Conspiracionismo e a tragédia brasileira na COVID-19

Dossiê Questão
5 mar 2021
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Conhecimento é poder, diz o antigo adágio atribuído ao pensador britânico Francis Bacon (1561-1626). Ao longo de séculos, a informação e o acesso a ela serviram como instrumento de controle político. O desenvolvimento tecnológico, no entanto, tornou esta estratégia cada vez mais difícil para os poderosos. Da prensa de tipos móveis de Gutenberg, que fomentou a revolução cultural e científica do Iluminismo e seu lema sapere aude (“ouse saber”), aos meios de comunicação em massa modernos, a informação passou a circular com facilidade e velocidade, culminando na Internet dos dias atuais. 

É irônico, portanto, que justamente esta grande rede global tenha chegado para provar, definitivamente, que não era a falta de acesso à informação o problema, mas a própria condição humana e a forma como pode ser explorada por atores sociais variados para os mais diversos fins.

Com sua abundância de fontes informativas e informação , estilos, a Internet e suas redes sociais tornaram-se veículos preferenciais para o conspiracionismo e a disseminação de suas teorias estapafúrdias e boatos infundados. Disfunção que se agravou com contornos letais na crise sanitária da pandemia de COVID-19. É o que mostram perfis brasileiros como os de “João”, “Maria” e “José”, cada um deles uma personalidade fictícia composta de comportamentos e opiniões, infelizmente, muito reais.

 

Personagens fictícios, discursos reais

João não acha que a COVID-19 existe. Para ele, a doença foi inventada por governos e grandes corporações, mancomunados com o objetivo de obrigar as pessoas a se vacinarem e, assim, rastrear seus movimentos, ou mesmo controlar suas mentes, com chips conectados a redes de telefonia 5G. Segundo João, as milhões de mortes registradas como por COVID-19 ao redor do mundo na verdade aconteceram por causas comuns, como ataques do coração, derrames e câncer, e já fazem parte do plano de extermínio da população global para a criação de uma tecnocracia de uma “Nova Ordem Mundial” sob a égide de bilionários como Bill Gates, fundador da Microsoft, e o megainvestidor George Soros.

Maria, por sua vez, não tem medo da COVID-19. Para ela, a doença não passa de uma “gripezinha”, que pode ser prevenida ou curada com tratamento precoce. Segundo Maria, toda discussão em torno da COVID-19 e da falta de comprovação científica da eficácia dos “remédios baratos e sem efeitos colaterais” que, acredita, podem protegê-la tem como objetivo beneficiar a indústria farmacêutica, que só quer lucrar com a falsa crise. Maria tem medo é da vacina. Por isso só consome produtos naturais, e quando fica doente, só se trata com homeopatia e florais de Bach.

Já José mal sai de casa há quase um ano. Asmático e assustado com as notícias da pandemia, seguiu à risca as medidas preventivas, só indo para a rua quando estritamente necessário, mantendo distância das outras pessoas e sempre usando máscara. Ansioso e à beira de uma crise de pânico, ele ainda espera que em algum momento a dita imunidade de rebanho venha para libertá-lo, pois também desconfia das vacinas. Para João, tomar ou não estas vacinas desenvolvidas às pressas, com baixa eficácia e sem ter sua segurança “devidamente testada”, não fará diferença, e não pretende servir de “cobaia” para elas.

Atitudes e ideias assim, nestas ou outras combinações, encontram-se em inúmeras discussões, postagens, comentários e vídeos de brasileiros publicados em redes sociais como Facebook, Twitter, Instagram e YouTube, ou compartilhados em aplicativos de mensagens como o WhatsApp.

Em meio à maior crise sanitária global em mais de um século, com milhões de doentes e mortos, restrições sociais e economias em frangalhos, a desinformação e as teorias conspiratórias a ela associadas encontraram, na velocidade e no poder agregador da internet, campo fértil para crescerem e se multiplicarem, num processo que arrisca jogar por terra o esforço de cientistas de todo o mundo para produzir, em tempo recorde, a única saída real, viável e segura da pandemia, as vacinas, e ameaça a própria democracia. 

