É possível fazer o cérebro “viajar” usando fones de ouvido – relaxando ao som de uma boa música, ou ouvindo uma canção favorita que evoca emoções fortes e memórias marcantes. Opções da moda, como o I-Doser, não levam nenhuma vantagem sobre uma playlist.
O I-Doser é um software com mais de dez milhões de usuários que cobra para tocar áudios ruidosos com alguns minutos de duração. Alega-se que os tais sons, denominados “doses”, são capazes de induzir mudanças nos estados cerebrais e na fisiologia dos ouvintes – simulando os efeitos de drogas psicotrópicas, induzindo o sono ou causando orgasmos.
De acordo com uma pesquisa online que entrevistou 30,8 mil participantes, o principal público-alvo do serviço são jovens entre 16 e 20 anos, e pais mais conservadores estão em pânico com o prospecto de filhos viciados no que se convencionou denominar “drogas digitais” ou “drogas acústicas”. Porém, a maior parte dos usuários chega ao I-Doser atrás de ajuda para insônia, e não em busca de experiências recreativas.
O programa também arrebanha clientes no campo do misticismo e das práticas integrativas e complementares: existem doses chamadas “cura por cristais”, “purificação da aura” e “cura pineal xamânica”. A própria home do site apela para este público-alvo: “Muitos utilizam os áudios para relaxar, ter uma experiência recreativa ou para ajudar com meditação, chakras, yoga e equilíbrio holístico”, diz um texto introdutório.
Ficou curioso? As doses custam no mínimo US$ 8 – e acessei o site em um dia de promoção. Mas não precisa pegar o cartão: é possível experimentar o efeito gratuitamente em uma infinidade de vídeos do YouTube, ou usar este site, que gera doses customizadas. De fato, a Wikipedia lista 17 programas, gratuitos ou não, que oferecem ruídos análogos aos do I-Doser.
Se você já se aventurou com edição de áudio, amadora ou profissionalmente, dá até para montar sua própria dose com alguns instrumentos e um tipo de software chamado digital audio workstation (conhecido pela sigla DAW) – como fez o repórter que vos fala. O I-Doser afirma que só o formato de arquivo proprietário usado por eles garante a eficácia das doses, e que versões genéricas em .mp3 ou outros formatos compactados alcançam 3% de eficácia, contra 80% dos originais. A fonte dos números não é informada.
O I-Doser realmente vende arquivos intitulados “maconha”, “cocaína” ou “DMT”, embora não prometa abertamente que trarão o mesmo resultado das drogas originais (uma ressalva que aparece em letras miúdas, no rodapé do site). Não promete porque seria mentira: a hipótese de que esses áudios sejam capazes de induzir euforia, alucinações etc. não faz sentido à luz dos conhecimentos de física acústica, bioquímica e neurociência disponíveis hoje.
Todos os experimentos decentes realizados até agora (com um número de voluntários razoável, um grupo de controle que utiliza placebo e outras garantias metodológicas mínimas) demonstram que o único efeito real do I-Doser é danificar os tímpanos de quem ouve em volume muito alto – coisa que uma britadeira ou um show de rock também fazem, o que motivou uma nota preocupada da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
Não é de se surpreender, já que o mecanismo proposto não é plausível de antemão, ainda que não houvesse um único teste na literatura. O que se afirma, grosso modo, é que uma ilusão acústica gerada pelos áudios, chamada batimento binaural, é capaz de se sincronizar com as ditas “ondas cerebrais” – que são oscilações mais ou menos constantes na atividade eletroquímica do cérebro, visíveis em um eletroencefalograma (EEG). Essa sincronização seria capaz de alterar os estados cerebrais dos ouvintes.
Para entender porque essa alegação é furada, vamos começar entendendo melhor batimentos e eletroencefalogramas, com ajuda do biofísico Jorge Quillfeldt, da UFRGS, que tem um excelente texto refutando o I-Doser, e a psicóloga alemã Isabel Wießner, que tem experiência com eletroencefalogramas e pesquisa drogas psicodélicas na Unicamp.
O som e o sentido
Um alto-falante é um cone que vai para frente e para trás bem rápido. Quando ele vai para frente, ele empurra as moléculas de ar, gerando uma faixa em que a pressão atmosférica é mais alta. Quando o alto-falante volta, a pressão do ar abaixa e surge uma zona mais vazia, com menos moléculas. Uma onda sonora é essa alternância rápida entre áreas de alta e baixa pressão.
O número de vezes por segundo com que a onda sobe e desce é a sua frequência (medida em Hertz). Frequências maiores são percebidas como sons mais agudos, as menores são sons graves.
Muitos fenômenos, como um uma TV com interferência, fazem o ar reagir de maneira caótica, sem picos de pressão muito definidos. Esses sons não têm uma frequência única, claramente discernível (no jargão, diz-se que não têm “altura definida”).
Os áudios do I-Doser consistem em duas camadas sobrepostas. Uma é o suposto princípio ativo da droga digital; a outra é meramente decorativa. A parte decorativa pode consistir em música instrumental, em sons da natureza ou, mais comumente, em ruído branco ou rosa (esses são os nomes técnicos de dois tipos de sons sem altura definida formados por frequências aleatórias, que lembram uma TV com interferência).
Já o “princípio ativo” consiste em duas frequências ligeiramente diferentes entre si soando continuamente, uma em cada fone de ouvido (440 Hz no fone esquerdo e 444 Hz no fone direito, por exemplo). Na nossa percepção, elas vão soar como duas notas musicais desafinadas entre si.
Se você tocasse essas duas frequências em duas caixas de som, elas ficariam levemente fora de fase: as áreas de alta pressão de uma onda cancelariam as áreas de baixa pressão da outra onda em intervalos regulares, gerando pulsos alternados de som (quando as os picos e vales coincidem) e silêncio (quando se neutralizam). Ouça um exemplo no YouTube, no minuto 1:44.
O nome disso é batimento. Agora vem o pulo do gato: se você reproduzir essas notas desafinadas em fones de ouvido diferentes, elas nunca vão chegar a se encontrar na atmosfera para interferir uma com a outra. Portanto, não ocorrerá batimento. Mesmo assim, o cérebro processará as frequências como se devessem estar interferindo uma com a outra, ainda que não estejam na prática. E aí ouviremos um batimento fantasma. Esse é o tal batimento binaural: uma ilusão acústica.
Mantenha isso em mente. Explicado o batimento, vamos ao cérebro.
As ondas cerebrais
O seu encéfalo é uma máquina altamente descentralizada. Enquanto um módulo garante que seu coração bata num certo ritmo, outro cuida de uma capacidade sofisticada com a linguagem. Isso significa que os neurônios de cada área não tendem a disparar com grande coerência entre si. Apesar disso, emergem alguns padrões dessa maçaroca. O professor Jorge Quillfeldt os descreve como um “somatório estatístico”, que vai “espelhar muito grosseiramente o estado geral do examinado”.
Esses padrões são chamados popularmente de “ondas cerebrais”, porque ocorrem com frequências fixas – medidas em Hertz também. Mas note que estamos falando de ondas bem diferentes das ondas sonoras. No caso do som, há um padrão de áreas de baixa e alta pressão no ar. No caso do cérebro, trata-se de uma oscilação regular, cíclica, da atividade eletroquímica no órgão. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.
O eletroencefalograma detecta isso do lado de fora do crânio – a metáfora corrente compara o fenômeno a ouvir uma orquestra abafada detrás de uma parede –, e por isso deixa transparecer com bastante clareza as tendências gerais, abafando detalhes intrincados (se você fizer um exame análogo ao EEG direto na superfície do córtex cerebral, com o crânio aberto, o ruído fica tão intenso que é difícil distinguir os padrões).
As principais ondas verificadas em um EEG são batizadas de acordo com o alfabeto grego. Alguns exemplos: alfa, entre 7 e 13 Hz, que aparece quando você está acordado, mas relaxado; beta, entre 13 e 30 Hz, que surge em pessoas alertas, concentradas em uma tarefa; teta, entre 4 e 7 Hz, que indica sonolência; delta, com menos de 4 Hz, que denota sono profundo. Note que esses são estados bem genéricos: uma pessoa que exibe ondas beta pode estar desarmando uma mina terrestre na Ucrânia ou escolhendo comida no iFood.
Os neurocientistas ainda não são capazes de inferir, por meio das ondas cerebrais de alguém, algo tão específico quanto a droga que essa cobaia consumiu. “Estão surgindo os primeiros estudos (...) que conseguiram diferenciar estados induzidos por psicodélicos de outros estados", explica Isabel Wießner. “Por exemplo: acharam diminuições de alfa e teta sob LSD e psilocibina, mas não sob quetamina. Neste sentido, seria interessante investigar se o I-Doser consegue provocar diferenças similares. Mas, para isso, um estudo científico rigoroso seria necessário”.
Verdade?
Com essas informações em mãos, a primeira alegação sobre o funcionamento do I-Doser cai por terra: o suposto acoplamento entre a frequência do batimento binaural e as ondas cerebrais.
Antes de mais nada é bom esclarecer que existem, sim, oscilações que se sincronizam. Por exemplo: o físico e astrônomo Christian Huygens descobriu que os pêndulos de relógios passam a balançar com a mesma frequência, mas em direções opostas, quando pendurados na mesma parede (vale dizer, claro, que Huygens também inventou o relógio de pêndulo).
