Há algum tempo, publicamos aqui na Questão de Ciência a tradução de uma reportagem asiática sobre a iniciativa do governo japonês de “descomplicar” o processo de aprovação de terapias baseadas em células-tronco, com o objetivo de tentar devolver algum protagonismo tecnológico ao país.
O tom da reportagem ia do cauteloso ao crítico, e por um bom motivo: terapias liberadas sem controles e testes adequados têm boa chance de ser inúteis ou, mesmo, prejudiciais. Até remédios que passam por todas as etapas de aprovação prévia às vezes acabam se revelando piores do que o esperado quando chegam ao mercado. Abrir mão de etapas como testes clínicos duplo-cegos com grupo controle é jogar roleta-russa com a saúde da população.
No clima ideológico altamente polarizado em que vivemos, porém, não falta quem esteja convencido de que menos regulamentação é sempre melhor – não importam o contexto, os riscos ou as particularidades dos casos específicos.
É inegável que existe também o radical com sinal trocado, que não pode ver uma atividade ou pensamento novo sem que lhe ocorra automaticamente o imperativo irresistível de proibir, censurar, legislar ou taxar (de preferência, tudo junto!), mas neste momento gostaria de me dirigir aos que tendem ao que eu chamaria de “nomoifobia” – medo ou aversão irracional a regras e regulamentos – e apresentar um histórico de como era o mercado de medicamentos e tratamentos de saúde antes “de o Estado se meter” – e como ele é, hoje, em bolsões onde o Estado se omite.
A história a seguir acompanha o desenvolvimento da regulamentação do setor de medicamentos nos Estados Unidos, que acabou servindo de modelo para o resto do mundo.
Bangue-bangue
Quem tem alguma familiaridade com westerns conhece a figura do vendedor de óleo de cobra: um tratante que vai de cidade em cidade, a bordo de uma carroça vistosa e colorida, vendendo preparados de composição misteriosa e duvidosa salubridade, com a promessa de curas milagrosas. Os "óleos de cobra" dos Estados Unidos representaram um desdobramento dos chamados "remédios de patente" britânicos, que originalmente deviam o nome ao fato de terem recebido cartas-patente de figuras ilustres (por exemplo, membros da família real) autorizando o uso do nome da celebridade em material publicitário. Depois, a expressão passou a ser aplicada a qualquer gororoba que tivesse um nome ou marca registrado. Os primeiros remédios de patente, datados do século 18, eram "elixires", em geral extratos de ervas amargas "medicinais" dissolvidos em álcool. Muitos sobrevivem até hoje, mas agora vendidos como licores, bitters ou cordiais. No lado não-alcoólico desse espectro, a coca-cola começou sua carreira como um remédio de patente, "recomendado" para fadiga e dores de cabeça.
Claro nada disso curava nada: mas esperar o resfriado passar tomando golinhos de gim, steinhager ou conhaque vagabundo com gengibre devia ser menos desagradável do que só ficar tossindo e reclamando. Aos poucos, no entanto, esse cenário dominado por placebos alcoólicos ou adocicados começou a incluir, também, preparados com drogas bem mais fortes que um destilado de uvas ou cereais. Se você acha que os pais de hoje exageram na ritalina, em 1900 as mães americanas que precisavam trabalhar fora podiam dar a seus filhos o Xarope Calmante da Senhora Winslow, uma mistura de morfina, álcool e amônia. Bastava uma colher de sopa para nocautear os pequerruchos por várias horas. Tudo ao sabor do mais livre mercado.
A situação começou a mudar graças a um conjunto de reportagens publicado, em 1905, na revista Collier's. Intitulada "A Grande Fraude Americana" e assinada pelo repórter Samuel Adams, a série – na qual o jornalista enviava amostra de medicamentos do calibre do Xarope Winslow a químicos, e publicava o resultado das análises – levou à proposição de uma lei que obrigaria os fabricantes de remédios a declarar a fórmula de seus preparados no rótulo, e proibiria a venda de drogas narcóticas sem receita.
A gritaria, que hoje talvez pudesse ser chamada de "ultraliberal", foi enorme. Os fabricantes disseram que uma lei assim traria o caos para a indústria, e a proposta morreu. Mas, em 1906, uma versão atenuada da legislação foi sancionada pelo então presidente Ted Roosevelt, exigindo que o conteúdo dos remédios viesse declarado no rótulo. Essa lei viria a gerar a FDA, a Administração de Remédios e Alimentos, que hoje é o principal órgão de regulamentação sanitária do mundo. Graças a essa lei, o primeiro dos três pontos do marco de regulação atual – o da transparência – foi adotado. O passo seguinte foi dado no fim da década de 30, quando uma fábrica de remédios, também nos Estados Unidos, resolveu criar uma versão do antibiótico sulfanilamida que fosse agradável ao paladar infantil. A mistura incluía açúcar, caramelo, essência de amora – e dietilenoglicol, um produto anticongelante e tóxico. Mais de cem pessoas morreram, e a lei americana foi reformada para exigir que os laboratórios, a partir daí, passassem a ter de demonstrar que suas drogas são seguras, antes de vendê-las. Aí temos o segundo item dos três princípios da regulação, o da prova de segurança. Que só se tornou obrigatória em 1938.
