Uma das maneiras de conhecer uma nova cidade é perguntar por seus lugares incontornáveis, aqueles onde a visita é uma espécie de dever. É difícil eleger os incontornáveis de cada ramo do saber. Em filosofia, história e sociologia da ciência, porém, um nome é consensual: Thomas Kuhn, cujo centenário celebramos neste dia 18 de julho de 2022.
Para além da sua relevância exemplificada no fato de “A Estrutura das Revoluções Científicas” ser o livro mais citado em ciências sociais (“A Pedagogia do Oprimido” de Paulo Freire é o terceiro) [1], não há, no entanto, muito mais consenso sobre Kuhn. Controvérsias abundam sobre seus principais conceitos e teses, como os polêmicos "paradigma", "revolução científica" e "incomensurabilidade entre paradigmas". Haver controvérsias sobre o que quer que seja não implica, contudo, que nada de razoável possa ser dito. Isso é ainda mais verdadeiro no caso de Kuhn, que ofereceu boas razões, ao longo de sua carreira, para evitar algumas delas.
Vários fatores explicam tamanha repercussão. De modo geral, Kuhn propôs uma nova imagem de como a ciência se desenvolve baseada, principalmente, na história da ciência e em sua organização social. Embora essa abordagem não fosse uma novidade já naquela época (bastando ver os trabalhos de Pierre Duhem, Charles Peirce e Ludwik Fleck, dentre outros), podemos dizer que seu trabalhou tanto a consolidou quanto colocou em uma situação complicada quem tentasse investigar a ciência apenas – reforço o apenas – com o foco em seus aspectos lógicos, a exemplo de alguns autores do início do século 20 [2].
A imagem do desenvolvimento da ciência de Kuhn está intimamente ligada ao seu conceito de paradigma. Após a filósofa Margaret Masterman [3] ter apontado pelo menos vinte e um significados diferentes do termo em “A Estrutura”, Kuhn refinou-o em um significado global e um mais particular. No significado global, um paradigma (ou “matriz disciplinar”) é um conjunto de elementos comuns aos praticantes de certa disciplina que tem como função guiá-los com sucesso em sua atividade científica. Uma espécie de bússola bem refinada e cheia de apetrechos.
Um dos elementos do paradigma em sentido global são os exemplares, os paradigmas no sentido mais particular. Geralmente encontrados nos manuais de cada ciência, exemplares são soluções modelo para problemas recorrentes em uma área que indicam como seus praticantes devem trabalhar. Os demais elementos são generalizações simbólicas (equações como F = m.a), partes metafísicas dos paradigmas (crenças básicas como que tipo de entidades o Universo contém) e valores (critérios para escolha de teorias como simplicidade, consistência e plausibilidade).
Quando um paradigma é capaz de orientar determinada comunidade de modo eficiente, passa-se do estágio da pré-ciência àquele da ciência normal. Na ciência normal, uma comunidade científica está de pleno acordo com uma série de pressupostos, de tal modo que ela pode desenvolver o paradigma que a orienta, refinando-o e aumentando seu escopo. Em outras palavras, para Kuhn, a maior parte da atividade científica não é caracterizada por grandes descobertas, senão pela resolução de algo próximo a quebra-cabeças ou, em suas palavras, por "alcançar o antecipado de uma nova maneira" [4].
Muitos cientistas ficam desapontados pela descrição da ciência normal – e talvez com razão, conforme falarei mais abaixo. Ela e sua organização são, no entanto, cruciais para os estágios seguintes do desenvolvimento científico. Isso porque, pela própria dinâmica da ciência normal, resultados problemáticos para o paradigma em questão são encontrados. Na proposta de Kuhn, alguns resultados negativos não levam, de imediato, ao abandono de determinado paradigma. Na ciência normal, a corda arrebenta para o lado mais fraco: a habilidade do cientista que chegou ao resultado negativo é posta em xeque, em vez do paradigma em questão. Mas a multiplicação desses resultados anômalos, a consequente percepção pela comunidade de que o paradigma não consegue mais cumprir sua função orientadora, e, curiosamente, muitos cientistas de repente interessados em analisar sua atividade filosoficamente levam, agora sim, a uma crise.