Esse fenômeno não funciona à distância, claro: mude um dos relógios de parede e o efeito cessa imediatamente. Trata-se de algo puramente mecânico, e sua lógica não se aplica ao caso do I-Doser, porque o acoplamento hipotético envolveria duas ondas de naturezas completamente diferentes, e uma delas sequer existe: o batimento binaural é uma ilusão psicoacústica, lembre-se.
Um EEG pode mudar em resposta a uma onda sonora? Sim. Mas porque a informação entrou pelo ouvido do examinado, foi processada pelo cérebro e mudou o estado do órgão de alguma forma – pessoas concentradas no I-Doser, por exemplo, provavelmente exibem ondas beta (afinal, estão concentradas).
Até aí, muita coisa muda também. Isabel explica: “Considerando que outras técnicas, não induzidas por substâncias, como yoga, meditação, hipnose ou um simples relaxamento, também são capazes de mudar essas assinaturas e induzir estados alterados de consciência, imagino que o I-Doser seja capaz de fazê-lo também”.
Inclua na mistura efeito placebo, autossugestão, lembranças de viagens passadas com drogas reais e bingo: não é improvável que alguns usuários de fato tenham alguma experiência anômala com os áudios, da mesma forma que tantos pacientes relatam melhorar com homeopatia, ainda que ela consista em água ou pílulas de açúcar.
A questão é: para que o I-Doser simulasse o efeito de várias drogas de maneira premeditada e consistente, seus criadores precisariam fazer uma engenharia reversa das ondas cerebrais. Ou seja: descobrir exatamente como o LSD ou a ayahuasca mexem com a assinatura do EEG, e então criar um som que fosse capaz de mexer com a atividade cerebral de maneira a obter uma assinatura similar.
A assinatura no EEG, diga-se, é o de menos. Ela emergirá naturalmente das mudanças no cérebro. O xis da questão é mexer com o que os neurônios estão fazendo, independentemente de como isso apareça no exame depois. “Parte-se da premissa de que as ondas cerebrais funcionam de maneira oposta à que realmente funcionam. Certos estados cerebrais produzem certas ondas, mas as ondas não produzem estados cerebrais. Você não pode colocar o mostrador em 6,5 Hz e induzir felicidade instantânea”, escreve o podcaster cético Brian Dunning.
Esse seria um grau de especificidade digno de ficção científica. Drogas são moléculas que se encaixam em fechaduras bioquímicas presentes na membrana das células do sistema nervoso, chamadas de receptores. Esses receptores, quando acionados pelas chaves certas, desencadeiam uma mudança no funcionamento da célula (que, em larga escala, torna-se uma mudança na cognição e no comportamento do usuário da droga).
É um processo tão intrincado que muitas drogas psicoativas famosas, legais ou ilegais, não tiveram seus mecanismos de ação plenamente desvendados até hoje. Se alguém descobrisse uma única sequência de sons capaz de influenciar o cérebro de maneira a gerar um efeito idêntico ao causado pela conexão de uma droga específica com um receptor celular, a descoberta seria digna de um Prêmio Nobel, e os neurocientistas talvez passassem décadas tentando entender como isso é possível.
Alguém poderia sugerir que o fenômeno de acoplamento entre ondas cerebrais e ondas sonoras é algo que acontece de fato, mesmo que não sejamos ainda capazes de explicar o fenômeno. Em ciência, às vezes a teoria vem depois da prática, afinal.
Mas não é o que a literatura disponível até agora indica. Os estudos que trazem evidências a favor das drogas digitais com batimentos binaurais – como este e este – usam grupos pequenos de voluntários (9 e 13, respectivamente) e não atendem a critérios de qualidade metodológica básicos.
Dois deles são: fornecer placebo a um grupo de voluntários para usá-los de parâmetro, e cegar duplamente os envolvidos – um jargão que significa não deixar nem os participantes nem os cientistas saberem quem está ouvindo o áudio real e quem está ouvindo o placebo. Um paper chega ao paroxismo de testar um único homem. “Estudos mais cuidadosos nos quais se achou alguma coisa, porém, mostraram apenas efeitos gerais sobre ansiedade ou a sensibilidade à dor”, escreve Jorge Quillfeldt, “ambas coisas que podem também podem ser explicadas por efeito placebo”.
Em suma: fique de orelha em pé com I-Doser e similares. E não se preocupe com seus filhos: as doses não viciam, só esvaziam a carteira. Para quem quer viajar com fones de ouvido, a melhor opção da internet ainda é o Pink Floyd tocando “Echoes” ao vivo em Pompeia, em 1972.
Bruno Vaiano é jornalista