Pesquisas recentes indicam que de um quarto a 40% dos americanos não pretendem se vacinar contra a COVID-19, enquanto no Brasil esta proporção variou de 22% para 17% nos últimos meses. Ambos os números põem em risco ou mesmo inviabilizam a eficiência da vacinação em massa como estratégia de controle da doença. Assim, estejam estas pessoas aferradas a paranoias delirantes como o controle mental no caso de João, guiadas pela desinformação e o negacionismo da “gripezinha” com tratamento precoce no de Maria, ou afetadas por boatos infundados e informações equivocadas como no de José, a hesitação vacinal, alimentada pelo conspiracionismo, tem forte impacto na saúde pública, e as teorias conspiratórias representam um perigo para a estrutura e organização política de nossa sociedade.

 

“Pensamento mágico”

Teorias conspiratórias não são exclusividade dos dias atuais, muito menos do Brasil. Histórias mirabolantes e explicações fantasiosas para eventos ou fenômenos comuns ou extraordinários acompanham a Humanidade há milênios, frutos de nossa quase instintiva capacidade de enxergar padrões, reais ou não, em tudo que nos rodeia, e da necessidade de procurar explicações para eles. Em épocas passadas, à falta de conhecimentos básicos sobre a natureza, tais explicações muitas vezes descambavam para o chamado “pensamento mágico” de forças divinas em atuação. 

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Assim, os poderosos, e por vezes letais, raios que caem do céu são sinais da ira de Zeus, e não descargas elétricas, enquanto terremotos são causados pelo debater de Namazu, um bagre gigante que vive sob a terra, e não pelo movimento ou acomodação da crosta de nosso planeta. Já epidemias poderiam ser creditadas aos humores e sabores de deuses, entidades ou miasmas ambientais de diversos tipos, nunca a micro-organismos invisíveis a olho nu.

O conspiracionismo, porém, vai além da fé ou da mitologia, embora muitas vezes use sistemas de crença formais e informais na sua estruturação, ou como eixo temático. As bruxas queimadas como emissárias da peste em tempos medievais têm mais em comum com as alegações de que as vacinas para a COVID-19 são feitas com fetos abortados do que parece. Acontece que, limitado pelo conhecimento científico moderno, o pensamento mágico muitas vezes amolda-se em busca de explicações que tragam o conforto mental da confirmação de crenças pessoais, numa associação de ideias, opiniões e preconceitos que é, em essência, a gênese de uma teoria conspiratória. O processo pode vitimar qualquer um.

"Não existe um perfil de um adepto de teorias conspiratórias, não há evidências robustas de diferenças individuais, traços ou características de personalidade que de fato determinem este comportamento, algo que a gente possa usar para discriminar ou classificar indivíduos numa população neste sentido”, diz Ronaldo Pilati, professor de Psicologia Social da Universidade de Brasília (UnB). “O que a literatura aponta é que existem mecanismos e processos sociais e cognitivos que são importantes para compreender o endosso a estas conspirações, e também relações. Uma delas é que pessoas que acreditam em uma teoria conspiratória tendem a acreditar em outras”.

Então, não é surpresa que, diante do choque de um mundo paralisado por um vírus microscópico, para algumas pessoas é mais fácil acreditar em um enredo mirabolante e complexo, como de que o SARS-CoV-2, o coronavírus que provoca a COVID-19, foi criado em laboratório e disseminado por uma conspiração internacional envolvendo milhares de pessoas num projeto secreto de dominação global, do que reconhecer uma cadeia de eventos fortuitos, como uma mutação aleatória de um micro-organismo “comum” que permitiu que ele saltasse de um morcego para outro animal e deste para infectar um cliente qualquer num mercado no interior da China, daí partindo para se espalhar pelo resto do planeta. Esse é um exemplo do que os estudiosos do conspiracionismo chamam de “raciocínio motivado”.

"O raciocínio motivado é uma dinâmica do nosso processo de funcionamento, da nossa cognição, em que quando você tem uma crença que quer sustentar, vai construir racionalizações e argumentos para poder dar um apoio aparentemente lógico e racional para ela”, explica Pilati.

 

Globalização

É preciso destacar outro aspecto essencial do conspiracionismo: seu caráter coletivo, social. Uma tese mirabolante de que o SARS-CoV-2, o coronavírus teria vindo do espaço – ainda que baseada na plausível, porém controversa, hipótese da chamada panspermia como origem da vida na Terra - que tenha só um divulgador, por exemplo, não passa de um desvario pessoal, a não ser que reúna mais adeptos e apoiadores.

"É fundamental encontrar outros indivíduos que acreditem na mesma coisa, tanto para a pessoa observar a validação social para sua crença, vendo outras que compartilham sua opinião, por exemplo, de que a Terra é plana, quanto como um ambiente para a troca de informações para validar estas crenças e elaborar convicções próprias via o raciocínio motivado”, conta Pilati. 

Mas ideias, como o vírus, levam tempo para se espalhar. O Iluminismo e a revolução científica e social que ele alimentou não lançaram o mundo, de imediato, na era das revoluções liberais. Nestas épocas mais vagarosas, com altas taxas de analfabetismo e comunicação via cartas que consumiam semanas, meses ou mesmo anos entre perguntas e respostas, o conspiracionismo muitas vezes se vestia de lenda.

Um exemplo culturalmente próximo disso é o Sebastianismo, movimento surgido no fim do século 16 em Portugal que profetizava a volta triunfal do rei Dom Sebastião I, desaparecido em 1578 na Batalha de Alcácer-Quibir, travada na região que é hoje o Marrocos. Seu sumiço mergulhou o país numa crise dinástica que descambou para a perda da independência com a instituição da União Ibérica sob a coroa do rei Felipe II da Espanha. Numa reação a esta incômoda realidade, muito portugueses negavam a morte do rei, que viria retomar seu trono e libertá-los da dominação estrangeira.

A influência do Sebastianismo na cultura portuguesa, e consequentemente na brasileira, no entanto, foi muito além do fim do domínio espanhol em 1640, com força suficiente para desencadear movimentos de caráter messiânico por aqui, séculos depois. Destes, o mais conhecido é o liderado pelo autodenominado “peregrino” Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro, que levou ao massacre de quase todos os estimados 25 mil habitantes do povoado de Canudos, no sertão da Bahia, em 1897. Essa tendência ao messianismo também pode ser vista na história moderna do Brasil, nas muitas vezes que a população seguiu e elegeu líderes que se apresentam ou buscam ser vistos como “salvadores da Pátria”.

O avanço tecnológico do século 20, no entanto, aumentou enormemente a velocidade e o alcance das teorias conspiratórias, num processo de globalização da desinformação que precedeu a econômica. Rádio, TV, cinema e literatura deram origem a uma verdadeira indústria cultural pela qual ideias e visões de mundo particulares – em especial de países majoritariamente originadores destes produtos, notadamente os EUA – podiam ganhar projeção global. Fenômeno que também permitiu ampliar o repertório de ideações conspiracionistas, a ponto de uma de suas vertentes se tornar um dos principais eixos temáticos do que podemos chamar de “conspiracionismo moderno”: os ETs e seus “discos voadores”.

Das páginas de H.G. Wells e sua “A Guerra dos Mundos” – originalmente publicada no mesmo1897 da Guerra de Canudos – à famosa dramatização radiofônica do livro do escritor britânico por Orson Welles que desencadeou pânico entre os ouvintes nos EUA de 1938, a ideia da interferência de formas de vida extraterrestre em nosso planeta infiltrou-se no imaginário popular para “explodir” globalmente logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, sob a sombra da Guerra Fria e do medo de um holocausto nuclear.

Em 24 de junho de 1947, o piloto privado e empresário americano Kenneth Arnold (1915-1984) avistou o que disse serem nove objetos brilhantes – ora descritos por ele como discos, ora como “pires” - voando em formação na região do Mount Rainier, um vulcão de quase 5 mil metros de altura. A notícia rapidamente ganhou o país, deflagrando o que ficou conhecida como a “onda de óvnis de 1947”, com mais de 850 relatos de avistamentos similares por todos dos EUA no espaço de apenas 30 dias entre junho e julho daquele ano. 

Levadas mais à frente por filmes de ficção científica de qualidade variada – de clássicos pacifistas como “O dia em que a Terra parou” a produções como “Plano 9 do espaço sideral” (Plan 9 From Outer Space), apontado como o “pior filme feito na história” –, e depois impulsionada por livros e séries de TV, a ufologia e a crença na visitação ou presença secreta de alienígenas no planeta – com ou sem o conhecimento ou beneplácito de autoridades governamentais e/ou lideranças econômicas – espalharam-se pelo mundo e também acabaram desembarcando no Brasil.

