A criação de uma disciplina intitulada "Perspectiva Quântica para o Cuidado de Enfermagem/Saúde" para o curso de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), cuja ementa abraça temas como “noções básicas sobre Ayurveda, Fitoterapia e Fitoenergética, Florais de Bach e Saint Germain, Mandalas, Medicina Tradicional Chinesa, Meditação e Yoga”, todas práticas sem nenhuma conexão com a física quântica legítima e, em muitos casos, desprovidas de comprovação ou, mesmo, plausibilidade científica, vem causando reações ainda tímidas no meio acadêmico e científico brasileiro.
Os professores de Física da própria FURG decidiram, porém, que não poderiam ficar calados – atitude de rara coragem, um raio de luz em meio à cultura de complacência, compadrio e corporativismo que impera no sistema universitário brasileiro –, e produziram o manifesto que reproduzimos, na íntegra, abaixo.
Sobre o mesmo assunto, a Revista Questão de Ciência publicou editorial recente.
Manifesto dos docentes de Física do Instituto de Matemática, Estatística e Física (IMEF) da FURG, contra o ensino de pseudociências no curso de Enfermagem da FURG
Nós, docentes da área de Física do Instituto de Matemática, Estatística e Física (IMEF) da Universidade Federal do Rio Grande - FURG,
Gostaríamos de registrar a preocupação do nosso grupo de professores e pesquisadores quanto ao teor da ementa da disciplina "Perspectiva Quântica para o Cuidado de Enfermagem/Saúde" para o curso de Enfermagem da FURG, segundo a Deliberação nº 08/2020 da 2ª Câmara do COEPEA. A ementa se utiliza da nomenclatura particular da Teoria Quântica (ver detalhes abaixo sobre seu contexto e desenvolvimento) vinculada a práticas de saúde e/ou enfermagem, que não têm suporte científico de correlação ou vínculo com a Teoria Quântica, e em qualquer contexto conhecido é suportado por esta.
A ementa e a bibliografia apresentadas configuram pseudociência, ao contrário do atual panorama científico em que a Física e a Teoria Quântica estão inseridos. Não deveriam compor uma ementa de um curso cuja base conceitual e prática é científica, como a Enfermagem, exceto no desenvolvimento de uma análise crítica dos (pseudo)métodos propostos. Na presente forma apresentada, a ementa configura uma associação perniciosa e errônea de uma teoria com ampla base científica e pseudociências.
A Teoria Quântica diz respeito ao tratamento de sistemas microscópicos e de fenômenos que ocorrem na escala do muito pequeno. Assim, trata do comportamento e do movimento de partículas nesta escala. A palavra quantum está relacionada à unidade mínima constituinte de um sistema, e foi inicialmente usada por Planck para descrever o comportamento da radiação emitida por um corpo aquecido. Assim, a gênese fala sobre a energia ser quantizada, associando energia e frequência da radiação. No entanto, a própria constante de proporcionalidade entre estas grandezas mostra a característica microscópica da teoria. Avançando no tempo, a analogia de que a matéria exibiria efeitos ondulatórios, da mesma forma que a luz, levou a Teoria Quântica a ser utilizada para explicar fenômenos envolvendo a matéria.
No entanto, estes efeitos são pouco pronunciados para corpos macroscópicos, como o corpo humano. Assim, generalizações da Teoria Quântica para sistemas maiores são pouco úteis e não encontram nenhum amparo científico para sua aplicação. Apesar disso, percebemos um uso indiscriminado do termo “quântico” para caracterizar processos e situações que pouca ou nenhuma relação trazem com a Teoria Quântica, estudada no escopo da Física. Assim, questionamos a utilização do termo como nome de disciplina do curso de Enfermagem – Perspectiva Quântica para o Cuidado de Enfermagem/Saúde – uma vez que não existe uma relação clara entre o que a ementa apresenta – Contribuições da Teoria Quântica – e a prática de saúde. Além disso, a utilização de termos adaptados, com bibliografia direcionada para uma linha pseudocientífica, pode fazer os acadêmicos do curso incorrerem no erro de assumir posturas não científicas como científicas.
Atentamos para essa situação, não desmerecendo a oferta de uma disciplina que apresente as Práticas Integrativas e Complementares, mas chamando a atenção para seu caráter complementar, como a própria denominação demonstra. Aqui, deixamos claro que nossa preocupação está em associar conteúdos tratados em nossa área de atuação com conceitos pseudocientíficos, e não discutimos aspectos técnicos da área da Enfermagem, a qual não estamos totalmente familiarizados.
O uso de um termo deslocado e de bibliografia pseudocientífica não pode ter lugar dentro da cultura acadêmica. A presença na bibliografia indicada na ementa de autores de reputação duvidosa, que utilizam indiscriminadamente associações entre ideias da Física Quântica e áreas com nenhuma correlação, como a espiritualidade, apresentam uma visão obscurantista da ciência, no lugar das perspectivas críticas esperadas a partir de um tratamento adequado da ciência. Publicações deste tipo não deveriam constar como bibliografia básica de disciplina obrigatória oferecida por nossa universidade, ou qualquer outra universidade que preze a ciência e o conhecimento. Lembramos que a presente apresentação de nome e ementa carrega conteúdo pseudocientífico na formação dos estudantes de Enfermagem.
Reforçamos, ainda, que não existe associação entre a referida disciplina e a área da Física Quântica, e o caráter da ementa aponta diversos pontos pseudocientíficos, aos quais não tivemos acesso para avaliar e criticar quanto aos conceitos envolvidos.
Ainda, como docentes desta Universidade, nos preocupa que a adoção desta disciplina no Quadro de Sequência Lógica do curso de Enfermagem crie um rótulo negativo para a FURG, como a Universidade da “Terapia Quântica”. Mesmo que trabalhemos na direção contrária, buscando a divulgação científica e a promoção da ciência, este rótulo será mantido. Este também será carregado pelos egressos da instituição, refletindo negativamente em suas vidas profissionais. Também estendemos nossa preocupação pelas manifestações de colaboradores, de outras universidades brasileiras, de indignação pela criação de tal disciplina pela FURG, gerando um mal-estar na comunidade científica nacional.
Finalmente, defendemos a livre manifestação do pensamento nesta universidade e em todos os espaços públicos, bem como reforçamos nosso compromisso com ensino, pesquisa e extensão de qualidade, mantendo os princípios da ciência como pilares na construção do conhecimento.
Como encaminhamento, solicitamos a revogação dos atos da reunião ordinária do Conselho da Escola de Enfermagem (Ata 11/2019), a respeito da Alteração Curricular, de extinguir a disciplina Terapias Integrativas e substituí-la pela disciplina “Perspectiva Quântica para o Cuidado de Enfermagem/Saúde”, bem como a revogação dos atos da Deliberação nº 08/2020 da 2ª Câmara do COEPEA, quanto à criação da referida disciplina. Também solicitamos a rediscussão do nome e da ementa da disciplina que venha a ser criada, retirando toda e qualquer menção à Teoria Quântica ou conceitos associados, eliminando qualquer vinculação com a Física. Além disso, também endereçamos o questionamento quanto à cientificidade dos conteúdos tratados na ementa, com vários exemplos de pseudociências sendo tratados em disciplina oferecida por nossa Universidade.
Águeda Maria Turatti
Aline Guerra Dytz
André Ricardo Rocha da Silva
Antonio Gledson de Oliveira Goulart
Charles Guidotti
Cláudio Masumi Maekawa
Cristian Giovanny Bernal
Cristiano Brenner Mariotti
Eliane Cappelletto
Everaldo Arashiro
Fabrício Ferrari
Fernanda Sauzem Wesendonk
Fernando Kokubun
João Thiago de Santana Amaral
Jorge Luiz Pimentel Júnior
Juan Segundo Valverde Salvador
Luis Dias Almeida
Luiz Fernando Mackedanz
Matheus Jatkoske Lazo
Otavio Socolowski Junior
Pedro Ricardo del Santoro
Rafaele Rodrigues de Araujo
Rosângela Menegotto Costa
Tobias Espinosa de Oliveira
Valmir Heckler