Terapia de imersão no gelo pode ser uma fria

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21 mai 2024
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urso polar

 

Em janeiro de 2020, a RQC publicou uma resenha sobre o Goop Lab, uma série documental estrelada pela atriz Gwyneth Paltrow, fundadora da marca Goop, e sua equipe. Na série, exploraram-se drogas psicodélicas, terapias alternativas e mediunidade.

Dentre tantas bizarrices apresentadas, é curioso notar que a prática de banhar-se em águas extremamente geladas, popularizada pelo atleta holandês Wim Hof (que abordaremos em outra seção), foi uma das que mais conquistou adeptos. Minha aposta era na manipulação dos “campos energéticos”, algo que também já discutimos aqui.

De acordo com matéria publicada no jornal O Globo, a hashtag “banho de gelo” (ou icebath, em inglês) acumula mais de 100 mil citações no Tik Tok e já conquistou diversas personalidades famosas, incluindo atores e modelos.

A tendência abriu espaço para um negócio lucrativo. Se antes as pessoas enchiam um recipiente grande improvisado, como uma lata de lixo, com água e gelo, hoje existem empresas que comercializam tudo junto em um único produto. Essa é a proposta da Gelo Health, companhia que desenvolveu uma banheira motorizada que permite o resfriamento da água em até 4º C, facilitando todo o processo.

A empresa alega uma série de benefícios da imersão em água fria, como tratamento da dor e  inflamação, além de melhoras na depressão, perda de peso, aumento da imunidade e na função cerebral, sendo que, nesta última, eles dão a entender que a prática pode ser uma medida preventiva e econômica contra demência, antes do aparecimento dos sintomas – uma interpretação equivocada, para não dizer mal-intencionada, do estudo “Translating whole-body cryotherapy into geriatric psychiatry – A proposed strategy for the prevention of Alzheimer’s disease”, de que trataremos logo mais.

Antes de você entrar em uma fria – em vários sentidos – é necessário salientar que, com exceção dos dois primeiros benefícios mencionados (dor e inflamação), os demais não têm respaldo científico adequado ou nem sequer estudos científicos confiáveis.

Só para exemplificar a situação, a Gelo Health faz uso do artigo supracitado para afirmar que a imersão em água fria poderia prevenir demência. Se lermos somente o resumo do artigo, teríamos a falsa impressão de que a crioterapia como ferramenta neurológica está em estágios avançados de pesquisa.

No entanto, ao ler o artigo na íntegra, constatamos que as autoras estão, na verdade, levantando uma hipótese com base na seguinte lógica: “a doença de Alzheimer é uma soma de alterações vasculares, estresse oxidativo e resposta inflamatória. Como a crioterapia de corpo inteiro, aparentemente, suprime o estresse oxidativo e a inflamação, é possível que ajude a prevenir a doença”.

Como as próprias autoras ressaltam, essa hipótese precisa ser, primeiro, confirmada em modelos animais. Depois, será necessário concentrar-se em estudos observacionais de longo prazo e em estudos de casos controle em humanos.

Em outras palavras, ainda falta muito para que se possa afirmar, com algum grau de honestidade científica, que banhos gelados previnem a demência e, mais especificamente, o Alzheimer.

Encerrando esta primeira parte, destaco que, a partir da próxima seção, não abordaremos simplesmente a imersão em banhos gelados, mas também uma prática semelhante que envolve a exposição ao frio combinada a outras ações.

 

Wim Hof e sua técnica

Wim Hof, também conhecido como “The Iceman”, é possivelmente o maior disseminador desta prática. Ele é um palestrante motivacional e o criador do método Wim Hof (WHM), que combina exercícios de respiração, exposição ao frio, alongamentos, meditação e “comprometimento”. Além disso, Hof é um atleta radical, com vários recordes mundiais registrados no Livro Guinness, incluindo nadar sob o gelo e percorrer uma meia maratona, descalço, no gelo e na neve.

O ebook The Journey of The Iceman: Wim Hof’s Secrets to Defying Science, disponibilizado em seu site, conta um pouco mais de sua trajetória, os desafios encontrados e o que o levou a criar o método.

Hof afirma que os exercícios de respiração que propõe permitem que o praticante mergulhe em sua natureza interior e mude seu estado de estresse para um momento de calma e paz. Além disso, o atleta acredita que a exposição ao frio aquieta as preocupações da vida e ativa respostas de saúde, permitindo que o corpo se recupere.

Por fim, os exercícios de meditação e alongamentos são realizados com a intenção de manter o praticante centrado, permitindo que a mente e o corpo se realinhem, que resultaria em uma vida equilibrada.

Ainda de acordo com o ebook, o método Hof é indicado para todas as pessoas que desejam aumentar a sensação de “sentirem-se vivas”, melhorar a qualidade geral de bem-estar e se sentirem mais concentradas. Entretanto, é importante destacar que gestantes, pessoas com epilepsia, problemas cardíacos e outras condições de saúde não devem iniciar a prática sem consultar um médico.

Caso você não esteja em um desses grupos de risco, alega-se que o método pode trazer inúmeros benefícios, como aumentar a energia, o foco, a criatividade e a determinação; reduzir os níveis de estresse; melhorar o sono; e influenciar o sistema imune.

O ebook contém uma subseção intitulada “Provas científicas”, na qual são apresentadas pesquisas que testaram o WHM e verificaram resultados significativos, como a diminuição da resposta inflamatória e aumento dos níveis de cortisol, um hormônio relacionado ao estresse, mas que também desempenha um papel na resposta inflamatória e na função imune.

Obviamente, é importante encarar esses resultados com um certo ceticismo, considerando o claro conflito de interesse por parte de Wim Hof e sua equipe, que lucram com cursos online, livros, treinamentos para se tornar instrutor e eventos presenciais com o próprio Iceman - um final de semana pode chegar a custar 1.499 libras, ou cerca de R$ 10 mil.

 

O que diz a ciência

Dentre os inúmeros pesquisadores que investigaram o WHM, temos a equipe de Kox, M. e colaboradores. Na pesquisa intitulada “Voluntary activation of the sympathetic nervous system and attenuation of the innate immune response in humans”, eles avaliaram os efeitos do programa de treinamento no sistema nervoso autônomo e na resposta imune inata (uma resposta rápida e não dependente de células especializadas).

Foram recrutados 24 voluntários saudáveis do sexo masculino, sem experiência com meditação. Foram randomizados para o grupo intervenção (receberam um treinamento de 10 dias que incluía meditação, exposição ao frio e técnicas de respiração), ou para o grupo controle. Após esse período de treinamento, todos os voluntários foram expostos a material biológico derivado da bactéria Escherichia coli, com o objetivo de produzir uma resposta imune inata. Coletaram-se amostras de sangue para a análise. Também avaliou-se temperatura, sintomas relatados durante o experimento e parâmetros cardiorrespiratórios.

Como resultado, verificou-se que o grupo intervenção, submetido às técnicas de respiração que induziram hiperventilação (aumento da frequência respiratória), apresentou um aumento no pH sanguíneo e uma redução nos níveis de PCO2 (pressão parcial do de dióxido de carbono) e bicarbonato, indicando um cenário de alcalose respiratória. Isso levou a um aumento significativo nos níveis de epinefrina (também conhecida como adrenalina), um hormônio com ação estimulante no organismo. Essa resposta hormonal precoce desencadeou a produção de interleucina-10, uma proteína com propriedades anti-inflamatórias, que atenuou a resposta imunológica pró-inflamatória.

O grupo de intervenção experimentou menos sintomas semelhantes aos da gripe e uma normalização mais rápida da febre e dos níveis de cortisol, o que também indica uma atenuação da resposta pró-inflamatória.

Com base nesses resultados, os autores concluíram que este estudo de “prova de conceito” demonstra que o sistema nervoso simpático e o sistema imune podem ser voluntariamente influenciados pela prática de técnicas que são relativamente fáceis de aprender em pouco tempo.

Estudos de “prova de conceito” representam uma etapa inicial no desenvolvimento clínico de um medicamento, geralmente conduzidos após o medicamento ter demonstrado potencial em testes de segurança iniciais e modelos animais. Esses estudos são tipicamente realizados em pequena escala e são projetados para identificar um sinal de que o medicamento tem ação biológica relevante, ou para fornecer uma evidência preliminar de eficácia.  

Os autores reconhecem que o aumento da epinefrina pode ter sido causado pelas técnicas de respiração, mas não conseguem distinguir qual dos exercícios foi responsável por esse resultado, nem se os outros elementos do treinamento podem ter afetado a resposta imune inata.

Em outras palavras, como o treinamento foi composto por uma tríade de ações, apenas um ensaio que realizasse uma comparação entre elas poderia afirmar, com maior confiabilidade, qual medida foi a responsável pelo desfecho observado.

