Alquimia floral, pseudociência nacional

Artigo
8 mai 2024
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alquimista

 

Não tenho o costume de comentar sobre o meu antigo emprego. Além de rememorar situações estressantes e, em muitas ocasiões, embaraçosas, eu sentia vergonha ao explicar minhas funções. Mas foi um divisor de águas na minha trajetória: além de me obrigar a exercitar o senso crítico, me permitiu conhecer muitos praticantes e usuários de pseudociências menos convencionais.

Dentre esses encontros, recordo-me parcialmente de uma conversa com um casal de alquimistas florais. Nunca tinha ouvido falar do assunto, e eles simpaticamente me explicaram do que se consistia a prática, suas aplicações diárias em muitos pacientes e como poderia ser utilizada concomitantemente com outros suplementos e substâncias benéficas para o organismo para fortalecer o sistema imune e prevenir doenças.

Além disso, eles me aconselharam, caso tivesse interesse, a pesquisar sobre o AlkhemyLab de Joel Aleixo, uma das maiores referências brasileiras no assunto. Agradeci-os, anotei as informações, já pensando em como poderia render um artigo, e voltei ao trabalho.

Isso ocorreu em 2022 e, como surgiram notícias muito mais importantes, acabei deixando o tema de lado. Além disso, havia mais de dois anos que não ouvia nada sobre a prática, o que poderia indicar que não estavam mais atraindo adeptos. Infelizmente, eu estava muito enganado.

Em um momento de descontração, enquanto assistia ao YouTube, recebi uma notificação de que o Paranormal Experience, um podcast que dá espaço para entrevistados falarem sobre diferentes sistemas religiosos, culturais e filosóficos estava começando uma live com o nome “Olhar da Alquimia para o mundo - Joel Aleixo”.  Naturalmente, encarei isso como um sinal do Monstro do Espaguete Voador para assistir às três horas de transmissão e me aprofundar sobre a alquimia floral.

De acordo com as narrativas autobiográficas encontradas em vídeos e entrevistas, em determinado momento da vida Aleixo teve uma experiência mística, talvez mediúnica, seguida de um período prolongado de jejum, e daí recebeu o poder de “ler” auras, tando de pessoas quanto de plantas, o que o dotou da capacidade de descobrir quais preparados vegetais melhor serviriam para resolver os “desequilíbrios” de seus pacientes.

Entre afirmações intrigantes que apareceram no podcast, o entrevistado alega, com grande convicção e embasamento em suas consultas clínicas, que 90% dos pacientes que o procuram estão enfermos e também carregam consigo uma história de tristeza.

Com base nisso, conclui que as doenças não são entidades reais, mas sim manifestações de “fragmentações internas” do paciente. Por exemplo, as fragmentações físicas se apresentam na forma de cânceres e tumores, enquanto as fragmentações do espírito se traduzem em desilusões e depressão. O papel do alquimista seria penetrar no cerne da questão, explorar essa história de tristeza e não se restringir, apenas, ao tratamento dos sintomas.

Nada disso deve soar como novidade para quem está familiarizado com os clichês mais comuns das pseudociências relacionadas à saúde – o mito da “causa única” (todas as doenças teriam uma “causa profunda” comum) e da restauração da saúde por meio do resgate de algum “equilíbrio” perdido. Essa era a visão comum sobre saúde humana em tempos pré-científicos, antes da descoberta dos micro-organismos e da genética. Propostas pseudocientíficas resgatam esse modo ultrapassado de pensar, apenas incorporando ao vocabulário conceitos modernos como “energia”.

Aleixo ressuscita ainda a noção, demosntravelmente errada, de que o ser humano utilizada apenas uma pequena parcela de sua capacidade cerebral. Na versão particular do mito propagada por ele, usamos apenas 4% do cérebro, enquanto os gênios, como Michelangelo, Da Vinci, Tesla e Einstein, usavam 8%, devido a uma expansão cerebral que os possibilitava enxergar um novo espectro, onde vislumbravam o passado, presente e futuro.

Durante as horas seguintes, outras desinformações, ainda mais problemáticas, foram propagadas, como a sugestão terapêutica de utilizar água desmineralizada com partículas de diamante para o tratamento de traumas intrauterinos (informações negativas adquiridas e armazenadas antes de nascer) - trataremos sobre isso em outra seção do artigo.

 

O novo Bach

A RQC já tratou dos Florais de Bach neste artigo aqui. Sugiro que o leiam na íntegra para entender como o homeopata inglês Edward Bach inventou essa pantomima. No entanto, apesar de muitas semelhanças, o sistema “alquímico” desenvolvido no Brasil é diferente.

Segundo o site da Alkhemylab, a principal diferença é que o sistema floral nativo utiliza preceitos da alquimia em todo o processo, desde o plantio até a colheita. Aqui parece haver um uso um tanto quanto excêntrico da palavra “alquimia”. Normalmente, o termo se refere à arte antiga de purificar, refinar e misturar substâncias que, além de um forte aspecto empírico – que levou ao desenvolvimento de técnicas depois adotadas pela química, como a destilação – envolvia também crenças mágicas, supersticiosas e especulação filosófica.

No caso dos florais alquímicos, as flores são cultivadas em canteiros em formato de mandala, projetados para reproduzir os padrões da natureza. São colhidas de acordo com os ciclos lunares. Após a colheita, são transferidas para um galpão, onde são acondicionadas em barris de carvalho e embebidas em álcool de cereais, permanecendo em repouso por um ciclo lunar completo, totalizando 28 dias.

Após completarem esses 28 dias, as flores são divididas em dois destinos distintos: aquelas que serão enviadas ao laboratório para a produção de compostos alquímicos em spray; e as que serão usadas na confecção dos florais sutis – florais vibracionais que atuam na mudança de comportamentos e na “alma”. Estas últimas são enviadas para a capela, um espaço especialmente preparado para contemplar as 12 casas astrológicas. Lá, as flores são depositadas em tubos de cobre, permitindo que recebam a influência do signo astrológico da pessoa que as ingerirá.

Se esses delírios não foram o suficiente para olharmos a prática com incredulidade, trago algumas informações adicionais do que é ensinado aos alunos da escola de alquimia, de acordo com o conteúdo apresentado no “Módulo 1 do Sistema Floral Joel Aleixo” de 25 de junho de 2019, e na obra “Traumas Intrauterinos” 2a edição de 17 de março de 2016. Os alunos são instruídos sobre alquimistas antigos, a história da prática e expostos a algumas alegorias mequetrefes para ficarem com a vaga impressão de que o estudo da alquimia e dos florais seria “científico”. Por exemplo, sugerindo-se que os alquimistas apontavam que toda a matéria era feita de mercúrio (relacionado a expansão), sal (estabilização) e enxofre (contração), mas que na verdade isso era uma alegoria para elétrons, nêutrons e prótons.

Os alunos também aprendem a história de Edward Bach, o criador dos florais. Além disso, para aumentar a credibilidade da prática, mencionam-se a Organização Mundial da Saúde e a inclusão dos florais no Plano Nacional de Práticas Integerativas e Complementares.

Supreendentemente, é possível encontrar, em meio a esse material, a advertênciade que os florais não substituem tratamentos “alopáticos” (termo pejorativo usado pela medicina alternativa para se referir à medicina de base centífica) e que seus efeitos não têm comprovação científica. E de que a utilização do floral é preventiva, cabendo à “medicina alopática” tratar as doenças.

Logo na página seguinte, o “Módulo 1” parece esquecer as limitações enunciadas (talvez apenas para propósitos elgais) e transforma-se em um panfleto para auxiliar o futuro alquimista a indicar os produtos produzidos pelo Alkhemylab. Aqui encontramos um composto floral para o estresse do dia a dia e promessas extremamente apelativas, como o composto “Flor da Vida”, sugerido para idosos e pacientes em tratamento quimioterápico (pré, durante, pós).

Além disso, quando os alunos são instruídos sobre os florais sutis, aqueles com “efeitos vibracionais”, aprendem que podem ser divididos em três níveis de acordo com sua atuação no corpo e na psiquê humana.A explicação do mecanismo de ação envolve o uso inadequado e ignorante da palavra magnetismo (em conceitos nonsense como “magnetismo de cores quentes”).

Ainda mais pernicioso, em outra obra, intitulada “Traumas Intrauterinos”, ensina-se que a gestação das mulheres é de 12 meses (3 meses de gravidez espiritual e 9 meses de gravidez física), e que as experiências negativas da mãe durante todo o processo são “impressas” no feto, como “cristais carbônicos” encapsulados nos ossos. Esses cristais seriam responsáveis por muitos danos à saúde do bebê, como má formações congênitas e síndromes genéticas. Dependendo da quantidade e severidade dos traumas, os cristais podem penetrar mais profundamente nos ossos, chegando à medula óssea vermelha, comprometendo o sistema imune, causando anemia e, em casos extremos, leucemia.

Nada disso tem o menor sentido. Na prática, o que se tem aí é um mix pseudocientífico de conceitos usado na construção de uma, narrativa que culpabiliza as mães pelos problemas de saúde dos filhos.

 

Parem de ser implicantes!

Enquanto realizava o levantamento de informações para esse artigo, deparei-me com o seguinte no site da prefeitura de São Paulo: “Conheça mais sobre a terapia com os florais alquímicos: Terapia está disponível aos servidores no HSPM”. Segundo a publicação, a terapia tem como objetivo promover um estado de harmonia e equilíbrio, através de um tratamento integral da saúde, nos âmbitos físico, mental, social, emocional e espiritual. Afirma-se ainda, com a autoridade de uma comunicação oficial do poder público, que os florais alquímicos conseguem auxiliar o paciente a realizar seus projetos de vida, além de trazer consciência sobre o processo de vida do indivíduo, passando pelo cotidiano, passado e futuro.

Claro que algum defensor de práticas alternativas poderia argumentar que, mesmo não tendo apoio em estudos científicos (e, de fato, fazendo afirmações que contradizem leis científicas básicas), o floral alquímico pode propiciar conforto emocional ou psicológico, o que não deixa de ser verdade – exceto, claro, quando culpa mulheres grávidas pelas doenças que o filho vai ter no futuro, o que não é nada reconfortante.

Como discutido no capítulo “A verdade tem alguma importância?” presente no livro “Truque ou tratamento: Verdades e mentiras sobre a medicina alternativa”, muitos defensores da medicina alternativa apontam que, mesmo que as práticas não possuam evidências científicas, elas podem atuar como um placebo, proporcionando alívio e esperança para os pacientes.

Contudo, como os próprios autores destacam, os medicamentos de eficáca comprovada já despertam efeito placebo. Além disso, é importante destacar que tratamentos alternativos e práticas que operam somente como placebo podem acabar desviando os pacientes de tratamentos que realmente funcionam e conseguiriam evitar desfechos graves.

Sabendo o quanto de dinheiro é destinado à área da saúde e o quanto o setor continua defasado em diversos aspectos, é uma obrigação discutirmos se é uma boa decisão alocarmos mesmo que seja uma ínfima parcela desse montante para práticas sem respaldo científico. Resposta curta: não.

Mauro Proença é nutricionista

 

REFERÊNCIAS

ALEIXO, J. Sistema Floral Joel Aleixo. Módulo 1. 1a Ed. 2019.

ALEIXO, J. Traumas Intrauterinos & Phoenix e Pletora. 2a Ed. 2016.

SINGH, S. e ERNST, E. Truque ou Tratamento (Verdades e Mentiras Sobre a Medicina Alternativa). Ed: Record. 2013.

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