Raízes do movimento antivacina no Brasil

Dossiê Questão
18 ago 2022
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Em maio de 2022, diferentes grupos antivacina, articulados no aplicativo de mensagens Telegram, começaram a divulgar o Primeiro Encontro dos Invisíveis Experimentais, que aconteceria em julho de 2022 em São Paulo (SP). “Invisíveis” porque as pessoas que teriam apresentado sequelas graves da vacinação contra a COVID-19 estariam sendo negligenciadas pelos órgãos públicos e pela mídia. “Experimentais” porque teriam recebido imunizantes ainda em fase de testes. Nenhuma das afirmações, claro, condiz com a realidade.

O material de divulgação apontava que o evento era organizado pela Abravac, a Associação Brasileira de Vítimas de Vacinas e Medicamentos, fundada em 2021 na cidade de Rio Branco, no Acre. É a primeira organização antivacina estruturada, com sede e tudo, do país. Pagando R$ 35 de ingresso, qualquer interessado poderia acompanhar as apresentações previstas para o Encontro, tanto online quanto presencialmente – médicos, advogados, cineastas, jornalistas contrários à vacinação e supostas “vítimas” das injeções marcariam presença. Todo o dinheiro seria destinado para a Abravac.

O Primeiro Encontro dos Invisíveis Experimentais enfim ocorreu no dia 17 de julho, no hotel Pestana (São Paulo/SP), cujo diretor de operações para a América Latina divulga materiais bolsonaristas e antivacina nas redes sociais.

Na entrada do evento, um segurança pediu para o nosso repórter levantar a camiseta e mostrar que não estava armado. Depois, comentou-se no palco que os responsáveis pela segurança eram policiais à paisana.

Os organizadores disponibilizaram 250 vagas presenciais, mas nem metade do salão foi tomada. Nas paredes, alguns cartazes exibiam fotos de pessoas que, supostamente, teriam sofrido problemas graves de saúde, ou até mesmo morrido, depois de serem imunizadas contra a COVID-19. Outros traziam o logo da Abravac, com um PIX para doações.

A primeira palestra já levou ao palco a estrela do evento: a otorrinolaringologista Maria Emília Gadelha Serra. Ela mantém uma clínica de medicina alternativa em uma região nobre da capital paulista, onde cobra R$ 1.800 por consulta e mais R$1.590 por uma “bioressonância”, feita por um aparelho de “análise quântica” que supostamente verifica o “estado do corpo e do psicológico. A atendente da clínica também oferece, já ao primeiro contato, a possibilidade de um procedimento de “reversão vacinal” – que anularia os efeitos perversos da vacina contra o SARS-CoV-2.

Durante a palestra, Gadelha relembrou o início da trajetória que a levaria à militância antivacina: “Em um primeiro momento, decidi estudar perícias médicas e, em uma reunião em Brasília, me apresentaram o caso da vacina do HPV no Acre. Eu nunca tinha ouvido falar de algum problema com essa questão no Brasil”.

A médica se referia a um caso ocorrido em 2015, quando algumas adolescentes de Rio Branco, capital do Acre, apresentaram reações como dores de cabeça, desmaios e convulsões após receberem a vacina contra o HPV.

Ao investigar o caso a fundo, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) descobriram que os sintomas decorriam de crises psicogênicas – eram provocadas pelo medo de se vacinar, e não por componentes da vacina em si. Como as jovens afetadas não receberam, de início, atendimento adequado ou atenção das autoridades, a história ganhou corpo na região, inclusive na imprensa e entre parlamentares. O medo espalhou-se, e mais casos pipocaram. “É o que se chama de reação psicogênica em massa”, atesta José Gallucci-Neto, psiquiatra da USP que participou do estudo citado. A Revista Questão de Ciência já abordou o tema em detalhes (clique aqui).

Em 2019, Gadelha esteve em Rio Branco. Segundo fontes diversas, ela se apresentava como enviada de Damares Alves, ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Sem documentos oficiais que comprovassem isso, usava uma foto com Damares como credencial. Além de criticar o imunizante para HPV, defendia “tratamentos alternativos” para lidar com as supostas sequelas da vacina. A ozonioterapia, que ela oferece, era a principal bandeira.

A médica chegou a conseguir uma audiência na Assembleia Legislativa do estado para apresentar suas ideias, e fez lobby pela ozonioterapia junto a políticos locais. “Ela não chegou a oferecer diretamente, mas dava indícios. E dizia que iria comprovar os efeitos negativos da vacina do HPV, mas sem trazer dados”, destaca Alysson Bestene, que era secretário de Saúde do Acre na época.

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Socorro Martins, chefe da Vigilância Epidemiológica de Rio Branco, corrobora: “Eu me lembro de uma médica que veio tentar colocar a ozonioterapia como um tratamento para reverter o quadro das jovens”.

 

Interesses próprios e alheios

Em sua cruzada antivacina, Gadelha insiste que diversos pediatras têm conflito de interesses ao defender os imunizantes, porque são donos de clínicas de vacinação e palestram em eventos patrocinados por indústrias farmacêuticas.

Mas Gadelha, por sua vez, é próxima de um dos principais fabricantes de geradores de ozônio no país. Em 2005, ela fundou a Sociedade Brasileira de Tecnologia em Ozônio com o cardiologista Edison de Cezar Philippi, dono da Philozon, em Santa Catarina. Philippi morreu logo depois, mas a empresa seguiu próspera com a filha dele, a farmacêutica Leticia Phillippi, e faturou R$ 35 milhões em 2021, segundo reportagem da revista Exame. Hoje, Letícia Phillippi é diretora secretária da Associação Brasileira de Ozonioterapia (Aboz), enquanto Gadelha dirige a Sociedade Brasileira de Ozonioterapia Médica, a Sobom. Ambas fizeram lobby, juntas, pela ozonioterapia no Congresso Federal, nas assembleias estaduais, e no Conselho Federal de Medicina (CFM).

As duas até viajaram juntas em 2019 para Portugal, a convite de deputados, para conhecer a prática da ozonioterapia em terras lusitanas. Essa viagem foi paga, pelo menos em parte, com dinheiro público, já que as despesas com hospedagens e passagens estão lançadas nos relatórios dos parlamentares e na Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa.

“Vou citar aqui um sonho que envolve uma conquista para a população brasileira: que o CFM regulamente a ozonioterapia para disponibilizarmos a técnica para ainda mais pessoas”, disse Phillippi em entrevista para o site da Jovem Pan, em maio de 2022.

Atualmente, a ozonioterapia é considerada uma prática experimental pelo CFM no Brasil. Em teoria, só pode ser aplicada por odontologistas e fisioterapeutas, ainda que pese a falta de evidências de eficácia e segurança. A técnica não tem comprovação científica para tratamentos médicos, e é banida desde 2003 para fins medicinais nos Estados Unidos. A Food and Drug Administration (FDA) alerta que “o ozônio é um gás tóxico sem aplicação médica conhecida e útil em terapias preventivas, específicas ou adjuvantes”. Relatos na literatura científica apontam que o procedimento pode desencadear embolia pulmonar, entre outras reações adversas.

A militância contra a vacina para HPV trouxe certa notoriedade a Gadelha. Durante a pandemia de COVID-19, ela logo se colocou contra os imunizantes para a doença causada pelo vírus SARS-CoV-2. No evento Invisíveis Experimentais, afirmou, sem provas, que existiria um complô da indústria farmacêutica, com a participação dos bilionários Bill Gates e George Soros, para emplacar as vacinas. Essa postura fez seu nome circular ainda mais, principalmente em esferas bolsonaristas. Há uma foto dela ao lado do atual presidente, e a médica costuma frequentar manifestações de apoiadores de Bolsonaro.

Em 2021, Gadelha participou da fundação da Abravac. “Eu fico pensando como eu desembarquei lá no Acre, e toda essa mudança que começou. Tanto que resultou na fundação da Abravac, que agora está aí mais estruturada, organizada”, discursou durante o evento.

Atualmente, a médica é candidata a deputada federal pelo estado de São Paulo, pelo PRTB, o Partido Renovador Trabalhista Brasileiro. Em suas redes sociais, há imagens da campanha com o logo da Abravac.

 

Uma viagem a Rio Branco

A reportagem esteve na capital do Acre para verificar o impacto do movimento antivacina, instigado por Gadelha, nas taxas de vacinação do estado. Rio Branco é a terceira capital menos povoada do Brasil, com cerca de 420 mil habitantes.

Depois das reações psicogênicas em massa, a cobertura de diferentes imunizantes despencou. “Para ter ideia, nós só conseguimos atingir a cobertura adequada para a vacina BCG [contra a tuberculose] porque a criança não costuma sair da maternidade sem ela”, lamenta Socorro Martins, da Vigilância Epidemiológica.

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É verdade que as coberturas nacionais estão em queda por motivos que vão além da desinformação. Em 2021, 51% das crianças brasileiras completaram o esquema vacinal contra o sarampo, o que é muito pouco. Para evitar surtos, a meta é de 95%. No Acre, contudo, esse número ficou em 25%.