O terceiro princípio – o da prova de eficácia – foi incorporado ao mandado da FDA em 1962, depois que a agência americana ganhou destaque por ter mantido a talidomida fora do mercado americano.
A droga, criada na Alemanha nos anos 50 e vendida, em mais de 40 países, como remédio para enjoo em mulheres grávidas, havia sido proibida nos EUA, onde a agência regulatória considerou insuficientes os testes apresentados pelos inventores alemães. Pouco depois, descobriu-se que a droga induzia sérios defeitos de nascença em bebês. Graças à ação da FDA, das milhares de crianças vítimas da talidomida no mundo, menos de 20 nasceram nos Estados Unidos.
O aumento do prestígio da agência com o caso levou à aprovação de uma lei que estabelecia, além das exigências de transparência e segurança, também a da eficácia: um medicamento só poderia ser comercializado depois de passar por testes científicos capazes de mostrar não só que ele é seguro (isto é, não faz mal, se usado da forma indicada) como também que é eficaz (isto é, realmente produz os benefícios prometidos pelo fabricante). Esses testes teriam de ser considerados convincentes pela FDA.
Reação O aumento do poder da agência logo gerou descontentes. A reação contra a crescente regulamentação dos produtos de saúde nos Estados Unidos veio na década de 70, quando a FDA apertou o cerco sobre o mercado de suplementos alimentares e vitaminas. Várias empresas vendiam (como ainda vendem) cápsulas de suplementação que contêm várias vezes as necessidades mínimas diárias desses nutrientes, prometendo (ou insinuando) que essas overdoses podem evitar ou curar vários problemas, de fadiga e resfriado e até câncer. A FDA desejava que os fabricantes de suplementos tivessem de oferecer as mesmas provas de segurança e eficácia que o restante da indústria farmacêutica. A medida foi repudiada no Congresso americano que, sob forte influência de um poderosos lobby da indústria de suplementos vitamínicos, desautorizou a agência de interferir no mercado de vitaminas e suplementos.
Na década de 80, grupos de pacientes de aids pressionaram o órgão regulador para obter acesso a drogas ainda não aprovadas, o que levou à criação da “rota paralela”, que abre acesso a tratamentos experimentais, e ainda ao estabelecimento do “uso compassivo”, quando drogas sem aprovação são oferecidas a pacientes terminais.
Já nos anos 90, também graças a um poderoso esforço de lobby da indústria de "produtos naturais" – que incluiu um comercial de TV em que agentes do FBI invadiam o apartamento de Mel Gibson (!!) para confiscar um frasco de vitaminas. Esse lobby levou o Congresso americano a definir uma categoria especial de produto farmacêutico, a de "suplemento alimentar", que foi deixada fora da jurisdição da FDA.
Como disse um especialista, citado no livro Do You Believe in Magic?, do médico Paul Offit, "ponha cérebro de carneiro num remédio ou num alimento e você terá de gastar milhões de dólares e alguns anos provando que ele é seguro e eficaz; ponha num suplemento e tudo bem, nenhuma prova é necessária".
Retrocesso
Livre de regulamentação, a indústria de suplementos, hoje, não é muito diferente da de óleos de cobra e remédios de patente do século 19. Claro, há que se manter as devidas proporções: não se vendem mais narcóticos pesados para uso infantil. Mas o perfil de eficácia de pílulas de colágeno para a aparência da pele, ou de fosfoetanolamina para câncer, não é muito diferente do de steinhager para resfriado. Com a diferença crucial de que resfriados passam sozinhos.
O perfil de segurança, por sua vez, segue indeterminado. Produtos claramente tóxicos não duram muito no mercado – ninguém vai comprar um suplemento depois de ver a pessoa que o tomou cinco minutos antes cair dura –, mas sem estudos de segurança devidamente controlados, é muito difícil perceber, por exemplo, se este ou aquele suplemento não aumenta o risco de problemas de saúde que demoram mais a aparecer. A ligação entre a erva Aristolochia, até poucas décadas atrás muito utilizada em fitoterápicos no Velho Mundo, e câncer dos rins, por exemplo, só foi estabelecida após séculos de uso tradicional na China e na Europa.
Além da farra dos suplementos alimentares (incluindo herbais) e vitamínicos, as brechas no sistema regulatório para tratamentos “experimentais” e “compassivos” também dão margem a abuso. Um caso exemplar é o da Clínica Burzynski, no Texas, que há décadas oferece um tratamento “experimental” de câncer, em bases claramente pseudocientíficas e a preços extorsivos.
Clínicas assim – há várias pelo mundo, oferecendo tratamentos não comprovados em nome de princípios de compaixão ou “pela ciência”, mas sem conduzir pesquisa substancial e cobrando caro dos pacientes – acabam se tornando focos de uma forma macabra de turismo, que atrai doentes desesperados e seus parentes. Casos assim são registrados, por exemplo, na Alemanhae no México.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência