Aparentemente, ainda há quem discuta se a década começa agora ou em 2021. Eu tenho uma vaga lembrança de tratar desse problema, mas em termos de século (século 21 em 2000 ou 2001?), no meu tempo de Estadão, e a resposta é bem simples, mesmo: o moderno calendário civil é baseado numa tentativa do monge Dionísio Exíguo, que viveu no século 6, de calcular a data de nascimento de Jesus de Nazaré. A questão central: o ano em que Dionísio achou que Jesus tinha nascido virou o ano 1 do calendário.
Como não houve ano zero, a primeira década foi do ano 1 ao 10; a segunda, do 11 ao 20; e assim por diante, até os dias de hoje. Logo, o primeiro ano da nova década será 2021. Mas essas questões de cronologia amarrada a datas religiosas me lembram de outra coisa.
Alguns dias depois do Natal, consegui resgatar, das profundezas do caos do apartamento onde morava até o ano passado, minha edição de Annals of The World, a obra em que o arcebispo anglicano James Ussher apresentou, na segunda metade do século 17, a tese de que o primeiro instante do tempo surgiu ao entardecer de um certo 22 de outubro, e o mundo em si começou a ser criado em 23 de outubro (ou 21 de setembro, no calendário gregoriano) de 4004 AEC, durante o outono.
Ussher chegou ao ano (4004 AEC) computando as idades dos patriarcas bíblicos e a cronologia dos reinos de Israel e Judá, também como descrita na Bíblia. Ele usou como “âncora” a data da morte do rei Nabucodonosor da Babilônia, que aparece, com destaque, na história de Judá: “Nos dias de Joaquim, Nabucodonosor, rei da Babilônia, marchou contra ele” (2 Reis 24:1).
A partir daí, o arcebispo foi subtraindo os anos de vida dos patriarcas, a duração dos reinados em Israel e Judá e outros intervalos de tempo citados no Velho Testamento (por exemplo, os 40 anos passados no deserto após o Êxodo) até, por fim, “zerar” a idade do mundo.
Já a data e horário envolveram um pouco mais de especulação. Segundo os responsáveis pela reedição de 2006 do Annals, Ussher escolheu o outono porque o ano novo judaico é celebrado no outono. A data exata representa o primeiro domingo após o equinócio outonal do hemisfério norte.
Com os olhos do presente, é muito fácil enxergar não só o erro factual – caudalosos volumes de evidência geológica e astrofísica mostram que a Terra tem 4,6 bilhões de anos e o Universo, pelo menos três vezes mais – mas também um certo incômodo lógico: como a criação pode ter uma data e um horário se, antes do Sol e da Terra surgirem, não havia como marcar o tempo, ao menos não em termos de dias e horas? E, para complicar um pouco mais: como assim, o mundo foi criado “no outono”? A Terra surgiu com um hemisfério só – ou era plana? Deus vivia ao norte do equador antes de criar o equador?
Essa má impressão quase se desfaz quando consideramos que, se o tempo tem um ponto inicial, podemos chamar esse ponto do que quisermos – 1º de janeiro, 23 de outubro, até 31 de fevereiro, tanto faz.
Contudo, o estranhamento retorna assim que examinamos o raciocínio de Ussher, tal como descrito pelos editores: o mundo, para o arcebispo, foi criado no primeiro domingo depois do equinócio de outono do hemisfério norte. Como poderia haver um equinócio de outono, sem falar em “hemisfério norte”, antes da criação do mundo? E como assim, o tempo foi criado “ao entardecer”, antes de haver um Sol para se pôr, e uma Terra, um horizonte onde o Sol baixar?
Relevante para o debate sobre quando se iniciam séculos e décadas, Ussher pula do ano 1 antes de Cristo para o ano 1 AD (“Anno Domini”, Ano do Senhor), sem zero. Logo, também nessa contagem a próxima década começa em 2021 ou, pelo calendário do arcebispo, em 6025 AM (“Anno Mundi”, “ano da criação do mundo”). Em comparação, o calendário judaico nos põe em 5780, e a edição de 2006 do livro de Ussher, publicado por um grupo fundamentalista, tem um apêndice dedicado a explicar a discrepância.
Creio que já comentei, em um texto anterior, que sinto uma espécie de atração mórbida por doutrinas falidas, ideias ruins, sistemas insustentáveis: como nascem e crescem, como são defendidos, quem os apoia, como se protegem da artilharia pesada da lógica e dos fatos. O fascínio que coisas como astrologia, reiki ou terraplanismo me causam talvez se compare ao que um bacteriologista sente diante do Yersinia pestis: o de contemplar algo que, num mundo ideal, não deveria existir, mas já que existe, deve ser compreendido, estudado a fundo e até, de certo modo, admirado.
Um dos problemas desse meu desvio de personalidade particular é que ele tem um bom potencial de causar constrangimento no universo das relações sociais.
O colecionador de ideias ruins tende, portanto, a levar uma vida meio solitária, e isso talvez explique parte do prazer que tive ao descobrir o livro Worlds of Their Own, publicação póstuma de artigos, cartas e capítulos de livro de Robert J. Schadewald, ex-presidente do Centro Nacional de Educação Científica dos Estados Unidos, que faleceu no ano 2000. O livro é de 2008, e só posso culpar a malícia do Universo (onde está a Lei da Atração quando se precisa dela?) por ele não ter chegado a mim antes.
Como o título implica, a obra trata de ideias que existem em “mundos próprios”, à parte da realidade, como energia infinita, terraplanismo e criacionismo. Schadewald já escrevia sobre o movimento da Terra plana décadas antes do assunto virar modinha. Enfim, senti ter encontrado um espírito irmão.
O livro inclui uma história detalhada do terraplanismo moderno, iniciado na Inglaterra no século 19, e mostra que a crença nunca desapareceu de fato, mas que ganha e perde aderentes e visibilidade ao longo de ciclos que podem durar dezenas de anos. Worlds of Their Own apresenta, a título de exemplo, a saga de Zion, cidadezinha americana estabelecida por fundamentalistas cristãos, onde terraplanismo e criacionismo foram matéria obrigatória nas escolas públicas durante boa parte do século passado.
O livro traz ainda a última entrevista concedida por Immanuel Velikovsky, possivelmente o mais famoso pseudocientista do século 20. Schadewald também entrevistou o presidente da Sociedade Internacional de Estudos da Terra Plana, Charles K. Johnson. E chegou a ser membro dessa Sociedade – para fins, digamos, “antropológicos”—, até ser expulso, quando Johnson decidiu que ele não tinha um compromisso sério com a “causa”.
Recentemente, escrevi um artigo sobre a convergência entre terraplanismo e criacionismo, e lendo Worlds of Their Own vi que Schadewald já havia feito o mesmo serviço, só que muito antes e muito melhor: num artigo publicado originalmente em 1987, intitulado “The Flat Earth Bible”, o autor defende a tese de que, embora não mencione explicitamente a forma do planeta, a Bíblia é, sim, um livro terraplanista, no sentido de que os diversos autores, e as culturas em que esses autores viveram, pressupunham uma visão achatada do planeta. Essa visão vem à tona em versículos como “Assentaste a Terra sobre seu fundamento” (Salmo 104) ou “...os céus, que foram fundidos tão solidamente como o bronze” (Jó, 37:18).
Ou, agora, no Novo Testamento: “O diabo o levou ainda para uma montanha muito alta. Mostrou-lhe todos os reinos do mundo e sua riqueza” (Mateus 4:8). A única geografia em que uma montanha muito alta permite ver todos os reinos do mundo é a de uma Terra plana.
Grupos criacionistas que aspiram à respeitabilidade científica tentam, claro, dissociar-se do terraplanismo, construindo uma espécie de sistema de controle de danos para preservar alguns aspectos do fundamentalismo bíblico (a criação especial das espécies separadamente, em seis dias, até mesmo a cronologia ide Ussher) e descartar outros (o terraplanismo implícito). Talvez fosse mais interessante livrar-se de vez do fundamentalismo, já que existem inúmeras teologias cristãs que dispensam essa rigidez textual e valorizam mais coisas como ajudar os pobres e respeitar mendigos e prostitutas, mas isso é só a minha opinião.
Um versículo citado no livro criacionista, porém antiterraplanista, Tempo Astronômico, Tempo Profético, de Ruy Carlos de Camargo Vieira, é Isaías 40:22, onde, em tradução que aparece numa Bíblia protestante, lemos que Deus está “assentado sobre o globo da Terra...”. Esta, note-se, é a única associação direta entre as palavras “Terra” e “globo” que consta da lista de exemplos bíblicos compilada pelo autor.
Mas outras versões protestantes do Livro Sagrado usam “redondeza” (o que pode ser referência a um disco, em vez de globo) no mesmo versículo. Na tradução oficial da CNBB (católica) o que se lê é: “sobre o centro da Terra ele se assenta...”. Saindo dos embates sectários, a tradução não-religiosa, poético-literária, feita por Frederico Lourenço diz: “É Ele que segura o círculo da Terra”.
A estratégia dos criacionistas ditos “científicos”, de renegar os irmãos terraplanistas, provavelmente deriva dos diferentes graus de dificuldade em jogar conversa mole por cima da evidência que se tem diante dos olhos. Semear, entre o público não especializado, dúvidas ilegítimas a respeito do registro fóssil ou das datações de radiocarbono é mais simples, e bem menos arriscado, do que pôr em dúvida décadas de fotos da Terra vista do espaço.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência