Edgar Allan Poe e a divulgação científica

Apocalipse Now
17 jul 2021
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Edgar allan poe

 

A mudança para Nova York reavivou meu interesse em Edgar Allan Poe (1809-1849), o poeta, escritor e jornalista que ajudou a criar as formas modernas do conto de terror, de ficção científica e de mistério. Ainda não fui visitar o “Poe Cottage”, casebre em que o autor viveu aqui na cidade e que é preservado como marco histórico, mas devo ir até lá em breve.

Por enquanto, vou me divertindo relendo alguns textos favoritos – o conto “O Barril de Amontillado” é a coisa mais perfeita já saída da pena de um ficcionista – e com uma nova biografia, “The Reason for the Darkness of the Night”, escrita por John Tresch e que focaliza, especialmente, a relação entre Poe e a ciência de sua época.

Que foi uma época fundamental para o tipo de ciência que temos hoje, e para muitos dos debates sobre conhecimento e sociedade que perduram até os dias atuais. Nas primeiras décadas do século 19 foram feitas não só descobertas como a do eletromagnetismo, das leis da termodinâmica e do planeta Netuno, como a própria comunidade técnico-científica dos Estados Unidos começava a organizar-se, em paralelo ao que ocorria na Europa.

Como Harold Beaver escreve em sua introdução à antologia “The Science Fiction of Edgar Allan Poe”, “a eletroquímica dominou o início do século 19. Galvani e Watt, Volta e Ohm, Ampère, Bunsen, Morse – os pioneiros incorporaram seus próprios nomes à língua (...) foi a época das células voltaicas, eletrodos, jarros de Leyden, pilhas, condutores, íons, isolamento, circuitos elétricos, baterias, geradores, dínamos, condensadores, galvanômetros. A natureza fundamental da matéria, ficou aparente, era elétrica”.

 A ciência ia, aos poucos, deixando de ser um passatempo quase exclusivo de meninos ricos e convertia-se em profissão. Na França, Auguste Comte (1798-1857) e Pierre-Simon Laplace (1749-1827) propagavam uma visão de mundo racionalista, mecanicista, numa retórica da qual o contista Edgar Allan Poe se apropria – às vezes na chave da paródia, às vezes como tempero especial para aprofundar o envolvimento do leitor e incutir verossimilhança nas tramas mais grotescas.

Tresch chama especial atenção para o fato de que a academia militar de West Point – onde Poe teve, por um par de anos, desempenho acadêmico notável, sempre entre os melhores da classe, até ser expulso por indisciplina – era na época, além de um centro de formação de oficiais, a principal escola de engenharia dos EUA, onde o ensino de francês era levado tão a sério quanto o de matemática ou de estratégia militar, e em cuja biblioteca guardavam-se exemplares das obras completas de Laplace.

 

Divulgação científica?

A relação de Poe com a ciência era ambígua. Temas científicos e matemáticos fascinavam-no, e ele se mantinha a par dos desenvolvimentos mais recentes; ao mesmo tempo, ressentia-se do prestígio especial conferido à racionalidade científica – num de seus poemas da juventude, chama a ciência de “Abutre, cujas asas são realidades entediantes”, uma ave que “preda o coração dos poetas” – e desconfiava, na verdade sabia, que a retórica e o vocabulário típicos das ciências prestavam-se muito bem ao serviço de todo tipo de charlatanice.

De fato, o uso do que poderíamos chamar de “modo científico de expressão” para embalar e embelezar absurdos é uma das marcas do estilo literário do Poe ficcionista – que não se furtou, aliás, perpetrar uma ou duas brincadeiras do tipo, como o conto “A Fraude do Balão”, publicado inicialmente como “reportagem” pelo jornal New York Sun em 1844, e o romance “A Narrativa de Arthur Gordon Pym”, publicado primeiro como ficção, mas depois relançado como história “verídica”.

 

Assim Poe descreveu, num comentário, o efeito da publicação de “A Fraude do Balão” nas páginas do Sun:

“Claro que houve grande discrepância de opinião no que diz respeito à autenticidade da história; mas observei que os mais inteligentes acreditavam, enquanto a ralé, em sua maior parte, rejeitou tudo com desdém. Vinte anos atrás, credulidade era uma peculiaridade característica da turba, incredulidade, a marca distintiva do filósofo; agora, exatamente o oposto é o caso”.



Quando o picareta se vale do vocabulário e do tom adequados – implicitamente, o vocabulário e o tom da ciência –, o “filósofo” passa a ser mais fácil de engabelar do que a “ralé”.

A despeito dessa visão crítica (ou por causa dela), Edgar Allan Poe foi, nas palavras do biógrafo John Tresch, um dos primeiros jornalistas de ciência dos Estados Unidos: em sua posição como editor-assistente da revista Burton’s Gentleman’s Magazine, manteve uma coluna, “Capítulo sobre Arte e Ciência”, onde descrevia e comentava descobertas e invenções.

Produziu também um livro-texto sobre conchas e moluscos (“The Conchologist’s First Book”, de 1839) adotado em escolas e também vendido, como obra de popularização, ao grande público. Mas eu gostaria aqui de comentar dois textos em especial: “Eureka” e “O Enxadrista de Maelzel”.

 

Universo finito

“Eureka” (título completo, “Eureka: Um Ensaio sobre o Universo Material e Espiritual”) representou uma tentativa de Poe de se lançar na carreira de palestrante pago (conferências públicas, com venda de ingressos, eram uma importante fonte de renda para intelectuais da época), e com uma palestra que se propunha a nada menos do que explicar o Universo.

Quando o texto da conferência foi publicado, Poe prefaciou-o afirmando tratar-se de um “poema”, e apensou o subtítulo “um poema em prosa”. Também após a publicação, numa carta à sogra, escreveu: “Não desejo mais viver depois que fiz ‘Eureka’. Nada mais posso conquistar’”. Escreveu essas palavras em julho de 1849. Morreu em outubro.

Trata-se, “Eureka”, de um texto complexo e hoje em dia muito pouco lido, mesmo pelos fãs do autor. É uma tentativa de explicar cientificamente o Universo que começa com um ataque frontal ao que se entendia, no século 19, por método científico, pondo intuição e imaginação acima da lógica e do dado experimental; está repleto de erros – que já podiam ser identificados na época de sua composição – mas, ao mesmo tempo, vislumbra algumas descobertas da astronomia e da física que ainda aguardavam no futuro, como o Big Bang e a necessidade de o Universo conter algum tipo de aceleração centrífuga ou princípio de repulsão, para evitar um colapso gravitacional completo.

“Eureka” é um trabalho que deve a (pouca) fama que tem, nos dias atuais, ao fato de que ali Poe sugere que o Universo visível é finito tanto em quantidade de matéria quanto em existência passada: que há estrelas tão distantes da Terra que sua luz ainda não teve tempo de chegar até nós, e que as que podemos ver preenchem apenas uma parcela mínima do espaço.

Essa é considerada a primeira solução plausível proposta para o chamado “paradoxo da escuridão da noite”: se houvesse um número infinito de estrelas, todas brilhando por toda a eternidade, o céu noturno deveria ser dominado por um enorme clarão.

O comentário sobre a escuridão da noite é a parte mais famosa de “Eureka”, mas para mim o texto assume por completo as características do que poderíamos chamar, legitimamente, de divulgação científica quando o autor mobiliza sua imaginação poética para dar ao leitor uma ideia do que são as distâncias e velocidades envolvidas em astronomia.

Há a imagem, deliciosamente extravagante, de que um anjo que ousasse pausar seu voo 100 km à frente de Júpiter, no caminho da órbita do planeta, seria atropelado e esmagado em poucos segundos (a velocidade orbital de Júpiter é de 13 km/s, ou 47 mil km/h). Na passagem que considero minha favorita, Poe escreve que se víssemos a chama de um canhão sendo disparado na Lua, levaríamos “treze dias e noites” para ouvir o estrondo.

Abstraindo os fatos de que não há oxigênio da Lua para produzir chama e nem atmosfera entre a Terra e seu satélite para conduzir som, é uma formulação fantástica para provocar a sensação desejada, de enorme distância.

 

O enxadrista

Em 1836, mais de uma década antes de “Eureka”, portanto, Poe publicou um artigo em que denunciava, como fraude, o autômato jogador de xadrez construído pelo artesão húngaro Wolfgang von Kempelen (1734-1804), e que então era propriedade do engenheiro e artista Johann Maelzel (1772-1838).

No texto “O Enxadrista de Maelzel”, Edgar Allan Poe deduz, corretamente, que os movimentos do boneco são controlados por um ser humano escondido, mas erra nos detalhes de como isso é feito (o segredo completo da ilusão só seria divulgado em 1857). Parte significativa do artigo de Poe é plagiada do livro “Cartas sobre Magia Natural”, do britânico sir David Brewster, publicado em 1832.

enxadrista

 

Nessa obra, Brewster descreve como princípios simples de mecânica, acústica e óptica foram usados, ao longo da história, para produzir falsos milagres e truques de mágica. O autômato enxadrista é discutido em um dos últimos capítulos. Poe também copia parte da descrição feita por Brewster da máquina de calcular parcialmente construída por Charles Babbage (1791-1871), a Máquina Diferencial.

O projeto completo não chegou a ser executado enquanto o inventor ainda vivia (a primeira máquina diferencial completa, montada segundo as especificações de Babbage, só ficou pronta em 2000), mas Brewster viu protótipos parciais em funcionamento, e ficou impressionado.

Poe parte da apresentação do autor britânico para comparar os tipos de “inteligência” necessários para uma máquina de calcular e para uma máquina de jogar xadrez, e conclui que o jogo de xadrez é infinitamente mais complexo: o resultado de um cálculo, afirma o poeta, já está implícito – determinado – em seus termos iniciais, e chegar a ele é apenas uma operação mecânica; no jogo de xadrez, não há nada que implique necessariamente o movimento seguinte, não existe uma cadeia determinista. Nisso ele está certo e faz o que poderíamos considerar boa divulgação científica. Mas erra ao partir desse ponto para afirmar que ou nenhuma máquina jamais será capaz de jogar xadrez ou, se for, jamais será derrotada.

Podemos aprender muito com os erros e exageros de Poe: a impaciência com o método experimental, a confiança soberba em saltos intuitivos que têm beleza poética e parecem “fazer sentido”. Mas podemos também tirar uma lição positiva e, como ele, desconfiar sempre do fetiche pelo estilo, linguajar e retórica “científicos”. Distinguir entre o emprego profissional de técnicas de produção de verossimilhança e aquilo que pode mesmo ser verdade é tão importante hoje quanto em 1840 – se não mais.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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