Democracia ainda é mais valorizada do que dinheiro, saúde e igualdade

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1 dez 2023
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bandeira brasileira

"A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas outras que foram tentadas de tempos em tempos". A frase do ex-primeiro ministro britânico Winston Churchill (1874-1965), proferida discurso na Câmara dos Comuns do Reino Unido em 11 de novembro de 1947, expressa de maneira irônica como, apesar de longe de perfeita, a verdadeira democracia - caracterizada pela realização de eleições gerais, periódicas, livres e justas - é a melhor forma conhecida para sociedades colocarem na liderança pessoas que reflitam seus anseios, ou retirarem e substituírem as que não, preservando liberdade e justiça.

Assim, não é de se espantar que a democracia tenha forte apoio como forma de governo junto à opinião pública, com pesquisas amplas como a World Value Survey e o Latinobarômetro mostrando que mais de 90% das pessoas preferem a democracia a alternativas como governos militares ou tecnocráticos. O que estas pesquisas não veem, porém, é até que ponto estas mesmas pessoas estariam dispostas a abrir mão da democracia em troca de mais segurança ou riqueza, ou se, ao responder pesquisas, escondem uma real preferência por esquemas mais autoritários em razão do fenômeno da desejabilidade social, respondendo o que acham que os entrevistadores gostariam de ouvir.

Foi pensando nisso que um grupo de pesquisadores das universidades de Stanford, EUA, e Barcelona, Espanha, decidiu investigar qual seria este "valor" da democracia. Em um experimento conjugado, relatado em artigo publicado recentemente no periódico científico PNAS, eles questionaram amostras representativas das populações de Brasil, França e EUA sobre a preferência pela democracia, em relação a outras características fundamentais da vida e da sociedade em que se encontram.

Os pesquisadores elaboraram pares de hipotéticos de sociedades em que de um lado haveria ou não eleições livres, e do outro, atributos como renda individual maior ou menor que a média nacional; uma sociedade mais ou menos próspera, com uma renda média coletiva maior ou menor; uma sociedade mais ou menos desigual (isto é, com maior ou menor diferença proporcional entre as rendas das camadas mais ricas e pobres) ou com uma mobilidade social que premia mais o esforço do que as conexões (meritocracia); ou com a presença ou ausência de um robusto Estado de bem-estar social, na forma de um serviço de saúde universal, público e gratuito.

E o que descobriram é que a maioria das pessoas aceita pagar caro para manter a democracia. Segundo os pesquisadores, apesar da existência de uma minoria com tendências autoritárias - cerca de 20% das populações dos três países -, a maioria dos participantes ainda prefere viver em sociedades com eleições periódicas livres do que ganhar mais, ou ter assistência de saúde universal e gratuita. Pelos cálculos deles, só a presença do fator democracia já aumentava em 40% a probabilidade de brasileiros e franceses apontarem a sociedade como melhor para viver, e em mais de 51% entre os americanos.

Além disso, o peso relativo que os entrevistados deram apenas à democracia para escolher a melhor sociedade chega a 42,4% no Brasil, 36,4% na França e 51,6% nos EUA. Com exceção da França, este valor relativo da democracia é muito maior do que o segundo atributo preferencial dos participantes, um sistema de saúde universal, público e gratuito, que ficou em 30,7% entre os franceses, 16,4% entre os brasileiros e 12,7% entre os americanos. Já o peso da renda individual variou entre 15% e 25% nos três países, enquanto meritocracia e uma sociedade mais igualitária tiveram valorização relativa de 3% a 9%. Os autores destacam ainda que só os brasileiros deram um peso significativo para uma renda nacional maior, chegando perto de 12%.

 

O "preço" da democracia

Isso não quer dizer, no entanto, que algumas pessoas não "venderiam" a democracia pelo "preço" certo, numa análise do que os pesquisadores chamaram de "disposição individual para pagar", a razão de aumento da renda pessoal que levaria o entrevistado a abrir mão dos atributos de uma sociedade considerada mais ideal. No caso da democracia, o estudo mostrou que as pessoas ouvidas só aceitariam viver em uma sociedade sem eleições livres periódicas se sua renda pessoal aumentasse significativamente, chegando a perto de triplicar (+168%) no Brasil e mais que isso nos Estados Unidos e França (altas de 219% e 236%, respectivamente).

Estendendo esta "disposição individual para pagar" para outras características da sociedade, os pesquisadores observaram que as tendências de valorização dos atributos nos três países se mantêm, com os respondentes franceses só concordando em não ter um sistema público de saúde, por exemplo, em troca de também triplicarem sua renda pessoal, e brasileiros e americanos exigindo aumentos 65% e 54%, respectivamente. A meritocracia, por sua vez, sai "barata" no Brasil, "vendida" em troca de um aumento de apenas cerca de 15% na renda pessoal, contra 40% nos EUA e 55% na França.

Os franceses também foram os únicos que pediram um "preço" significativo para abrir mão de uma sociedade mais igualitária: alta de 40% de sua renda individual, versus meros quase 2% para os brasileiros e pouco mais de 1% para os americanos. E, novamente, os brasileiros foram os únicos que cobraram um aumento detectável na renda em troca de não ter um país mais rico, de 5%.

Além disso, em um cálculo paralelo, os pesquisadores tentaram dar um valor numérico a estes "preços" na forma de aumentos fixos na renda em US$ 1 mil sob o método de Paridade de Poder de Compra (PPP, na sigla em inglês), que leva em conta, por exemplo, diferenças de rendimentos e de custo de vida - e faz com que o impacto destes US$ 1 mil seja muito maior em países mais pobres, como o Brasil, do que mais ricos, como EUA e França. Assim, o "preço" da democracia chega a um aumento na renda mensal individual de US$ 2.141 para os brasileiros, US$ 9.714 para franceses e US$ 13.165 para os americanos.

 

A resiliência da democracia

Daí os pesquisadores partiram para investigar o que levaria a maioria democrática a ceder e se juntar à minoria autoritária em cada um dos países. Para isso, apresentaram aos participantes pares de sociedades idênticas em todos atributos, exceto a realização de eleições livres, gradualmente melhorando a alternativa não democrática e recomputando as respostas a cada alteração, até que mais da metade dos entrevistados optasse pelo regime autoritário. Segundo eles, neste caso a democracia se mostrou "substancialmente resiliente", com um maioria autoritária só emergindo diante de melhorias extensas nos demais atributos da sociedade.

Levando em consideração só a prosperidade econômica, seja individual ou individual e do país como um todo, por exemplo, o aumento na renda média teve que chegar a 400% entre brasileiros e franceses e 500% entre americanos para que mais da metade dos participantes escolhessem a sociedade sem eleições livres para viver.

Já quando as alterações focaram primeiro em melhorias em atributos institucionais, a existência de um sistema de saúde público universal fez o apoio à democracia cair para pouco acima de 50% entre os franceses, com uma pequena maioria autoritária emergindo ao acrescentar uma sociedade governada pela meritocracia. Os autores destacam, no entanto, algumas características particulares que os franceses apresentaram na pesquisa, por exemplo, um regime autoritário com 200% ou até 300% de aumento na renda tendo um apoio menor que o mesmo regime autoritário e uma renda apenas 100% maior. Eles acreditam que isso se deu tanto pelo fato de a pesquisa ser baseada em estimativas pessoais do aumento da renda quanto pelo fato de cerca de 40% dos franceses respondentes terem demonstrado um certo desconforto em viver num país rico - e inclusive deles próprios serem mais ricos.

"Desta forma, embora eles possam preferis alternativas não democráticas que tenham desempenho melhor que democracias na saúde pública, meritocracia e igualdade econômica, uma pequena fração deles mudou de volta para a alternativa democrática quando aumentamos a renda nacional da alternativa não democrática", ressaltam.

Por outro lado, a maioria dos participantes brasileiros só passou a aceitar viver sob um regime ditatorial uma vez que teve oferecidos saúde pública, meritocracia, igualdade econômica e um aumento de 200% tanto na renda pessoal quanto na nacional. Já entre os americanos a troca só ocorreu com todas estas melhorias institucionais e mais um aumento de 300% nas duas rendas.

"Tivemos dificuldades em montar um conjunto alternativo de instituições e situações econômicas e sociais que persuadissem um número suficiente de respondentes pró-democracia a se juntarem à minoria não democrática", resumem os pesquisadores.

Diante destes resultados, os autores do estudo acreditam que apesar dos alertas para o enfraquecimento da democracia no mundo, pelos menos em sociedades de média e alta renda o apoio a esta forma de governo ainda é "bem robusto".

"O aumento da polarização da sociedade (seja causada por mudanças culturais ou econômicas, ou talvez simplesmente alimentada por políticos populistas) gera um reservatório de eleitores extremistas que incumbentes políticos podem explorar para remover supervisões e regras democráticas uma a uma, até que sua vantagem eleitoral se torne insuperável", consideram. "Esta história, porém, não é apoiada pelos nossos achados. Uma forte maioria de nossos respondentes não parece disposta a viver numa sociedade em que seus líderes não respeitem princípios fundamentais da democracia. E isto, por seu lado, deve tornar mais difícil para que políticos incumbentes violem as regras e instituições centrais da democracia e ao mesmo tempo consigam manter suas coalizões eleitorais, ao menos em democracias de média e alta renda. Nossos resultados de fato estão em linha com uma crescente literatura empírica que não encontrou muitas evidências apontando para o declínio e morte da democracia hoje".

Os pesquisadores reconhecem, no entanto, que isso não quer dizer que as democracias não possam entrar em colapso.

"Nosso estudo revelou em cada um dos países uma minoria não democrática que, se bem organizada, pode agir para frustrar e suprimir o apoio geral à democracia", alertam. "Mas no lugar disso ser ligado a uma história de retrocessos, tal resultado nos leva a uma longa tradição na teoria da democratização que enfatiza que o conflito social, a atuação de elites econômicas e políticas e organizações (com relação a este conflito) e o uso da violência explicam a instituições de regimes autoritários. É aí que ainda precisamos ver para entender as mecânicas dos colapsos de democracias".

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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