Crises podem ser resolvidas de várias maneiras. Por exemplo, as anomalias que a motivam podem ser simplesmente postas de lado, e a comunidade seguir tocando o barco. Outra maneira se dá por uma revolução científica. Uma revolução científica ocorre pela adesão da comunidade a um novo paradigma. Note como a existência de uma alternativa ao paradigma vigente é necessária. Não dá para simplesmente jogar uma bússola fora, sem outra ao alcance das mãos.
Kuhn ressalta que esse novo paradigma não precisa solucionar, de imediato, todas as dificuldades do antecessor, nem seus novos problemas. Na verdade, um novo estágio de ciência normal será responsável por atualizar essa promessa e, no fim, levar a uma nova crise, e assim por diante. A adesão a um novo paradigma envolve, assim, muitos fatores e Kuhn chega até a caracterizá-la como um tipo de conversão.
A imagem, resumida acima, do desenvolvimento científico entra inevitavelmente em conflito com várias outras propostas sobre a ciência. Ela se opõe, em particular, a alguns elementos da filosofia da ciência de Karl Popper, para quem a falsificação cumpre um papel essencial na atividade científica. Para Kuhn, diferentemente, a falsificação de uma teoria pelos dados não é suficiente para sua rejeição. A decisão de se aceitar ou não uma teoria é guiada por valores (capacidade preditiva, simplicidade, consistência, fecundidade etc.) de um paradigma e não por alguma regra, um procedimento algorítmico, que leva todo cientista à mesma decisão. Cientistas podem variar na avaliação de o quanto uma determinada teoria é fecunda, ou no ranqueamento de quais valores são mais importantes, por exemplo.
A proposta de Kuhn também se opõe à imagem tradicional de que a ciência, como um todo, progride linearmente, onde cada teoria nova supera os obstáculos da antecessora e está, então, mais próxima da verdade. Para ele, é difícil avaliar a transição de um paradigma para outro por três problemas: primeiro, a própria avaliação de uma teoria é guiada pelos critérios fornecidos por um paradigma; segundo, os referentes dos termos comuns a dois paradigmas mudam de um para o outro (“massa”, no paradigma newtoniano, se refere a outra coisa que “massa” no paradigma einsteiniano, para citar um exemplo do próprio Kuhn); e, uma proposta mais polêmica, é como se em um novo paradigma cientistas reagissem a um mundo diferente.
Não haveria, então, uma medida comum para comparar paradigmas, eles seriam incomensuráveis entre si. Assim, após uma revolução, talvez se possa apenas falar de progresso no sentido de que o novo paradigma tem uma capacidade melhor de resolver quebra-cabeças, mas não que está mais próximo da verdade em relação ao anterior.
As afirmações acima fizeram muito barulho. Vários autores viram aí alguma forma de relativismo e condenaram a proposta de Kuhn. Outros se inspiraram nessa imagem mais fluida de ciência para fundar correntes teóricas que enfatizam, em maior ou menor escala, aspectos sociais da atividade científica [5]. Em meio a essa recepção, Kuhn esforçou-se por afastar objeções de relativismo da sua teoria e refinar teses caras à sua proposta, como a incomensurabilidade e sua concepção, digamos, evolucionária do progresso científico (evolucionária porque não haveria um fim pré-determinado). Reiteradamente, ele buscou mostrar que o abandono do respeito pelo dado empírico ou a ausência de critérios racionais não decorrem necessariamente de uma proposta, como a sua, que não amarra as decisões tomadas por cientistas a regras rígidas.
Essa é a recepção mais conhecida de seu trabalho. Há, porém, outras interações críticas que talvez sejam até mais relevantes. Kuhn pouco se apoia na história de outras ciências que não a física. Para alguns autores, a ausência de outras áreas é problemática, porque algumas das teses de Kuhn não parecem mais valer nelas. Em biologia, por exemplo, parece ter havido revoluções sem crises que as antecedessem, e não parece haver apenas um paradigma que oriente a comunidade durante o estágio de ciência normal; o aspecto conservador da ciência normal também foi criticado tanto de uma perspectiva descritiva (ela não descreve bem o que ocorre) quanto em uma perspectiva normativa (ela não diz adequadamente como deve ocorrer) [6]. Cientistas seriam muito mais ousados em seu trabalho rotineiro do que Kuhn enxergou e deveriam ser assim, para o bem da ciência.
Por fim, Kuhn pouco fala da interferência de fatores externos à comunidade científica em sua prática; ele enfatiza a importância de seu isolamento da sociedade para seu bom funcionamento. Já naquela época, propostas semelhantes enfrentaram críticas robustas [7].
Mesmo nessas lacunas, chama a atenção como o nome de Kuhn reaparece e pelo menos um de seus conceitos ou outro é utilizado para ir além de sua proposta original. Como inspirador, antagonista ou colaborador de ocasião, ele continua, portanto, incontornável. É difícil prever se continuará assim. Talvez torne-se apenas um monumento por onde muitas pessoas passavam. Seja como for, nenhuma cidade é conhecida apenas por seus lugares incontornáveis – e este texto é apenas um pequeno panfleto turístico.
Pedro Bravo de Souza é doutorando em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), bolsista processo nº 2019/10200-3 da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Atualmente está em estágio doutoral na Michigan State University. Pesquisa nas áreas de Filosofia da Ciência, Epistemologia e Ética Ambiental. Realiza divulgação filosófica através do projeto “filosofia a sério”.
NOTAS E REFERÊNCIAS
[1] https://blogs.lse.ac.uk/impactofsocialsciences/2016/05/12/what-are-the-most-cited-publications-in-the-social-sciences-according-to-google-scholar/
[2] A leitora mais familiarizada com esse debate já deve ter antecipado a quais autores estou me referindo: a alguns membros do positivismo lógico, como Rudolf Carnap. No entanto, a relação entre a obra de Kuhn e tal corrente teórica é muito mais complicada do que aparenta, dado, em particular, a recente reavaliação positiva dessa corrente e novos documentos que têm surgido. Ver, por exemplo: FRIEDMAN, M. Kuhn and Logical Empiricism. In: NICKLES, T. Thomas Kuhn. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. e CUNHA, I. F. Círculo de Viena: fisicalismo e a utopia da ciência unificada. Educação e Filosofia, v. 32, p. 01, 2018.
[3] MASTERMAN, M. The Nature of a Paradigm. In: MUSGRAVE, A.; LAKATOS, I. (Eds.). Criticism and the Growth of Knowledge: Proceedings of the International Colloquium in the Philosophy of Science, London, 1965. Cambridge: Cambridge University Press, 1970.
[4] KUHN, T. S. A Estrutura das Revoluções Científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2009. p. 59
[5] LONGINO, H. As Dimensões Sociais do Conhecimento Científico. Tradução de Pedro Bravo de Souza. In: OLIVEIRA, T. L. T. Textos selecionados de filosofia da ciência. Pelotas: NEPFIL, Online, 2021.
[6] GODFREY-SMITH, P. Theory and reality: an introduction to the philosophy of science. Chicago: University of Chicago Press, 2003.
[7] DOUGLAS, H. E. Science, policy, and the value-free ideal. Pittsburgh, Pa: University of Pittsburgh Press, 2009. p. 62. Ver também SHINN, T.; RAGOUET, P. Controvérsias sobre a ciência: por uma sociologia transversalista da atividade científica. Tradução de Pablo Rubén Mariconda e Sylvia Gemignani Garcia. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia Editora 34, 2008.
SUGESTÕES DE LEITURA
Há muito material excelente em língua portuguesa sobre Thomas Kuhn. Para não cometer a injustiça de citar algum nome ou texto em particular, menciono o número especial sobre Kuhn da Revista Scientiae Studia: https://www.scientiaestudia.org.br/publicacoes/revista/cont_010_03.html
Inserindo o termo "Kuhn" no sistema de busca da Revista Principia também leva a vários outros artigos ótimos: https://periodicos.ufsc.br/index.php/principia/index
Por fim, o verbete da Stanford Encyclopedia of Philosophy sobre Kuhn foi recentemente traduzido e pode ser acessado no seguinte link: https://wp.ufpel.edu.br/nepfil/files/2022/06/SIFFCIII.pdf