Aqui, ficaram notórios episódios como o da “invasão”, em 8 de março de 1980, da até então pacata cidade fluminense de Casimiro de Abreu, por uma multidão estimada em até 30 mil pessoas à espera do pouso de um “disco voador de Júpiter”. O “evento histórico” havia sido anunciado dias antes pelo ufólogo, “vidente” e autointitulado “mensageiro de Júpiter” Edílcio Barbosa, com ampla cobertura pela mídia nacional, incluindo o então recordista de audiência televisiva Jornal Nacional, e jornais como a Folha de São Paulo. 

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Mais recentemente, em 1996, tivemos o episódio do “ET de Varginha”, a suposta aparição de um alienígena na cidade do Sudoeste de Minas Gerais. Mais de 25 anos depois do episódio, as teorias de conspiração em torno dele continuam a circular. A depender da versão, incluem a participação de militares em sua suposta captura e posterior morte, com direito a uma autópsia numa sala secreta de uma inexistente instalação subterrânea da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no interior de São Paulo.

Tanto a “onda” de avistamentos de óvnis nos EUA em 1947 quanto o caso do ET de Varginha no Brasil são uma amostra da rápida disseminação coletiva do relato de uma experiência “extraordinária” a princípio eminentemente individual. No processo de “quem conta um conto aumenta um ponto”, muitas vezes a história original é distorcida, exagerada e entremeada por detalhes fantasiosos e mais fantásticos a cada interlocutor que a repassa.

Enquanto isso, a ânsia de participar do fenômeno leva alguns a personalizar a ocorrência alheia ou imaginar uma própria, o que foi apelidado como “efeito Will Smith”, numa referência ao ator americano estrela da franquia cinematográfica “Homens de Preto”, a partir de levantamento feito por David Clarke, pesquisador de ufologia e professor de comunicação e folclore da Universidade Sheffield Hallam, no Reino Unido. Com base nas leis de liberdade da informação, Clarke obteve dados do Ministério da Defesa britânico sobre avistamentos de óvnis no país desde os anos 1950, em que podem ser observadas explosões nos registros coincidentes com a estreia de alguns produtos midiáticos de grande sucesso relacionados ao tema.

 

Dimensões na psicologia

A expansão global e disseminação local do conspiracionismo, com efeitos cada vez maiores na “vida real”, seja na política, na economia ou na saúde pública, acabou por despertar a atenção de pesquisadores de diversas áreas. Assim, nos últimos anos, muitos têm se dedicado a estudar o fenômeno sobre variados aspectos.

Embora não possam traçar o perfil típico de um teórico da conspiração, os estudiosos já conseguiram identificar algumas características do que se pode chamar de uma “mentalidade conspiracionista”, como baixos níveis de confiança interpessoal e paranoia. Alguns estudos também encontraram o que parece ser uma fraca, porém significativa, relação com dois dos chamados “Cinco Grandes” (“Big 5”) fatores de personalidade que podem ser medidos por testes de autoavaliação – no caso, uma maior abertura para experiências e baixa amabilidade –, mas outros trabalhos falharam em replicar esses resultados.

Pesquisadores da Goldsmiths University of London também identificaram cinco grandes grupos temáticos, ou dimensões, em torno das quais as teorias conspiratórias costumam se estruturar. Com isso, eles criaram um formulário-teste para uma escala de “Crenças Conspiracionistas Genéricas” que, esperam, permitirá medir e ajudará nos estudos sobre diferenças individuais na ideação conspiracionista.

A primeira destas dimensões é a de governos maldosos, malfeitos e conspirações de alto escalão envolvendo lideranças políticas ou burocracias estatais, com o objetivo de se manter no poder ou tomar parte em práticas criminosas. Exemplos de teorias conspiratórias em torno deste eixo temático incluem o envolvimento direto ou indireto de governos em ataques terroristas como o 11 de Setembro nos EUA; acusações de assassinato de figuras públicas vistas como ameaça, como histórias de que a Princesa Diana foi morta a mando da família real inglesa; e o uso de cidadãos comuns como bodes expiatórios para esconder o envolvimento de autoridades em atividades criminosas.

O segundo grande grupo, por sua vez, envolve o “segredo” sobre a vida extraterrestre. Tais conspirações variam enormemente, incluindo desde interseções com a dimensão do “governo mau”, com o acobertamento sendo uma política oficial defendida a todo custo, à existência de organizações secretas dentro e fora das estruturas governamentais que mantêm relações com os ETs.

