Terapia "taquiônica" e a falácia do bem-estar

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31 out 2023
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Ilustração de Da Terra à Lua

Na natureza, nenhuma partícula com massa pode viajar à velocidade da luz, e muito menos superá-la. É o que ensina a Teoria da Relatividade, de Einstein, publicada em 1905. Essa velocidade é tão alta que não gera efeitos práticos muito significativos sobre o comportamento de objetos macroscópicos que já conseguimos construir: um carro pode acelerar o quanto quiser; um avião e um foguete, também. Por mais rápido que consigamos fazê-los andar, ainda estarão muito distantes do limite superior estabelecido: a velocidade da luz no vácuo corresponde a 300.000 km/s, o que é equivalente a um pouco mais de 1 bilhão de km/h.

É um erro, no entanto, afirmar que esse limite é tão alto que não seja capaz de se desdobrar em nenhuma aplicação tecnológica que se relacione com o nosso cotidiano. Um exemplo são os relógios atômicos presentes nos satélites que fazem parte do Sistema de Posicionamento Global (GPS): eles são tão sensíveis que precisam ser corrigidos periodicamente por conta das minúsculas mudanças na “marcha temporal” causadas por efeitos relativísticos, mesmo orbitando o planeta com uma velocidade da ordem de 4 km/s, que ainda é bem menor que a velocidade da luz. Existem, ainda, os aceleradores de partículas, que colocam pequenos fragmentos de matéria a velocidades bem próximas à da luz para estudar diferentes aspectos da natureza.

Cientistas são curiosos. E, vez ou outra, produzem ideias inovadoras que, com o tempo, são desenvolvidas teórica e experimentalmente, na simbiose necessária entre a razão e a experimentação. Einstein, por exemplo, refletia sobre o que poderia acontecer se pudéssemos viajar em um raio de luz. Nesse exercício constante da curiosidade, há quem se pergunte se existem partículas que viajam apenas a velocidades maiores que a da luz (uma partícula com massa não pode ser acelerada além da velocidade da luz no vácuo, mas e se houvesse partículas que já surgem em velocidades superluminais?). A ideia aparece em 1967, quando o físico Gerald Feinberg publica uma análise relacionada a essa classe hipotética de partículas subatômicas que ficaram conhecidas como “táquions”. É interessante notar que a velocidade da luz é reduzida quando ela se propaga em meios materiais, como dentro da água e do vidro, por exemplo; e isso faz com que, nesses meios, partículas com massa consigam eventualmente se mover mais rapidamente que a luz. Quando isso acontece, podem emitir um tipo específico de radiação – chamada de radiação de Cherenkov.

Nesse sentido, algumas propostas para a identificação das partículas taquiônicas envolvem justamente buscar por alguma radiação desse mesmo tipo, supostamente emitida ao se moverem mais rapidamente que a luz no vácuo. Ainda que a proposta seja interessante e, se confirmada, possa levar a uma nova compreensão sobre a natureza, o fato é que, até hoje, não há qualquer detecção de táquions ou de radiações por eles emitidas. É preciso reconhecer, então, que no estado atual da ciência, o melhor que se pode dizer é que é até provável que simplesmente não existam.

 

Terapias taquiônicas

A despeito do fato notório de que essas partículas nunca foram detectadas, o site da CNN Brasil apresentou, recentemente, uma matéria mostrando que, em 1999, David Wagner e Gabriel Cousens lançaram um livro intitulado “Energia Taquiônica: um novo paradigma em cura holística”, em tradução livre. Segundo os entrevistados consultados pela publicação, essas partículas atuariam para neutralizar “energias nocivas”; e, por serem constituídas de uma “energia de altíssima frequência”, estariam relacionadas ao sentimento de amor. Sim, você não entendeu errado: nem sabemos se as partículas existem, mas já existem terapeutas cheios de certezas para mostrar como as “energias taquiônicas” são uma boa ferramenta para a medicina integrativa e complementar.

Mas como é possível que se proponham terapias e tratamentos com base em coisas que simplesmente não existem?– pergunta o leitor intrigado. Caso você seja leitor assíduo da Revista Questão de Ciência, sincera e infelizmente, isso nem deveria ser motivo de surpresa. Na homeopatia, por exemplo, princípios ativos são diluídos para além do limite em que ainda é possível encontrá-los no produto final, e se apela à memória da água – que não existe – para explicar o suposto funcionamento da prática; terapias de “saúde quântica” apelam para “energias e vibrações”, que também não existem, para tentar dar amparo às suas práticas e produtos.

No fim das contas, a terapia taquiônica é só mais um exemplo em que os termos científicos “energia” e “vibração” – e “táquions”, agora – são usados indevidamente, para passar a aparência científica capaz de convencer os incautos de que a prática se trata de ciência séria. Caso queira conhecer mais sobre a utilização dessas expressões no contexto pseudocientífico, pode acessar outros artigos da Revista Questão de Ciência, como este, este, este e este.