Como muitas questões continuaram sem respostas, Almahayani, O. e Hammon, L. publicaram uma revisão sistemática intitulada “Does the Wim Hof Method have a beneficial impact on physiological and psychological outcomes in healthy and non-healthy participants? A systematic review”. Os pesquisadores realizaram uma busca nos bancos de dados Medline e Web of Science e procuraram por estudos publicados de 2014 até julho de 2022. Como critérios de inclusão, foram considerados apenas ensaios clínicos randomizados (RCTs) e estudos de coorte publicados em revistas com revisão por pares, conduzidos em indivíduos saudáveis ou com alguma condição clínica pré-existente, com idade superior a 14 anos, e que utilizaram os três pilares do WHM ou focaram exclusivamente no método de respiração Wim Hof (WHBM).

Ao todo, foram identificados nove estudos que preencheram os requisitos estabelecidos, incluindo cinco RCTs, três RCTs tipo crossover e um estudo observacional de coorte prospectiva. A exposição ao frio foi estudada em todos, embora a duração da exposição tenha variado entre eles.

Numa análise de qualidade, todos os estudos RCT, exceto um, foram classificados como apresentando uma “alta preocupação” em relação ao viés, principalmente devido à dificuldade em cegar os participantes e os pesquisadores durante a intervenção – algo impraticável por conta da própria natureza da intervenção. O estudo de coorte foi considerado inaceitável, pois não conseguiu reduzir adequadamente o risco de viés ou controlar as variáveis de confusão.

Após analisar os desfechos encontrados, os autores sugerem que o WHM parece oferecer mais benefícios nas categorias de resposta ao estresse e inflamação. A prática, aparentemente, pode reduzir esta última em participantes saudáveis e não saudáveis, sem causar eventos adversos graves. Contudo, salientam que os resultados devem ser interpretados com cautela, pois a qualidade dos estudos foi considerada extremamente baixa e os participantes podem ter experimentado o efeito placebo, especialmente em relação às avaliações subjetivas, como melhora dos sintomas e desfechos psicológicos.

Ademais, é importante ressaltar que todas as pesquisas foram compostas por amostras pequenas, variando de 15 a 48 participantes por estudo, e predominantemente do sexo masculino (86,4%), o que limita a generalização dos resultados para outros públicos.

Por fim, os autores concluem que o WHM pode produzir efeitos imunomoduladores promissores, mas ressaltam a necessidade de mais pesquisas, de maior qualidade, para corroborar essa possibilidade. Além disso, apontam que a combinação de exposição ao frio com o método de respiração Wim Hof, em comparação com a respiração isolada, parece ser a forma mais eficaz de reduzir a resposta inflamatória.  

Apesar dessa conclusão aparentemente positiva em relação à prática, os autores reconhecem que, devido ao alto risco de viés, ao tamanho pequeno das amostras e à falta de cegamento, são necessárias mais evidências sobre o WHM antes que possa ser recomendado ao público.

 

O veredito

Até o momento, temos muitas alegações e poucas evidências sobre o método Wim Hof. Apesar da baixa qualidade dos estudos e do alto risco de viés, é possível que a prática, de fato, atenue processos inflamatórios e o estresse. No entanto, os demais benefícios propostos continuam no limbo e, até termos evidências concretas, devem permanecer assim.

Possivelmente, a posição mais sábia a ser considerada é a expressa por Lichtenbelt, W. em seu artigo “Who is the Iceman?”, transcrevendo:

“Há uma ressalva associada ao método Wim Hof que precisa ser considerada: o risco de as pessoas acreditarem que o método é cientificamente válido. Wim é um orador habilidoso, porém seu vocabulário científico pode ser confuso. Com convicção, ele utiliza termos científicos e os apresenta como evidências irrefutáveis. Infelizmente, isso pode convencer pessoas menos letradas em ciência a aceitar suas afirmações como verdadeiras. Além disso, dentro deste grupo, há várias pessoas gravemente doentes que têm recorrido ao método como uma última esperança.

"Ao praticar o método Wim Hof, é essencial ter bom senso (por exemplo, não hiperventilar antes de submergir na água) e manter as expectativas baixas. Embora os efeitos na saúde ainda necessitem de comprovação científica, algumas pessoas podem se sentir mais saudáveis”.

 

Mauro Proença é nutricionista

 

REFERÊNCIAS

RISSATO, L. Moda entre famosos, imersão em banheiro de gelo conquista adeptos. 2024. Disponível em: https://oglobo.globo.com/ela/noticia/2024/03/09/moda-entre-famosos-imersao-em-banheira-de-gelo-conquista-adeptos.ghtml.

MISIAK, B. e KIEJNA, A. Translating whole-body cryotherapy into geriatric psychiatry a proposed strategy for the prevention of Alzheimer’s disease. Med Hypotheses. 2012 Jul;79(1):56-8. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/22541861/.

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