científica alemã, o sueco teria exclamado: “Santo Deus, que nunca pôs mais de um pensamento claro em nenhum dos corpos de Tua criação!”
Quando o diagnóstico de fraude veio a público – o naturalista não era exatamente uma pessoa discreta –, o valor da relíquia caiu a zero, e Lineu achou melhor dar no pé porque (nas palavras de Blunt) “temia a vingança do burgomestre”. Na versão de American Naturalist: “Ele foi forçado a deixar Hamburgo de forma abrupta, e na calada da noite, porque havia declarado e provado que o objeto mais valioso da coleção do prefeito daquela cidade era uma produção fraudulenta”.
Virada científica
O conto da falsa hidra de Hamburgo é valioso não só como anedota histórica (ou como um exemplo precoce do conflito entre verdade científica e interesses econômicos, e dos resultados que se podem esperar desses conflitos), mas também como um marco do momento em que a ciência se torna um referencial privilegiado no debate público e na formação da opinião pública.
A história da hidra, antes de seu encontro fatídico com Lineu, é fragmentária e incerta, mas muitos comentaristas supõem que, em sua carreira como peça de altar numa igreja ou monastério de Praga, a questão da “autenticidade” fosse irrelevante.
Ela representava, muito provavelmente, um modelo do monstro marinho descrito no Capítulo 13 do Apocalipse (“Vi uma besta que saía do mar. Tinha dez chifres e sete cabeças, com dez coroas, uma sobre cada chifre, e em cada cabeça um nome de blasfêmia”, Ap. 13:1). Em outras palavras, era uma peça grotesca de arte sacra, não um suposto exemplar do mundo animal.
Em “Monsters”, Asma nota um mesmo movimento: monstruosidades (maravilhas, aberrações) aos poucos deixando de ser vistas como parábolas morais ou mensagens cifradas dos deuses (e o Deus cristão se insere aí) e passando a ser tratadas como coisas em si, carentes de autenticação e explicação no vocabulário de uma racionalidade pautada não no poético ou mitológico, mas na descrição da natureza.
Essa mudança cultural, em que já não bastava mais a uma “coisa maravilhosa” ser maravilhosa, era preciso que fosse autêntica – segundo critérios estabelecidos pela filosofia natural, isto é, pela ciência –, vinha ocorrendo já há pelo menos um século. Francis Bacon (1561-1626) havia publicado o “Novum Organum”, proclamando o primado da experiência sobre a especulação e a autoridade.
Ainda antes, em 1584, Reginald Scot (1538-1599) havia publicado “The Discoverie of Witchcraft”, livro em que denunciava a crueldade da perseguição às bruxas e explicava como inúmeros feitos “mágicos” eram, na verdade, meros truques. Como o mágico de palco David Copperfield e seus coautores – o psicólogo Richard Wiseman e o mágico e escritor David Britland – explicam em “David Copperfield’s History of Magic”:
“Numa época em que muitas pessoas apoiavam a caça às bruxas, Scot corajosamente argumentava que esses eventos eram pouco mais do que uma perseguição bárbara movida contra os vulneráveis, os fracos e os idosos. Seu texto polêmico propunha, com frequência, abordagens mais racionais para fenômenos aparentemente sobrenaturais, argumentando que aqueles que pareciam ser bruxos podiam ser apenas pessoas supersticiosas ou pouco instruídas, que os efeitos de poções aparentemente mágicas deviam-se a causas químicas e que as pessoas que alegavam ter sido visitadas por demônios noturnos sofriam de distúrbios do sono”.
No fim do século 17, outro autor britânico, Sir Thomas Browne (1605-1682) publicou o que às vezes é chamado de “o primeiro livro de divulgação científica da Europa”, “Pseudodoxia Epidemica” (algo como “Epidemia de Falsas Opiniões” – provavelmente a mesma que, no século 21, chamamos de “infodemia”), com o objetivo de desmistificar superstições comuns, apelando para experimentos e bom senso.
Lançado em cinco edições, entre 1646 e 1672, o livro de Browne antecede em algumas décadas outro importante candidato ao título de primeira obra de ciência popular, “Conversações Sobre a Pluralidade dos Mundos”, do filósofo francês Bernard le Bovier de Fontenelle (1657-1757), que se propunha a discutir ciência e filosofia de um modo que não fosse “nem complicado demais para os distraídos, nem leve demais para os sábios”. No prefácio, De Fontenelle exclama: “Meu desejo era apresentar filosofia de uma maneira não filosófica!”
Incentivo
A valorização social e monetária da ciência gera incentivos para a produção de pseudociência. A hidra de Hamburgo, convertida de ícone religioso em fraude zoológica, é um caso exemplar exatamente por isso: marca o ponto da história ocidental em que a verificação da autenticidade de um achado supostamente “científico” passou a pôr em jogo não só reputação do cientista (ou “filósofo natural”) entre os pares, mas também prestígio político e dinheiro – muito dinheiro.
A aceitação crescente da ideia de soberania da ciência gerou também outros efeitos indiretos, entre deles a valorização social dos títulos acadêmicos, e aí a vida de Lineu também oferece uma anedota interessante. Depois de fugir de Hamburgo, o naturalista sueco foi buscar seu doutorado. Para isso, dirigiu-se à cidade holandesa de Harderwijk onde, segundo o biógrafo Blunt, florescia uma universidade “que faturava alto com graus ‘instantâneos’ a preço de liquidação”.
Lineu já tinha uma tese pronta (de 24 páginas), onde sugeria que a malária era causada por partículas de argila, já que, na Suécia, as febres intermitentes só ocorriam em regiões de solo argiloso.
O naturalista chegou à cidade em 17 de junho; passou por um exame oral e produziu um ensaio sobre Hipócrates. Sua tese foi aprovada pelo orientador, houve um exame de banca e, no dia 23 do mesmo mês, Carl Lineu recebeu seu doutorado e, com ele, as prerrogativas de “...ensinar o ofício da Medicina, visitar os doentes e prescrever para eles, participar de debates”.
Claro, é ingênuo e anacrônico comparar esse procedimento ao ensino de Medicina nos tempos atuais, mas Blunt chama atenção para o fato de que, mesmo na época de Lineu, a universidade escolhida já tinha a fama de emitir diplomas para qualquer um, de qualquer jeito e com precinho camarada.
A origem suspeita do título, no entanto, não impediu que Carl Lineu fosse deixar na biologia uma marca que só não é mais profunda do que a de Charles Darwin (1809-1882).
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto) e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)