A vacina contra HPV, então, sofre muito mais. Em 2014, quando começou a ser aplicada no país, mais de 90% dos adolescentes do estado tomaram a primeira dose. Dois anos depois, em 2016, quando o caso das supostas vítimas da vacina ganhava fôlego, a taxa havia caído para cerca de 10%. E, em 2019, a cobertura despencou para um incrível 1%. De 3.439 meninas e meninos na faixa etária dos 9 anos que poderiam tomar a vacina na capital, Rio Branco, só cinco foram imunizados (0,15%).

No Brasil inteiro, a cobertura vacinal do HPV está em 55% para meninas e 36% para meninos. É péssimo, mas muito melhor do que a situação acreana. E isso porque esse vírus causa praticamente todos os casos de câncer de colo de útero, uma doença que mata 5 mil brasileiras por ano. Gallucci-Neto reitera que, além do medo, a vacina do HPV é vítima do conservadorismo brasileiro. Como esse vírus é transmitido pelo sexo, muita gente pensa que a vacina estimularia a iniciação sexual precoce. Estudos já descartaram essa hipótese.

“As vacinas do HPV estão vencendo nos postos”, afirma Martins. E, infelizmente, isso também tem ocorrido em razão da resistência dos próprios profissionais de saúde da região, e dos aplicadores de vacina. Em visita a três Unidades Básicas de Saúde (UBS) de Rio Branco em julho de 2022, verificou-se que apenas uma oferecia o imunizante. Nas outras duas, agentes públicos alegaram que a vacina não estava disponível. Daíla Timbó, gerente do Centro de Referência de Imunizações Especiais (CRIE) da cidade, estranhou essa desculpa. Segundo ela, há doses de sobra – basta que o posto peça a reposição.

Osvaldo Leal, médico do mesmo CRIE, presenciou um caso ainda mais escancarado de resistência por parte de profissionais que, no papel, têm a reponsabilidade de promover e aplicar a imunização. Uma vacinadora – conhecida sua – tentou convencê-lo a não vacinar a filha contra o HPV. “Era uma pessoa experiente, mas essa mentira acabou seduzindo até os servidores. Até porque eles também fazem parte da sociedade”, destaca.

Nesse contexto, Gallucci-Neto destaca que o governo federal atual, que já adotou discursos anticientíficos diversas vezes, estimula situações do tipo: “A gente nunca imaginou que um ministério levaria membros do movimento antivacina para falar em audiências públicas, de igual para igual, com cientistas. Eles conseguiram criar esse ‘doisladismo’ na vacinação”.

O psiquiatra se refere à audiência pública convocada pelo Ministério da Saúde no início de 2022 sobre a vacinação da COVID-19 em crianças. De acordo com ele, esse tipo de debate pode afetar principalmente pessoas mais fragilizadas – justamente os alvos primários das pseudociências. 

Um exemplo de Rio Branco: após o caso das jovens com reação psicogênica ter alcançado repercussão nacional, foi criado um protocolo especial de atendimento na Policlínica do Tucumã, um bairro da cidade. Havia neurologista, psiquiatra e psicólogos à disposição das adolescentes que sofriam com o problema. Mas a procura foi mínima. “Houve uma evasão”, aponta o promotor de Justiça Ocimar Sales Júnior, que cuida de casos relacionados à saúde no Ministério Público do Acre. Ele está no cargo desde o ano passado, no lugar de Gláucio Oshiro, que organizou o acolhimento e a investigação do caso que ficou conhecido como o das “meninas do Acre”, e evitou que a vacinação fosse suspensa quando a crise estourou.

Pessoas entrevistadas na policlínica contaram que Gadelha chegou a fazer uma reunião no local para tentar incluir a ozonioterapia como parte do protocolo de atendimento das meninas. Atualmente, só duas meninas são acompanhadas por lá – e por questões que nada têm a ver com a reação psicogênica. Mesmo assim, a agenda dos profissionais segue bloqueada em alguns períodos, para atender à possível demanda de dezenas de jovens.

 

Dentro da Abravac

Mesmo tendo pouco mais de um ano de existência e cobrando R$ 20 mensais de seus associados (além de aceitar doações), a Abravac é sediada em um bairro relativamente nobre de Rio Branco. É uma casa grande, recém-reformada, próxima ao Conselho Regional de Medicina do Acre, de universidades e da Avenida Ceará, uma das mais importantes da cidade.

