A Teoria dos Equilíbrios Pontuados aos 50 anos

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16 ago 2022
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tentilhões de Galápagos

Geralmente, considera-se que a Teoria dos Equilíbrios Pontuados (TEP) nasceu com o artigo Punctuated Equilibria: An Alternative to Phyletic Gradualism (Equilíbrios Pontuados: Uma Alternativa ao Gradualismo Filético), trabalho conjunto de Niles Eldredge & Stephen Jay Gould, publicado no livro Models in Paleobiology em 1972. Portanto, estamos no marco dos 50 anos da teoria!

A controvérsia gerada pela TEP foi considerável, uma vez que muitos a viam como um ataque ao consenso da Síntese Evolutiva. Outros acusaram Eldredge e Gould de defender saltacionismo, entre eles criacionistas, que muito se aproveitaram da discussão entorno da TEP para promover a sua própria agenda. A seguir, exponho brevemente os principais componentes da TEP, bem como corrijo alguns equívocos comuns a respeito dela.

[Para quem estranhou a forma plural, “equilíbrios”: equilibria, no título original do artigo que lançou a ideia, é plural. Em algum momento Gould mudou para equilibrium (singular), mas Eldredge não adotou e até hoje usa a forma original].

 

Equívoco

Primeiro, e já corrigindo um equívoco comum, a TEP não é uma ideia exclusiva de S. J. Gould, como alguns supõem. Aliás, embora seja um trabalho conjunto, na verdade as ideias centrais da TEP foram desenvolvidas por Niles Eldredge (a quem tive o prazer de entrevistar; veja o saiba mais). Os conceitos fundamentais da teoria, como veremos a seguir, já estão presentes em trabalho de 1971, assinado exclusivamente por Eldredge. É por isso que a colaboração é Eldredge & Gould, não Gould & Eldredge (como é possível encontrar com facilidade na literatura, infelizmente).

Além disso, a explicação (não discutida aqui) para as tendências evolutivas sob a luz da TEP no artigo de 1972 também foi escrita por Eldredge. Gould colaborou na expansão do manuscrito, bem como nas implicações mais amplas da teoria, além de ter criado o título do artigo e os termos gradualismo filético e estase. Calma, todos esses termos vão ser explicados a seguir. Para uma história completa do desenvolvimento da teoria, da sua concepção à publicação, recomendo o trabalho de Sepkoski (2012).

 

A teoria de fato

Agora sim, vamos à TEP propriamente dita. Em sua obra técnica final, The Structure of Evolutionary Theory (A Estrutura da Teoria Evolutiva), Gould enfatiza que a TEP versa sobre a origem e evolução das espécies no tempo geológico e a sumariza em três componentes: estase, pontuações e frequência relativa dominante. Vamos tratar de cada um deles nessa ordem.

 

Estase

É sobretudo um conceito morfológico, isto é, que diz respeito à forma e/ou anatomia. De forma simplificada, estase significa que ao longo de seu tempo de existência as espécies tendem a exibir uma morfologia essencialmente constante. Entre a primeira e a última aparição no registro fóssil, uma espécie pode oscilar morfologicamente um pouco entorno da média sim, mas não há uma tendência temporal cumulativa de mudança. É claro que “oscilar um pouco” é subjetivo, mas para os nossos propósitos, isso basta. Para mais detalhes, veja o “saiba mais”!

Antes de prosseguir para as pontuações, devemos enfatizar algo extremamente importante. Como muito bem elaborado por Niles Eldredge em seu livro Eternal Ephemera e em várias publicações técnicas, estase não é algo para ser visto como desinteressante ou simplesmente “ausência de evolução” (afinal, há oscilação). Estase não é, como temia o jovem Niles em vias de defender sua tese de doutoramento, somente um resultado negativo. Na verdade, a estase é um dado que o registro fóssil nos dá. O perigo reside em ignorá-lo, não em constatá-lo.

 

Pontuações

Imagine o seguinte cenário: há uma espécie A de ampla distribuição geográfica. Uma população dessa espécie se isola geograficamente. Nesse isolamento, ao longo do tempo, a espécie A dá origem a uma nova espécie, a espécie B. Resumidamente, essa é a ideia de especiação geográfica — ou seja, origem de uma nova espécie (especiação) com um importante componente de separação espacial (por isso, geográfica). Segundo a TEP, uma combinação de estase e especiação geográfica deixaria uma assinatura muito clara no registro fóssil. Se pudermos observar uma série temporal de fósseis da espécie A, veremos que ela se mantém em estase pela maior parte do tempo. E então, abruptamente, surge nos estratos a espécie B, descendente de A. A e B coexistem e se mantêm em estase, até que outra rodada de isolamento e especiação eventualmente ocorra. Os aparecimentos abruptos das novas espécies são as tais pontuações.

A natureza abrupta do registro fóssil no nível de espécie se dá por duas razões. Primeiro, o tempo necessário para que a espécie B evolua a partir da espécie A é relativamente curto, isso em comparação ao período total de existência da espécie A; e é nesse intervalo de tempo que ocorre a mudança morfológica, ou seja, mudança e especiação ocorrem concomitantemente. Segundo, a espécie B surgiu de A em isolamento. Portanto, para que B apareça nos depósitos fósseis em que encontramos A, ela teve de migrar para lá. É essa combinação de “pouco” tempo (geologicamente) e isolamento geográfico que produz o aparecimento abrupto de B no registro fóssil.  

 

Frequência relativa dominante

Como se dá a evolução no nível de espécie? Sob a luz do gradualismo filético, a visão é de que as espécies geralmente sofrem mudança morfológica ao longo de sua existência, uma mudança de caráter transformativo (embora não a taxa constante), como se uma espécie deixasse de existir conforme lentamente dá origem a uma ou mais espécies descendentes. Sob a perspectiva da TEP,  que é a visão alternativa, as espécies via de regra exibem estase, e quando há mudança morfológica, ela geralmente ocorre em associação com um evento de especiação. A TEP não implica que o gradualismo filético nunca ocorra, apenas que não é comum. O padrão seriam os equilíbrios (estase) pontuados (especiação + mudança morfológica).

 

A teoria, não de fato

Desde sua publicação, a TEP foi e ainda é mal interpretada. Quando falamos que a mudança morfológica ocorre em períodos curtos de tempo, isso deve ser lido em termos relativos, geológicos. Isso significa que a TEP NÃO PROPÕE que a evolução se dá aos SALTOS. A TEP não propõe e não depende de qualquer mecanismo saltacionista. Outro ponto importante é a deturpação da TEP pelos criacionistas. Por exemplo, o criacionista Marcos Eberlin escreve em seu livro Fomos Planejados:

“Apesar de não ter sido a intenção de Gould, que queria promover a sua teoria de um processo evolutivo não gradual – a teoria do equilíbrio pontuado –, o reconhecimento dessa anomalia mortal, ou seja, o da descontinuidade das formas biológicas, inicia uma crise conceitual profunda da biologia evolutiva”.

 

A “anomalia mortal” seria a ausência de “formas transicionais”. Mas a TEP não nega a existência de formas transicionais em todos os níveis da hierarquia biológica! Na verdade, a TEP explica porque não devemos esperar encontrar formas transicionais entre espécies que partilham uma relação de ancestral-descendente, pois essas formas, apesar de terem existido, eram pouco numerosas e viveram por um intervalo de tempo geologicamente curto. Refutando as alegações criacionistas, Gould (1981) escreveu:

“Desde que propusemos o equilíbrio pontuado para explicar tendências, é enfurecedor sermos citados repetidamente por criacionistas – se por malícia ou ignorância, não sei – como admitindo que não existem formas transicionais no registro fóssil. As formas transicionais estão geralmente ausentes ao nível de espécie, mas elas são abundantes entre grupos maiores”.

Críticos da TEP podem argumentar que não há evidência a favor da teoria. Por motivos de espaço e escopo, não discutirei a evidência em detalhe, mas posso adiantar o seguinte: embora as pontuações sejam realmente complicadas de identificar, a prevalência da estase tem sido reconhecida (ver Hunt & Rabosky, 2014, por exemplo), inclusive há muita literatura produzida no sentido de explicar o “paradoxo da estase” (por exemplo, Voje, 2016).

Outros críticos, ainda, argumentam que não há nada de original na TEP, pois até mesmo Darwin já havia antecipado a ideia. Sem entrar nos complexos detalhes históricos, penso que podemos concordar com Frank Rhodes quando ele sugere que argumentar que não há nuance alguma na TEP que Darwin não tenha antecipado é fazer dele um ícone e exagerar demasiadamente a sua contribuição, por mais importante e incrível que tenha sido ela.

 

João Lucas da Silva, mestrando em Ciências Biológicas, Paleontologia, no Laboratório de Paleobiologia, Unipampa, Campus São Gabriel. Divulgador científico no canal Coelho Pré-Cambriano, twitter @pre_cambriano.

(Este artigo é ilustrado com um desenho dos tentilhões das Ilhas Galápagos, publicado em 1845 no livro “A Viagem do Beagle”, de Charles Darwin)

 

SAIBA MAIS

ELDREDGE, Niles; GOULD, Stephen Jay. Punctuated equilibria: an alternative to phyletic gradualism. Models in paleobiology, v. 1972, p. 82-115, 1972.

Entrevista com Niles Eldredge: https://youtu.be/kFS89Xlr6u8

ELDREDGE, Niles. The allopatric model and phylogeny in Paleozoic invertebrates. Evolution, p. 156-167, 1971.

SEPKOSKI, David. Rereading the fossil record. University of Chicago Press, 2012.

GOULD, Stephen Jay. The structure of evolutionary theory. Harvard university press, 2002.

ELDREDGE, Niles. Eternal ephemera. In: Eternal Ephemera. Columbia University Press, 2015.

EBERLIN, Marcos. Fomos planejados: a maior descoberta científica de todos os tempos. 2018.

GOULD, Stephen Jay. Evolution as fact and theory. Discover, v. 2, n. 5, p. 34-37, 1981.

HUNT, Gene; RABOSKY, Daniel L. Phenotypic evolution in fossil species: pattern and process. Annual Review of Earth and Planetary Sciences, v. 42, n. 1, p. 421-441, 2014.

VOJE, Kjetil Lysne. Tempo does not correlate with mode in the fossil record. Evolution, v. 70, n. 12, p. 2678-2689, 2016.

GINGERICH, P. D.; RHODES, FH T. Darwińs gradualism and empiricism. Rhodes replies. Nature (London), v. 309, n. 5964, 1984.

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