 

O argumento do bem-estar

Se, por um lado, é positivo notar que a matéria da CNN reconhece que a tal terapia é considerada pseudociência, por outro, essa informação parece ser sumariamente ignorada, uma vez que o texto abre espaço apenas para exibir as ideias – sem fundamento científico – que seus defensores propagam. Por quê? Aparentemente, a resposta está no argumento do bem-estar.

Uma terapeuta ouvida pelo canal resume bem o ponto: “Quando a gente vai falar de práticas energéticas, a gente não tem uma garantia. Eu não posso dizer para a pessoa que eu vou curá-la. [O que um tratamento como esse pode proporcionar é] sensação de leveza e bem-estar muito grande, de alívio de angústias, de medos e traumas”. Em outras palavras: as terapias não prometem cura, mas relaxamento. Mas não dá para relaxar as pessoas sem deseducá-las sobre ciência? E seria isso suficiente para apoiar a oferta dessas terapias à população? Caso você não saiba, o Sistema Único de Saúde (SUS) oferece várias terapias sem base científica, ou baseadas em distorções do mesmo nível da “taquiônica”, conhecidas como “PICs” (práticas integrativas e complementares).

Um ponto que requer avaliação é o suposto argumento de que tais terapias não prometem “cura”: isso não parece ser consenso nem mesmo entre os terapeutas, como mostra, por exemplo, uma página que indica “Barra de Access” – outra terapia “quântica energética” pseudocientífica – como técnica que “pode ser usada para proporcionar a cura” de diversas condições.

Além disso, a mensagem da terapeuta passa a sensação de que essas práticas complementares só fazem bem, não suscitando qualquer problema que mereça desconfiança. É outro argumento clássico: “pelo menos, mal não faz”. Na contramão do que se afirma, há dados disponíveis na literatura científica que mostram que maior adesão às terapias alternativas está relacionada a maior hesitação ou rejeição vacinal, e a maiores taxas de recusa ou de baixa adesão a tratamentos convencionais; a própria lógica explicativa por trás dessas terapias ajuda a compreender o motivo, como bem salienta Carlos Orsi:

“Uma das grandes necessidades psicológicas do ser humano é enxergar coerência entre seus pensamentos e ações. Se todas as doenças são causadas por ‘desequilíbrios energéticos’ [ou] ‘desarmonia das vibrações’ (...), então não é lógico ou coerente recomendar e aceitar o uso de antibióticos, vacinas ou quimioterapia. Crenças infundadas têm consequências (...). Cedo ou tarde, acabam custando dinheiro, membros e vidas”.

Antes que alguém reclame, é bem verdade que há efeitos colaterais negativos mesmo em tratamentos com medicina convencional. Mas isso não deveria depor a favor de terapias alternativas, muito pelo contrário: deveria servir como um lembrete permanente da necessidade de se testar adequadamente qualquer tratamento, de modo a avaliar criteriosamente seus prós e contras antes de colocá-lo à disposição do público. Retornamos à questão, então: ter como benefício apenas a possível melhora do “estado de espírito” é suficiente para se apoiar o financiamento público de terapias alternativas?

Pondo de lado a questão de que até mesmo a alegação de “bem-estar” precisaria ser testada cientificamente para ver se se sustenta (há relações terapêuticas que acabam se mostrando estressantes ou deletérias, afinal), defender a promoção de bem-estar como critério suficiente para oferecer determinada prática no sistema público de saúde faz com que se torne aceitável oferecer qualquer coisa “que faça bem” pelo SUS. Aulas de futebol, de música, de teatro e de pintura, por exemplo. Quando o recurso público é limitado, como de fato é o caso, as escolhas do que oferecer devem ser estratégicas, levando-se em consideração o que há de evidências científicas confiáveis para sustentar os tratamentos. Recorrer ao argumento do bem-estar é uma armadilha que pode criar subterfúgios para que se invista dinheiro da saúde em praticamente qualquer lugar.

Há, por fim, um problema de significado: se alguém decide, por conta própria, pagar um tratamento sem base em evidências, está comprometendo apenas seus próprios recursos; por outro lado, investir dinheiro público em terapias que notoriamente fazem afirmações sem pé nem cabeça sobre como a natureza funciona é o mesmo que aplicar um carimbo que chancela o absurdo, o ilusório e o irreal. Não é possível conceber que órgãos de saúde pública façam campanhas, por exemplo, em favor da ciência, das vacinas e das práticas de saneamento e higiene coletivas – tudo o que sabemos com base em boas evidências – e, ao mesmo tempo, oficializem as pseudociências.

Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia. É autor de livros de física para o Ensino Superior e de divulgação científica, como o “Armadilhas Camufladas de Ciências: mitos e pseudociências em nossas vidas” (Ed. Autografia)

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