O terceiro tema genérico de ideação conspiracionista foi chamado de “conspirações globais maliciosas”, também se relaciona às anteriores. Nesta seara estão as crenças de que sociedades secretas ou pequenos grupos de indivíduos controlam os rumos do planeta e são os verdadeiros “donos do mundo”, como a “cabala” de bilionários da qual fariam parte Gates e Soros.

Já a quarta dimensão tem como eixo o bem-estar pessoal. Mais do que o fato de que toda conspiração é intrinsecamente maléfica e tem como objetivo prejudicar o indivíduo de alguma forma, como visto nos grupos anteriores, ela reflete preocupações mais imediatas e diretas da vítima – sua saúde, liberdade, modo de vida, ganha-pão –, abarcando ideações como a disseminação deliberada de doenças e tecnologias de controle da mente.

Por fim, o quinto grupo aponta para conspirações focadas no controle da informação, que num passo adiante ao acobertamento da existência de alienígenas também inclui teorias conspiratórias como a de que a indústria petrolífera abafa e esconde tecnologias que poderiam prejudicar seus negócios, cientistas manipulam evidências para enganar o público e outras ações de supressão ou fabricação de informações por governos, organizações, mídia e empresas por interesse próprio.

"Estas dimensões não são de maneira nenhuma mutuamente excludentes, e se pode observar em muitas amostras de teorias conspiratórias correlações entre elas”, conta Pilati. “Uma pessoa pode endossar uma e outra, até porque a necessidade cognitiva necessária para construir argumentos conspiratórios envolve várias destas crenças para ‘fechar o pacote’ e justificar uma ideia que não tem base na realidade factual”.

E na mente de um conspiracionista, isso acontece mesmo que uma crença contradiga outra e ambas sejam claramente refutadas por amplas evidências, num processo conhecido como dissonância cognitiva.

"A dissonância cognitiva é o processo que vai auxiliar a equilibrar estas crenças dentro da cognição do indivíduo”, explica Pilati. “Quando falamos em raciocínio motivado, é da construção de um argumento que tem como finalidade justificar uma crença específica. Assim, se há uma foto que contrarie o que acredito, vou dizer que ela foi manipulada. O que está operando para resolver esta discrepância é o mecanismo da dissonância. Estou adicionando elementos na minha crença para justificá-la”.

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Diante disso, Pilati também discorda em classificar o conspiracionismo como algo “irracional”.

"O raciocínio motivado tem como produto uma racionalização, mas que é diferente de um pensamento racional justamente por este levar em conta as evidências em contrário e contrabalançá-las com o que se acredita”, diz. “Tampouco a ideação conspiratória é sinal de burrice, falta de inteligência ou de cultura. Pelo contrário, temos exemplos de pessoas muito inteligentes que endossam ou disseminam alguma teoria conspiratória, até porque há uma relação da crença com a capacidade de elaborar argumentos que a sustentem, para se convencer ou convencer outros”.

Neste sentido, outra característica comum em pessoas adeptas do conspiracionismo é se julgarem altamente céticas quando, na verdade, são cínicas.

"Não existem evidências sistemáticas disso, mas pessoas que se avaliam com alto níveis de ceticismo têm uma tendência a ativar este gatilho do raciocínio motivado”, conta. “Quando você não acredita basicamente em nada, que tudo que se vê de evidência pode ter algo escuso por trás. Então, um nível muito alto de ceticismo acaba levando a pessoa a buscar informações e integrar grupos que fomentam sua crença em teorias conspiratórias, chegando ao ponto de se tornar um raciocínio cínico em que nada, nenhuma informação em contrário será levada em consideração, porque ela foi manipulada por algum interesse”. 

 

A pandemia

Uma grande diferença das ilusões em massa do passado para os delírios coletivos do presente, é que hoje a Internet funciona como uma plataforma ideal para atender simultaneamente aos requisitos sociais e cognitivos para o surgimento, desenvolvimento e disseminação de teorias conspiratórias. Vivemos em tempos que estas teorias se espalham, e adaptam, nas conexões de banda larga, angariando multidões de adeptos no caminho. Um exemplo disso, e com repercussões graves neste momento em que o mundo enfrenta uma pandemia, é o movimento antivacinas.

