Fenômeno paralelo à disseminação dos movimentos antivacina, a hesitação vacinal afeta pessoas que, atingidas pela desinformação e mentiras espalhadas por estes grupos, passam a ter dúvidas sobre a segurança e eficácia das imunizações. Com isso, acabam adiando a busca por imunizantes já disponíveis, seja para si ou pessoas sob sua responsabilidade, como crianças, ficando expostas a doenças por vezes potencialmente graves. Situação que ganhou contornos trágicos durante a pandemia de COVID-19, com seguidos relatos de indivíduos já internados com quadros severos da doença perguntando aos profissionais de saúde que os atendiam se ainda podiam tomar a vacina, ou lamentando a decisão de “esperar para ver”.
Para tentar superar isso - e incrementar a proteção coletiva conferida por estratégias de vacinação em massa contra -, governos ao redor do mundo implementaram políticas como a exigência de comprovantes de vacinação para ingresso e permanência em eventos e locais públicos, como shows, cinemas e restaurantes, políticas que ficaram popularmente conhecidas como “passaporte vacinal”. Agora, um estudo mediu o sucesso desta medida em estimular a população a buscar os imunizantes. Publicado no periódico Nature Human Behaviour, ele calcula que a exigência de passaporte vacinal contribuiu para aumentar em até cinco pontos porcentuais a cobertura vacinal em diferentes províncias do Canadá, em oito pontos na França, 12 pontos na Itália e 4,7 na Alemanha.
Para isso, os pesquisadores liderados por Alexander Karaivanov, do Departamento de Economia da Universidade Simon Fraser, no Canadá, usaram um método conhecido do “diferença em diferenças”. Este recurso estatístico permite pegar dados observacionais para simular um estudo controlado, em que um grupo é o de “tratamento” e outro de “controle”, para determinado desfecho. No caso, o “tratamento” é o anúncio e a entrada em vigor da exigência de passaporte vacinal para frequentar eventos e espaços públicos, imposta primeiro por cinco das mais populosas províncias canadenses – Québec, Colúmbia Britânica, Manitoba, Ontário e Nova Escócia - e, em nível nacional, por França, Itália e Alemanha.
Já as outras cinco províncias canadenses que anunciaram a adoção da medida por último - Alberta, New Brunswick, Saskatchewan, Newfoundland e Prince Edward Island - e a Espanha, onde tal política não entrou em vigor, em nível nacional, no prazo limite de observação do estudo (31 de outubro de 2021), serviram como grupos de controle para o desfecho: a superação da hesitação vacinal indicada pelas aplicações da primeira dose de vacina contra a COVID-19 no período. O método também implica a simulação de cenários “contrafactuais”, isto é, a estimativa de quais seriam os números observados nos grupos de “tratamento” caso a medida não tivesse sido implementada, feita com base na trajetória dos grupos de controle.
Ao todo, os cientistas estimam que a exigência de comprovantes de vacinação levou 979 mil canadenses, ou 2,9 pontos porcentuais da população elegível do Canadá, a decidir tomar a primeira dose de uma das três vacinas contra a COVID-19 em uso lá – Pfizer, Moderna e AstraZeneca.
“Este é um aumento considerável na vacinação, levando em conta o período relativamente curto em que ele foi conquistado (entre seis e dez semanas desde o anúncio da medida na maior parte das províncias, e 13 semanas para Québec) e a alta taxa de vacinação com a primeira dose no Canadá antes de sua imposição (mais de 80%, na média, no momento dos anúncios da medida)”, destacam os pesquisadores.
O estudo detectou um impacto menor na busca por completar o esquema vacinal com a segunda dose, conforme exigido pela maior parte das províncias do Canadá para a “concessão” do passaporte vacinal, mas que não foi considerado significativamente estatístico.
“Uma possível explicação para a ausência de grandes aumentos nas segundas doses, poucas semanas após as altas nas primeiras doses, é que a exigência pode ter encorajado algumas pessoas que já tinham tomado a primeira dose a buscar a segunda dose logo, assim deslocando algumas das segundas doses para mais cedo e amortecendo o efeito do atraso (na vacinação da população hesitante)”, ressaltam.
Já para a França, os pesquisadores calculam que a imposição do passaporte vacinal levou 4,59 milhões de pessoas a buscar a primeira dose de uma vacina contra a COVID-19 no país, ou 8 pontos porcentuais da população elegível. Na Itália, por sua vez, a medida teria estimulado 6,48 milhões de pessoas a se vacinarem, enquanto na Alemanha se traduziram em 3,47 milhões, representando 12 pontos e 4,7 pontos das respectivas populações elegíveis.
“Estes ganhos estimados são maiores do que os do Canadá, possivelmente em razão de a exigência ter sido imposta mais cedo nestes países, ou da menor taxa de vacinação que tinham no início, e também podem refletir, em parte, a expansão do escopo das medidas iniciais – por exemplo, para viagens intrarregionais e admissões de emprego, em setembro e outubro na Itália”, comentam os autores.
Segundo os pesquisadores, os “inequívocos” e “grandes” aumentos nas taxas de vacinação detectados mostram que a exigência de passaportes vacinais é uma medida comprovadamente eficaz para superação da hesitação vacinal, na comparação com outras cujas análises retornaram resultados contraditórios, como incentivos financeiros ou comportamentais.
“Incentivos financeiros à vacinação têm sido criticados pela má impressão que vem de colocar um valor em dinheiro para estar vacinado, na comparado com os benefícios sociais, pela percepção de que seria injusto recompensar pessoas que adiaram sua vacinação quanto pelo potencial de riscos morais (por exemplo, as pessoas passarem a esperar ser pagas). Os incentivos financeiros podem até ter o efeito perverso de validar as preocupações, com relação às vacinas, de indivíduos não vacinados”, alertam.
Quanto aos incentivos comportamentais, os autores citam estudos em que eles se mostraram pouco eficazes num cenário de altas taxas de vacinação da população em países desenvolvidos. Mas isso não quer dizer, porém, que os passaportes vacinais não tenham seus problemas.
“Os passaportes vacinais, no entanto, também são controversos, pois algumas pessoas os veem como restrições a suas liberdades individuais”, lembram. “Isto pode afetar sua aceitação e elevar diretamente os custos para sua implementação e fiscalização, assim como os custos políticos de sua adoção. Naturalmente, uma análise completa do custo-benefício dos passaportes vacinais está além do escopo deste estudo. Em particular, os custos de impor e fiscalizar a medida – econômicos, políticos ou pessoais – são muito difíceis de estimar, assim como o valor social de vacinar uma pessoa a mais. Um componente disso são os gastos evitados na saúde. Por exemplo, Barber e West estimam que a loteria da vacina de Ohio economizou US$ 66 milhões para o estado nos gastos com unidades de terapia intensiva. Nossos resultados são um passo adiante para quantificar os benefícios da exigência de comprovantes de vacinação”, concluem.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência