"Ameaça a nossos filhos"? Cuidado com o pânico moral

Apocalipse Now
5 dez 2018
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Celular com o ícone do whatsapp na tela

Neste ano, pelo menos 30 pessoas foram mortas em linchamentos, na Índia, por causa de um pânico moral. O motivo? Boatos – infundados! – sobre ondas de sequestro de crianças. O pânico indiano tem a característica especial de ter sido insuflado via WhatsApp, aplicativo que no país asiático é usado por mais de 200 milhões de pessoas.

Pondo o número  em perspectiva, há tantos indianos com WhatsApp quanto há seres humanos no Brasil. A crise indiana levou o aplicativo a mudar algumas regras, incluindo a adoção de um limite para o número de vezes que um usuário pode compartilhar um mesmo conteúdo.

“Pânico moral" é o nome dado por cientistas sociais a situações em que a sociedade, ou uma parte da sociedade, é tomada por uma preocupação irracional e exagerada em relação a uma circunstância que, por algum motivo, é vista como um problema para a comunidade. Alguns críticos desse conceito queixam-se de que "pânico moral" é apenas um termo pejorativo usado por uma parcela da sociedade para desqualificar as preocupações de outra, já que não há uma definição objetiva do que seria um "exagero".

Os defensores da expressão, por sua vez, citam exemplos como a Caça às Bruxas do fim da Idade Média e a onda de medo que tomou conta dos Estados Unidos e do Reino Unido, nos anos 80, associada a alegações de que cultos satânicos estariam sequestrando e abusando de crianças. Nada  mais objetivamente exagerado, apontam, do que uma convulsão social em torno de um problema inexistente -- no caso, cultos satânicos caçadores de criancinhas ou mulheres que voam em vassouras e fazem sexo com o diabo.

A situação indiana também certamente se qualifica, já que as supostas gangues de “ladrões de criancinhas” denunciadas por meio do aplicativo também são  inexistentes: um vídeo disseminado pelo WhatsApp, mostrando um motoqueiro capturando uma criança, era na verdade um trecho – editado e tirado de contexto – de uma campanha paquistanesa sobre segurança infantil.

No Brasil, em abril de 2017, assistimos aos primeiros passos de um pânico desse tipo, com a eclosão do “Jogo da Baleia Azul”, uma suposta armadilha psicológica criada por misteriosos “curadores” para induzir crianças ao suicídio.

Grandes veículos de mídia compraram a história, e até o próprio Ministério da Justiça foi mobilizado.  Quase 20 meses depois, o assunto, que chegou a ser tratado como ameaça internacional, está tão esquecido quando o nome do ministro da Justiça da época. A mídia dá conta de uma pessoa chegou a ser presa no Estado do Rio, mas aparentemente nenhum suicídio foi ligado ao acusado.

Ainda no Brasil, em 2014, uma dona-de-casa foi linchada por vizinhos depois de ser acusada, via redes sociais, de praticar “magia negra” envolvendo crianças. E pelo menos um trabalho brasileiro de Ciência Social vê indícios de um pânico moral em marcha, nas discussões sobre “ideologia de gênero” nas escolas.

A “ameaça a nossas criancinhas” é um componente comum de pânicos morais. A lógica é fácil de compreender: poucas coisas assustam mais um pai ou uma mãe do que a possibilidade de ferimento, morte, separação ou alienação forçada do filho pequeno.

Além disso, crianças oferecem o pretexto perfeito para a liberação dos instintos mais agressivos da comunidade: como são indefesas e inocentes, torna-se fácil acreditar que nada, em princípio, será excessivo ou abusivo demais, se feito para protegê-las.

Muitas vezes, essa “ameaça às crianças” vem acompanhada de outro clichê, o do “forasteiro misterioso” – no caso dos linchamentos na Índia, por exemplo, a maioria das vítimas era de uma etnia diversa, ou falava uma língua diferente de dos linchadores. A instância clássica de associação entre pânico moral, crianças e racismo é a chamada “calúnia de sangue”, que acusa judeus de usar crianças de outras religiões em sacrifícios durante o Pessach.

Responsável por incitar diversas atrocidades antissemitas na Europa durante a Idade Média, a calúnia continua a ser repetida no Oriente Médio, e em partes da Ásia e da Europa Oriental. Na primeira década deste século, casos foram reportados no Egito, Arábia Saudita, Ucrânia, Bielorrússia e Rússia, de acordo com o livro Moral Panics: The Social Construction of Deviance.

Em tempos modernos, a mídia – e, mais recentemente, as mídias sociais – tem papel fundamental na disseminação de pânicos morais.

Esse papel pode parecer apenas ridículo, como o desempenhado por tabloides britânicos no movimento que levou ao estabelecimento de uma caçada a filmes de terror em videocassete no Reino Unido, na década de 80, para proteger as crianças de um supostos tsunami de conteúdo “indecente”, já que, diferentemente dos filmes exibidos em cinema, os lançados em vídeo não passavam pelo serviço público de classificação e censura. Só que mesmo o “apenas ridículo”, ao inspirar medos e ansiedades descabidos e desproporcionais, causa danos  psicológicos ou  gera desperdício de recursos públicos.

Mas, se nas mídias tradicionais podemos responsabilizar repórteres e editores por se comportarem de modo excessivamente crédulo ou alarmista na disseminação da notícia que leva a pânicos morais, no mundo da mídia social não há a quem culpar, além de nós mesmos.

Quando as autoridades indianas pediram ao WhatsApp que tentasse controlar o espalhamento de boatos que incitavam linchamentos,  estavam tentando controlar uma situação emergencial. No entanto, as condições de fundo – a credulidade humana, a sensibilidade a questões envolvendo crianças e percepção de risco infantil, a desconfiança e o ódio racial – independem da ferramenta.

É preciso esforço consciente para resistir aos apelos emocionais de mensagens que sugerem que “nossos filhos” estão em perigo, ainda mais quando essas mensagens vêm de fontes aparentemente confiáveis, sejam veículos de mídia estabelecidos ou, no caso de mídias sociais, parentes e amigos.

Resistir ao apelo não é, claro, ignorar todo e qualquer alerta: existem, afinal, perigos reais por aí. Mas reações imediatas ou exacerbadas de pânico dificilmente serão a melhor resposta, mesmo numa situação de risco concreto.

 

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da revista Questão de Ciência

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