A desconfiança em torno das vacinas não é algo recente. Desde seu surgimento a partir do trabalho do médico e cientista britânico Edward Jenner no fim do século 18, a estratégia é alvo de medo e preconceito. Se hoje o presidente Jair Bolsonaro diz que quem tomar a vacina contra a COVID-19 pode “virar jacaré”, na época de Jenner críticos temiam que a inoculação os faria crescer chifres, tetas ou outras características de vacas.

O que podemos chamar de “movimento antivacina moderno”, no entanto, foi alimentado, principalmente, pela publicação em 1998 pela prestigiosa revista médica The Lancet de artigo de um grupo de pesquisadores liderado pelo ex-médico britânico Andrew Wakefield relacionando a vacina tríplice viral – contra sarampo, parotidite e rubéola – a casos de autismo em crianças. Wakefield começou a advogar contra a vacinação, ganhando as manchetes da imprensa britânica em 2002, quando o então primeiro-ministro Tony Blair se recusou a informar se havia vacinado seu filho Leo Blair, na época um bebê.

A partir daí, a desconfiança em torno das vacinas ganhou tração no Reino Unido e também nos EUA. Grupos antivacinação começaram a se articular e crescer, enquanto os índices de cobertura vacinal despencavam. Assim, o sarampo, declarado erradicado nos EUA em 2000, ressurgiu com força no país apenas cinco anos depois, provocando um surto no estado de Indiana atribuído a pais que se recusaram a vacinar os filhos, e vem tendo casos registrado em números significativos ano a ano desde então.

E, graças à comunicação online, não demorou muito para que o movimento antivacina e as teorias conspiratórias que o sustentam chegassem ao Brasil. Mesmo depois que o estudo de Wakefield foi desmascarado como fraudulento e removido dos anais da ciência, em 2010, o estrago estava feito. Aqui, os índices de cobertura vacinal da população infantil começaram a cair com força a partir de 2015, último ano em que boa parte estava acima da meta prevista pelo Ministério da Saúde, conta João Henrique Rafael Júnior, analista de comunicação do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP).

"O Brasil era uma referência mundial em vacinação, com um programa de imunização capaz de vacinar grande parte da população de um país de dimensões continentais”, lembra. “O problema da hesitação vacinal não surgiu com a pandemia de COVID-19, vem de alguns anos, e embora não possamos creditá-lo só aos grupos antivacina, eles acabaram ajudando a minar a tradicional confiança dos brasileiros nas vacinas”.

Com isso, lamenta João Henrique, a queda na cobertura vacinal se acentuou, até chegar a números que classificou como “assustadores” em 2019, quando pela primeira vez em 25 anos o país não conseguiu bater a meta de vacinar 95% do público-alvo em nenhuma das 15 vacinas do calendário anual. Preocupados, ele e outros pesquisadores da USP se uniram para criar a União Pró-Vacina (UPVacina), grupo de defesa e esclarecimento da estratégia de saúde pública, e passaram a monitorar e analisar a atuação de grupos antivacina brasileiros na Internet.

"Tentávamos entender porque os índices de cobertura vacinal estavam caindo tanto e começamos a fazer uma cartografia do movimento antivacina como há em outros países como os EUA, Itália e Leste Europeu”, rememora. “Começamos um monitoramento bem amplo das principais plataformas na internet – Facebook, Twitter, Instagram e YouTube, e percebemos que havia muito conteúdo antivacina circulando, principalmente no Facebook”.

Nesta rede social, os pesquisadores identificaram dois grandes grupos fechados que então somavam mais de 20 mil participantes, sendo um deles mais atuante e responsável por cerca de 80% do conteúdo produzido, grande parte baseado em teorias conspiratórias, informações falsas ou distorcidas. Situação que piorou com a eclosão da pandemia de COVID-19.

"Num primeiro momento, estes grupos aproveitaram a oportunidade para ecoar teorias da conspiração em torno do vírus e da doença, usando as mesmas estratégias de desinformação, repaginadas para a pandemia”, diz João Henrique. “Chama a atenção a capacidade de produção de conteúdos falsos destes grupos”.

Com isso, eles também acabaram extrapolando a esfera do movimento antivacina “tradicional” e seu foco em temores associados ao autismo, reproduzindo e disseminando desinformação de caráter político-ideológico, como a perda de liberdades individuais, pseudociências como ozonioterapia e defesa de “tratamento precoce” da doença e supostas objeções morais às vacinas, pela falsa afirmação de que são feitas com células de fetos abortados.