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Apesar do estrago feito nas coberturas vacinais pela repercussão do caso do HPV, a Abravac, como instituição, mostra-se pouco relevante no cenário acreano. “A associação acaba não tendo muito impacto, hoje em dia, por aqui”, afirma Martins. Oficialmente, a primeira associação antivacina brasileira foi criada por mães de jovens que manifestaram reações psicogênicas após a vacinação contra HPV. Mas informações apuradas pela reportagem sugerem que a Abravac vem sendo utilizada como plataforma para a carreira política de Gadelha.

As redes sociais da associação estão repletas de vídeos e imagens da médica. Em um discurso na Avenida Paulista no dia 31 de julho, durante uma manifestação antivacina, a médica estampava nas roupas o logo da Abravac. Esse mesmo logo se encontra em uma de suas peças de campanha para deputada federal.

Além disso, um vídeo disponível no próprio site da Abravac mostra que a sede da instituição tem consultórios com macas, algo incomum para uma associação de pacientes. Nas redes sociais da entidade, informa-se que os sócios têm acesso a serviços que incluem procedimentos estéticos e… ozonioterapia.  

A reportagem questionou a diretoria da associação sobre se haveria alvará ou autorização oficial para o funcionamento de uma clínica médica na sede, sobre suas fontes de financiamento e sobre a ligação do grupo com Maria Emília Gadelha Serra. Após a promessa de que responderiam os questionamentos, não houve mais retorno. Entretanto, os contatos dos jornalistas que fizeram as perguntas foram divulgados em grupos antivacina mapeados pela reportagem – um modus operandi similar ao adotado por Gadelha ao criticar agências de checagem, durante o evento Invisíveis Experimentais.  

No mais, a Abravac ampliou seus ataques, passando a criticar o passaporte sanitário e as vacinas contra a COVID-19, em especial no público infantil – como Gadelha tem feito.

Em 2022, uma criança apresentou sintomas gastrointestinais depois de tomar a vacina do coronavírus em Brasileia, interior do Acre. Fotos suas foram parar nas redes sociais, e circulou um áudio em que uma voz masculina, identificada como de um “amigo” da Abravac, afirmava que o fígado da menina havia “derretido” e que ela estava internada em Unidade de Terapia Intensiva (UTI), precisando de doações. Investigação do comitê técnico estadual apontou que essa reação não teve nada a ver com a vacina. E nem há UTI na cidade.

Esse tipo de notícia falsa, no entanto, pode trazer repercussões. “No público de 5 a 11 anos, a gente alcançou no Acre apenas 40,76% com a primeira dose. Com relação à segunda, o número não passa de 14,32%”, calcula o promotor Sales Júnior.

 

Denúncia às traças

Em fevereiro de 2020, médicos e gestores de saúde pública respeitados se uniram para formalizar uma denúncia contra Gadelha no Conselho Regional de Medicina (CRM) do Acre. A reportagem teve acesso à denúncia, que dá detalhes do lobby antivacina feito pela médica, com os e-mails enviados a gestores e notícias falsas disseminadas na imprensa do Acre.

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Os denunciantes pedem a suspensão do registro da médica e a abertura de uma sindicância por:

 

Prestar falsas informações à imprensa, familiares e políticos.

Estimular pais e responsáveis a não vacinar os filhos.

Violar dois artigos do Código de Ética Médica, que versam sobre direito de escolha do paciente e proteção da sua intimidade.

 

Em maio de 2020, o CRM do Acre enviou a denúncia para o de São Paulo, o Cremesp, onde Gadelha tem registro. A medida é incomum, uma vez que, segundo o Código de Ética Médica, toda denúncia deve ser apurada no local onde a infração teria ocorrido. Questionado, o Cremesp afirmou que o processo corre em sigilo. Passados dois anos, os órgãos de controle interno da classe médica não chegaram ainda a uma conclusão sobre a procedência da denúncia. 

Já os profissionais de saúde envolvidos na história extraíram diversas lições do caso. Osvaldo, o médico do CRIE, cita a importância de investigar e dar uma resposta adequada sobre eventos adversos pós-vacina. “Não basta dizer que não tem a ver. É preciso buscar respostas precisas sobre o que aconteceu com aquela pessoa”, pondera.

No caso do Acre, os sintomas apresentados pelas jovens foram negligenciados em um primeiro momento, o que contribuiu para uma sensação de insatisfação que foi aproveitado por Gadelha e outros médicos antivacina.

A reportagem questionou, por e-mail, a médica e candidata sobre a natureza exata de seus laços com a Abravac e as críticas que sofre dos colegas de profissão, mas não obteve resposta.

 

Esta reportagem é fruto de uma parceria entre o Instituto Questão de Ciência e o podcast Ciência Suja, que discute casos em que a ciência foi deturpada ou mal utilizada. Há um episódio sobre este mesmo caso já disponível nos principais tocadores.

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