O enigmático "Paradoxo de Bootstrap" (também conhecido como paradoxo ontológico) constitui um dilema que perturba profundamente nossa concepção de causalidade e de como entendemos nossa realidade linear. Ele sugere que, em um universo teórico no qual viagens no tempo são não apenas possíveis, mas realizáveis, um objeto ou informação pode existir sem nunca ter sido realmente criado. O nome vem de um conto de ficção científica do autor Robert Heinlein, com o título “By His Bootstraps” (literalmente, “Pelas Alças de Suas Botas”, brincando com a ideia de que uma pessoa poderia se erguer no ar agarrando as alças de couro na lateral das botas e puxando para cima com força). A história foi publicada pela primeira vez em 1941.
Contemplar essa possibilidade pode nos levar a uma jornada mental intrigante e talvez perturbadora. Imagine o seguinte cenário: por meio do uso de uma “máquina do tempo”, um objeto ou informação é enviado ao que seria considerado o passado. Ali o objeto é cuidadosamente preservado, o tempo passa e, finalmente, em algum momento do futuro, é enviado ao passado, onde é recebido, cuidadosamente preservado e... A consequência é um ciclo infinito em que o objeto é a causa de sua própria existência. Não existe uma origem discernível: o objeto chegou ao passado vindo do futuro, e ao futuro vindo do passado!
Esta narrativa desafia e embaralha a noção clássica de causa e efeito, que exige que as causas precedam os efeitos de modo claro e linear no tempo. Pode ser um pensamento desconcertante, mas desde a publicação original de Heinlein a ficção científica brincou com a ideia diversas vezes. A série "Dark", por exemplo, explora o tema com maestria. Nessa série televisiva, o livro “Uma jornada através do tempo”, do personagem H.G. Tannhaus, se torna um emblema tangível deste paradoxo: Tannhaus recebe o exemplar já publicado de seu próprio livro, enviado do futuro, e, ao publicá-lo no presente, completa um ciclo onde o livro nunca foi verdadeiramente escrito e existe em um circuito fechado sem início ou fim bem definidos.
A autolegitimação da pseudociência
Uma versão generalizada do Paradoxo de Bootstrap, em que o efeito é a causa e a causa, o efeito, pode ser aplicada, em certa medida, às práticas de saúde sem evidência científica, em que uma intervenção pode adquirir legitimidade simplesmente pelo fato de existir e ser popularmente aceita.
Esse fenômeno tem seus contornos influenciados pelo lobby de determinados grupos, organizações ou forças políticas que podem seguir uma determinada agenda para promover certas práticas, seja para ganho financeiro, expansão do rol de possibilidades de atuação de uma profissão ou para consolidar poder e influência.
A complexidade dessa dinâmica pode levar a uma aceitação massiva e irrestrita de tais práticas, sem a análise e o escrutínio científicos necessários. Governos e Conselhos de Classe, talvez em resposta à pressão política ou ao desejo de expandir as opções de geração de renda de alguma categoria, podem oficializar tais práticas, culminando em um sistema que justifica sua incorporação ao serviço público e validação legal e burocrática simplesmente porque já há quem as pratique, e não porque têm o respaldo técnico-científico adequado. A consequência é uma impressão distorcida de legitimidade científica, um eco perigoso do Paradoxo de Bootstrap no qual a causa inicial é obscurecida, e a existência continuada de algo é justificada apenas porque já existe (raciocínio por trás de afirmações como: “Se determinada prática não tivesse eficácia, não estaria disponível no SUS / não seria regulamentada pelo CFM”).
O evento “criador” original se perde em uma rede intricada de interesses, deixando a evidência científica e o pensamento racional em segundo plano. Essa circularidade lógica não beneficia os pacientes e pode comprometer a ética na saúde. A aplicação do Paradoxo de Bootstrap na saúde nos desafia, portanto, a ir além da retórica e dos interesses imediatos, e a buscar as evidências que possam fundamentar nossas abordagens e práticas.
Em um mundo ideal, viajaríamos no tempo para corrigir nossos erros. Mas, em nosso universo real, devemos tomar decisões bem fundamentadas no presente (único momento suficientemente tangível), recordando que uma prática de saúde responsável exige mais do que apenas autojustificação: requer um escrutínio rigoroso dos fatos, uma disposição para desafiar o estabelecido e um compromisso com a melhoria real da saúde.
O Resumo
Assim, podemos resumir a relação do Paradoxo de Bootstrap com a saúde em quatro etapas: explicação, aplicação, falha lógica e alerta. Essas etapas nos fazem refletir sobre a causalidade:
(1) Explicação: No Paradoxo de Bootstrap, algo existe sem um começo claro, um objeto é enviado ao passado e torna-se a razão de sua própria existência. Não há origem identificável.
(2) Aplicação: Da mesma forma, certas práticas médicas sem embasamento em evidências científicas começam a ser usadas sem uma justificativa clara. A sua mera adoção por uma massa crítica leva à aceitação e incorporação por governos e entidades profissionais.
(3) Falha na Lógica: Assim como o Paradoxo de Bootstrap desafia nossa compreensão da causalidade, a adoção dessas práticas pseudocientíficas desafia a lógica e os princípios da prática e das políticas públicas baseadas em evidências. A prática se justifica porque é praticada, não por resultados de pesquisas sólidas e confiáveis.
(4) Alerta: Devemos ser cuidadosos para não cair na armadilha de aceitar práticas de saúde sem uma base sólida. Não podemos permitir que algo exista em nosso sistema de saúde simplesmente porque foi “enviado ao passado”, sem uma origem clara e lógica.
Este último tópico nos lembra da complexidade e, por vezes, da ilusão de causalidade. Contudo, diferentemente das obras de ficção, não temos o luxo tecnológico de máquinas do tempo para validar nossas decisões por meio de um vislumbre real do futuro. O máximo que podemos fazer é administrar, aqui no presente, nossa incerteza sobre desfechos futuros. Podemos tentar reduzir essa incerteza por meio de ferramentas científicas, ou simplesmente apostar num chute otimista gerado por uma máquina do tempo imaginária. Neste último caso, assim como em qualquer loteria, a probabilidade de acertarmos será ínfima.
Portanto, não podemos nos contentar com soluções simplistas que se sustentam apenas em sua própria existência. A responsabilidade recairá continuamente sobre nós - profissionais, legisladores e cidadãos - para fundamentarmos nossas práticas em saúde nas evidências científicas adequadas. Afinal, o nosso tempo, diferente dos cenários ficcionais, é irreversível.
André Bacchi é professor de Farmacologia do Curso de Medicina da Universidade Federal de Rondonópolis. É divulgador científico por meio dos podcasts Synapsando, Scicast, Spin de Notícias e Scikids