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Infiltração de temas que agora também inclui as chamadas teorias da conspiração QAnon. Movimento surgido em fóruns de discussão de extrema-direita dos EUA na chamada deep web (“internet profunda”), que não é acessada ou indexada por mecanismos de busca como o Google, o QAnon alega a existência de uma conspiração global formada por pedófilos canibais satanistas com o objetivo de derrubar o ex-presidente americano Donald Trump. Seus defensores são acusados de estarem por trás do episódio de invasão do Congresso do país em janeiro último.

Depois de se espalharem nos grupos antivacina dos EUA, estas teorias também ganharam espaço nos brasileiros. Monitoramento do UPVacina observou que assuntos referentes ao QAnon começaram a aparecer nos dois maiores grupos antivacina brasileiros no Facebook já em fevereiro do ano passado, com picos de engajamento em abril e julho. Ao todo, a análise encontrou 144 conteúdos, entre comentários e postagens incluindo vídeos, links, imagens e textos, que exibiam algum tipo de termo ligado ao movimento ou direcionavam os usuários para grupos ou sites específicos.

O avanço nas pesquisas das vacinas contra a COVID-19 e as primeiras aprovações e uso dos imunizantes deram novo fôlego aos grupos antivacina. Em seu relatório mais recente, publicado em 22 de fevereiro, o UPVacina destaca que, enquanto em meados do ano passado o número de publicações mensais em ambos os grupos alcançava, no máximo, 87, entre dezembro e janeiro elas somaram 368, que tiveram 3.942 reações, 1.313 comentários e 2.372 compartilhamentos.

Pressionado, no início de fevereiro o Facebook atualizou suas diretrizes e prometeu remover grupos e páginas que produzissem e compartilhassem informações falsas sobre COVID-19 e vacinas. Assim, em 10 de fevereiro, finalmente um dos grupos antivacina mais atuantes não pôde mais ser acessado na plataforma. 

"As plataformas digitais oferecem muitas ferramentas para que indivíduos apresentem suas ideias e visões de mundo e as disseminem”, avalia João Henrique. “Se por um lado isso pode ser positivo, por outro traz para espaços mais nobres algo que antes estava restrito aos porões, às franjas da sociedade. Ao derrubar uma das páginas antivacina, o Facebook agiu certo, mas de forma tardia. As plataformas digitais precisam trabalhar de maneira mais assertiva para que estes grupos voltem aos porões de onde nunca deveriam ter saído, pois, se esperarmos eles chegarem ao nível de articulação e organização que os movimentos antivacina têm em outros países, colhendo resultados financeiros com a venda de ‘produtos naturais’ ou outros charlatanismos, será desastroso”. 

Enquanto isso, no entanto, o outro grande grupo antivacina de brasileiros na rede social continua no ar e difundindo desinformação. Acompanhado desde o início de fevereiro para apuração deste artigo, este grupo, agora com 14,5 mil integrantes, trouxe neste período, além das esperadas notícias falsas sobre mortes relacionadas à vacina da COVID-19 e suspeitas quanto à sua segurança, teorias conspiratórias diversas envolvendo governos e indústria farmacêutica, exortações contra o uso de máscaras e outras medidas preventivas para a COVID-19 e ataques a cientistas como Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos EUA, que se tornou uma das principais vozes em defesa da ciência no combate à pandemia.

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Tudo isso entremeado por comentários que deixam patente a necessidade de autoafirmação e validação social da mentalidade conspiracionista. Entre eles, um se destaca pelo seu narcísico sentimento de importância, tal qual fora um super-herói, mas que na verdade deixa patente sua solidão e inadequação social.

"Nada de novo pra mim, nunca tive amigos, nunca pertenci a círculos ou comunidades. Achava que o problema era comigo. Nada disso!”, afirma o integrante do grupo. “Toda vez que preciso me socializar forçadamente com pessoas comuns, preciso fingir toda aquela conversa fiada e vazia. Nunca encontrei ninguém extraordinário, por isso nunca me interessei em ninguém. Aí está a prova! É como se todos nós que sabemos da verdade fôssemos escolhidos, é uma honra imensa saber a verdade”.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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